Sunday, November 21, 2010

Maria não sabia de aniversários, naqueles sertões, isto é luxo que não cabe. Pelo porte franzino e pouco peso, deveria ter uns cinco anos, pelas feições cheias de seriedade e geadas na pele, uns 11.
Sabia, ou cismava, que uma coisa boa deveria ser o Céu, onde Deus brincava com os anjos, como um pai amoroso faz festa com os filhos. Sem fome, frio, roça, surras, deveria ser mesmo bom o Céu.
Maria olhava, calculava, media mentalmente, intuía e se enchia de certezas: com dois pinheiros, daqueles que dez homens não conseguiam abraçar, posto um em pé sobre a copa do outro, não havia dúvida que ela alcançaria o Céu.
Noutros dias, quando o esforço para por um pinheiro em cima do outro parecia muito, ela olhava para o horizonte e ficava certa que o que via era o Céu tocar a terra. Era só andar para aquela direção e entrar no Céu.
Acabou a cerveja

Era quase hora do encontro e aquele magricelo com cara de barata não parava de falar. Levantei e comecei a andar de costas pra ver se ele não percebia que eu tava dando no pé. Ele continuava a falar, levantou e veio em minha direção. Falava de economia, política, família, religião, filosofia, sexo, literatura, pagode, tudo num jorro frenético e sem rumo.
Não sei por que simplesmente não dei tchau e fui embora. Talvez por pena ou por, no fundo, me sentir lisonjeado com aquela demonstração de esforço para me impressionar. Procurei um pedaço de pau ou um porrete pra dar uma pancada naquela cabeça sebenta de barata. Desisti. Lembrei que sou muito frouxo pra esse tipo de violência. Pensei em tirar o cacete pra fora da calça e pedir pra ele dar uma chupada, mas fiquei com medo do cretino topar. Seria tão simples informá-lo do meu compromisso e marcar pra continuar a conversa outro dia. Ele não parava de tagarelar. A salvação entrou pela porta da cozinha. A mãe do magricelo chegou.
— Olá Alex, quem é o seu amigo?
A coroa não era nada má. Deveria ter uns 45, bem conservada. Usava um vestido curto e decotado, exibindo dotes antigos, mas ainda apreciáveis.
— É o senhor Luiz Mendes, ele é poeta.
— Oi!— Balbuciei enquanto alternava meu olhar nos peitos e nas pernas.
— Meu filho já falou do senhor.
— Ele nunca falou da senhora. Pelo jeito este nosso Telêmaco prefere ocultar a beleza da sua jovem mãe. — Não compreendo como esse tipo de galanteio funciona, ela nem sabia quem era Telêmaco. — Eu também não sairia falando por aí se tivesse uma mãe tão boa.
— O senhor, me parece, comentou alguma coisa a respeito de um compromisso...— Acho que o cara de barata percebeu minha indiscrição se avolumando nas calças. Tudo bem, não era tanto volume assim, mas a intenção era bem evidente.
— É mesmo. Acabou a cerveja. Vou buscar mais e já volto.

