Friday, May 12, 2006

estou sempre em dois lugares
um perto da minha sombra o outro
entre folhas em branco

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preso ao pé de um besouro
disputo a atenção com a
matéria-prima do ninho

preso em uma asa de pardal
recebo o vento assoprado
de formigueiros e valas

as pegadas ficam sob suspeita

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O capitão Gonsalves chegou mais cedo ao quartel. Fugiu das responsabilidades familiares para se dedicar à instrução de ordem unida. Dando uma potência desmedida à voz, gritava.
- Companhia, em forma!
- Ordinário, marche!
- Direita, volver!
Em casa, o filho do capitão confeccionava bombas caseiras.
- Olhar à esquerda!
E a bomba explodiu no colo do garoto.

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Começo o dia recolhendo aspirinas e batons. saio de casa pronto, inteiro humano, apto para juntar coisas e produzir papel higiênico. Em cima da tv, o recado que deixei para eu não esquecer de fechar o gás ficará me esperando intacto. A noite acendo um cigarro.

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Ventos de após corpos
povoam minhas vizinhanças
em cada possuimento
deixo lágrimas decorativas
nas prateleiras de troféus

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Friday, April 28, 2006

antes de eu ser nascido
havia um grito espontâneo
inaugurando a aula de matemática
era tempo de cálculos
calculava-se tudo
e supunha-se tudo
certeza das subjetividades
toda a verdade mensurável das capitânias
houve festa quando descobriram
que não precisava descobrir
mais nenhuma verdade
todos foram para a capital
e nasci

Thursday, March 09, 2006

Hienídeos

As hienas rondam novamente a cama. Já urinaram nos meus chinelos e tudo o que conheço como sendo meu território se oprime com as invasões. Vou forrar o chão com jornais, só espero que isto não suje mais o quarto. Tenho de encontrar uma maneira de alcançar as xícaras em cima da pia e para isso terei de distrair os carniceiros, só assim conseguirei tomar um pouco de café antes de sair. Deus ouviu as minhas preces. O toque da campainha parece o rugido de um poderoso leão. A sra Orinowa trouxe minhas roupas na melhor das oportunidades. Minhas roupas salvaram minha vida. As hienas parecem não suportar a presença oleosa da sra Orinawa trazendo aquela trouxa de roupas impregnada com o cheiro de óleo de baleia. Mas elas ainda conseguiram levar meu almoço. Ao menos sobrou um pouco de aspargos e broa de milho.
Recebi um elogio do sr Sullyvann, ele gostou do modo como empilhei as caixas no pavilhão 2, acho que no mês que vem poderei operar a máquina do pavilhão 9. Não posso esquecer de apertar a campainha! Não posso esquecer de apertar o leão!
O cheiro de óleo de baleia parece ser um bom meio para afugenta-las, mas é bom garantir e assusta-las também com o rugido. Animais grandes... Se eu fosse maior. Será que a sra Orinoua ainda está acordada? Por enquanto não apareceram. Meus chinelos estão molhados. Parece baba. Amanhã tomarei uma decisão enérgica. Enfrentarei as hienas!
Por Deus! A sra Orynowa chegou bem na hora. Jamais poderia imaginar que elas retornariam em maior número. Levaram o aspargo. Se não tivesse trazido alguns mantimentos e escondido-os na cama não teria o que comer hoje, justo hoje que o sr Sulivan vai inspecionar o pavilhão 2. Vou levar o que sobrou da broa. Sempre tem broa no armário. Será que a sra Horinowa abastece minha despensa? Preciso perguntar se estou devendo-lhe alguma coisa.
Na rua de cima, um pouco antes de chegar nos pavilhões, há uma loja de armas e munições, depois do expediente vou parar lá e perguntar se eles têm alguma arma para matar hienas, ou alguma armadilha, mas antes tenho de perguntar ao sr Sulliwam se quando terminar de arrumar o pavilhão 5 poderei sair um pouco mais cedo. Com uma boa arma elas terão o que merecem. Todo homem tem o direito de se defender e as armas são a única maneira de enfrentar estes animais.
Há três dias elas não aparecem, parece que descobriram minha artimanha. Quem teria contado meu plano? Não posso deixar de ficar atento, elas devem estar esperando eu me distrair. O fato de estarem escondidas significa que estão tramando alguma coisa.
A moça que preenche os documentos na loja de armas me pareceu muito simpática, talvez eu pudesse convida-la para ir ao cinema, está passando um belo filme que fala de cavalos e índios. Ela também é muito bonita. O sr Sullivan falou muito bem deste belo filme, mas não lembro o título. Passarei em frente ao cinema e anotarei o nome do filme e dos atores, assim poderei convidar a moça da loja de armas e, depois da sessão, farei o mesmo comentário feito pelo sr Sulliwann. Só não poderei leva-la para minha casa. As hienas podem aparecer de repente e porem tudo a perder.
Aquele homem na praça falava coisas estranhas. Liberdade, opressão, igualdade, exploração, selvageria, gananciosos, tantas palavras engraçadas. Ele me olhou e disse que meu patrão fazia parte de tudo aquilo e que deveríamos nos unircontratudoissoqueestáai. Ele realmente não conhece o sr Sullivann.
Vou pedir uma empilhadeira maior, talvez assim eu possa trabalhar lá fora, mais perto dos navios. Dizem que os marinheiros trazem coisas ótimas para negociar com os operadores de empilhadeiras e com os trabalhadores das docas. O sr Sullivanm disse que não poderia me colocar na empilhadeira maior. O pessoal do sindicato pode reclamar, a não ser que eu aceite trabalhar pelo mesmo salário, sem falar sobre isto com os sindicalistas. Ele nem sabe que até ganhando menos eu iria. Imaginem o quanto não posso lucrar negociando com os marinheiros. Será que a sra Orenowa viu alguma hiena? Espero que ela não venha falar com o sr Sillivann se vir alguma delas no meu quarto.
As hienas deram uma trégua, mas em compensação uma maré de má sorte me invadiu: os negócios com os marinheiros não estão prosperando -eles devem estar desconfiados por eu ser novo na área-; a moça da loja de armas não aceitou meu convite para ir ao cinema; a sra Orinowa não abasteceu minha despensa; o sr Sullivan não elogia mais as minhas arrumações dos pavilhões; meus chinelos desapareceram, no lugar deles apenas baba seca. Quanto de mim ainda resta? Não me reconheço. Estou me hienizando. Li em algum lugar -deve ter sido no jornal- sobre um rapaz que se metamorfoseou –era esta a palavra, bela palavra- em uma barata. Não creio que eu vá me transformar em hiena, antes elas me devorarão e serei, assim, hiena. Posso atirar em todas estas malditas: sra Orinova, sr Sulivann, moça da loja de armas, marinheiros, cara do sindicato, pregador da praça. Talvez minha cabeça também mereça uma boa bala bem alojada. Tenho certeza que as carniceiras iriam se banquetear com meus miolos, caso contrário já os teria espalhados pelo quarto, com broa de milho e aspargos. Aspergidos com aspargos, broa de milho com aspargos aspergidos com miolos. Parece o nome de uma receita.
Ouvi a sra Orinawa -nunca lembro direito como se fala estes nomes estrangeiros- falar sobre o inferno, acho que não gostaria de passar o resto da vida eterna lá, ela disse que é para sempre e parecia ser bastante ruim. Lá as hienas não têm medo da campainha nem do óleo de baleia. Se eu carregar minha cruz para um local bem alto estarei livre do inferno. Um local bem alto. Será que precisarei ficar pendurado na cruz, também li em algum lugar sobre um rapaz que ficou.
Esta empilhadeira é bem melhor do que a do outro pavilhão, as caixas ficam bem alinhadas. O sr Sullimann disse que precisa apenas resolver algumas formalidades e então poderei ficar definitivamente neste setor.
Será que as hienas têm medo da cruz? Gosto de andar pelas ruas quando chove, a água forma uma camada que impede meus pés de tocarem diretamente no chão, como se estivesse flutuando. São muito rápidos estes animais, nenhum dos disparos acertou algum deles. A sra, dona da pensão, vai reclamar do barulho e dos buracos nas paredes.
Se continuar assim me transformarei numa hiena, metamorfosear-me-ei, igual ao rapaz das baratas e alguém pode querer atirar em mim. A não ser que leve a cruz para um local bem no alto, antes vou pedir minha rescisão para o sr, dono das máquinas miserável, terminarei de pagar a loja da moça da loja de armas e minha conta na pensão daquela gorda sebenta, etc. Sempre tem alguma coisa para resolver antes de matar hienas e levar uma cruz para o alto.
minha alma imortal
vasculha restos e lixos alheios
buscando falas abortadas
garrafas com absinto e
vestígios de relacionamentos

de fragmentos achados
farei um inteiro
meus inteiros se fazem de sobras
e minhas sobras sabem sentir
caminhos esquecidos por minhas mãos

trago traços de demência
nas heranças auto-herdadas
das verdades padrão
e de passos inventados por letras
cabalisticamente falsas

tento tolerar os toques dos
dedos nas pontas imaginadas
de estrelas visitadas por astronautas
formados por correspondência
e por mamíferos ruminantes

e se perco alguns gramas por semana
ressuscito-me um em sonhos
próprios de quem só aprendeu
a contar até 21
não aprendi a ver vida própria

na domesticidade das convenções
apaziguo-me nos afazeres
próprios para dar fim em todo
tipo de movimento da carne
até me enfeitarem de lilás
pequenos textos de sem destino

Agora escrevo abertamente sem ninguém ver. Invisível no meio da multidão digital.
Vejo um Nietzsche desenhado com cara de louco. Não sei quem é esse cara com nome difícil, só acho que ele deveria aparar um pouco o bigodão.

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toda a vez que penetro na tua noite
sinto fisgadas de luz nas minhas narinas

teus cheiros trazem meus vícios
e minhas mãos se amputam

não me é permitido tocar em carnes
noites
e demais finitudes

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O ponto da santa

Só eu e ela. O ônibus estava atrasado. Ninguém por perto, só eu e ela no ponto. Não tinha jeito de puta e isso me deixou em dúvida. Sempre tem alguma garota trabalhando naquelas imediações, mas não aquela. Tão distinta. Estávamos sentados, cada um numa extremidade do banco. Tirei o pau para fora da calça e me aproximei sem levantar do banco.
- Que horas são moça?
- Cinco p'ras onze. - Respondeu sem olhar para mim.
Tão distinta, absoluta, cheia de uma beleza requintada. Roupas finas e ousadas apenas o suficiente para alimentar as imaginações. Perfeita.
Apenas nós dois. Aquele pedaço de carne amolecida, se resfriando fora da calça, destoava da cena. Uma mulher tão especial que a purificava. Uma santa sem altar.
- Chupa?
- Trinta pila. - Respondeu sem olhar para mim.