Wednesday, November 17, 2010

A grande casa
Adonai vivia só e assim, só, andava por campos e várzeas, com rumos aleatórios, se ia a esmo, catando um graveto ali, deitando-se no mato mais adiante e sem que pudesse perceber estava cheio de tédios. Para afugentar a monotonia pôs na cabeça, fixo, um pensamento que o acompanhou em andanças, durante o sono, quando comia até que resolveu dar corpo à idéia: construiria uma casa.
De obras conhecidas não haveria a que se igualasse em exuberância nem em riqueza de detalhes, opulência, repleta de animais e plantas e tão logo pudesse acolher rebentos, ser tomada de filhos e filhas.
Dono, por posse e lei, de tudo o que pudesse ser alcançado em vastas léguas, desde bichos e gentes, sobre ou sob a terra, abaixo e acima das águas e sem nada digno de impedi-lo, era só questão de pôr-se em trabalho de escolha para ajustar onde germinaria a morada. Uma colina, um vale, um bosque tudo ali tinha e tudo isso deveria ter na casa, e teve. Adonai não tinha motivos para economia, nem receio de escassez.
Escolhido o local, Adonai não tardou em começar a obra e não descansou enquanto tudo não estivesse bom o suficiente para acolher sua família. Da família falaremos mais adiante, pois as escolhas de Adonai nos são inescrutáveis e cabe-nos apenas analisá-las de longe, como bons observadores. Por seis anos ele cercou uma vasta área onde levantou paredes, plantou jardins, construiu viveiros, amplas áreas de lazer e recreação, cavou lagos e não esqueceu de reservar um bom espaço para horta e pasto para a criação e ao centro da edificação uma torre, de onde poderia avistar até além de suas fronteiras. Nenhum detalhe passou despercebido e ao cabo da empreitada, Adonai descansou.
A casa e seus entornos não caberiam em sítio menor do que um ducado ou, quiçá, um principado, era, enfim, um verdadeiro reino da terra de Adonai, mas ermo de gentes, ainda que já estivesse atulhado das bicharadas e plantas diversas, a isto o construtor sabia que se deveria remediar. Mesmo sendo ele um varão de vontade inquebrantável, vigoroso como um carvalho, não passava sem desassossego, um aperto, talvez falta, ou vazio, a lhe sufocar o peito. Precisava de companhia de iguais, mas iguais só se fossem de seu sangue, nada mais, nenhum estrangeiro ou alienígena, então principiou a convidar mulheres das mais variadas raças, desde que provenientes de boa família e de bom trato social, para que viessem ter com ele. Ficavam umas duas ou três de cada vez, hóspedes a disposição dos ânimos do anfitrião, que copulava ora com uma, ora com outra, ora com todas, até que pegassem barriga. Tão logo parissem os filhos de Adonai, as mulheres eram expulsas das terras, quando não, sacrificadas em louvor a algum deus sádico. Os bebes eram, então, entregues aos cuidados de escravas, serviçais, tutores e demais componentes do séquito destinado aos cuidados dos rebentos. Assim, para Adonai, começava a formar-se sua família, composta por descendentes diretos seus, sangue do seu sangue, à sua imagem e semelhança. Não sendo do seu sangue, as mães da prole, não eram consideradas dignas de habitarem àquelas plagas, a não ser para servir aos filhos do construtor.
Esta postura excludente de Adonai ante as mães dos seus filhos nos impediu de registrar os nomes destas mulheres, nem sabermos ao certo quantas foram, certo é que foram muitas, posto ser grande a leva de descendentes que se espalharam por aquelas terras. Também, por serem inúmeros, não temos os registros dos nomes de todos, mas os primeiros ficaram muito bem gravados na memória coletiva daquele povo e dos viajantes que por lá se aventuram; por aqueles cantos, poucos não sabem ou ouviram falar dos primeiros filhos de Adonai. O primogênito foi um menino, que por inconcebíveis coincidências recebeu o nome de Adão, ao que foi seguido por uma irmã, igualmente batizada com um, se é que podemos lançar mão deste termo, emblemático nome, de Eva. Filhos de mães diferentes, nasceram quase ao mesmo tempo e quase ao mesmo tempo nasceu, de outra mãe, um casal de gêmeos, mas, por infelicidade da sua ascendência, não exibiam a mesma alvura na tez e não receberam os mesmos mimos de Adão e Eva, sendo–lhes destinado um recanto menos nobre da propriedade e com menos servos ao seu dispor e deles não nos pronunciaremos, a não ser em outra narrativa. E as cópulas com outras convidadas continuaram por muitos anos, assim inúmeros foram os filhos de Adonai, mas sendo Adão e Eva os primeiros e sendo Adonai um pai, ao que nos parece, incapaz de amar a todos seus filhos de maneira igual, foram eleitos os preferidos naquela casa. A eles tudo era permitido, desde tripudiar dos serviçais até maltratar os animais ou se empaturrarem de guloseimas, havia, entretanto, um porém: não poderiam entrar na biblioteca do pai, sem falar em uma frondosa macieira, cujos frutos, doces como mel e abundantes como estrelas no céu, só poderiam ser desfrutados por Adonai e o excedente, pelos passarinhos.
Com as mais saborosas guloseimas aos seus dispor, Adão e Eva pouco se lixavam com frutas, como qualquer criança o faria, e acabavam, mais por desinteresse do que obediência, ignorando, até esquecendo, a macieira. É verdade que os outros irmãos, longe da atenção paterna, saboreavam furtivamente, com ajuda de suas amas, as famosas maçãs. A este tempo Adonai já começava a dar sinais de que fizera uma obra muito maior do que suas possibilidades de controle e jamais deu por falta de tantos frutos desaparecidos, nem percebeu que se avolumava uma pilha de caroços ao redor da árvore, impossíveis de ter sido produzida apenas pelo passaredo. Mas a biblioteca era diferente.
Com tantos afazeres e, como dissemos, ainda que fosse um homem muito rico e poderoso, a obra de Adonai crescia e se mostrava, cada vez mais, além das suas forças e cada vez mais fora de seu controle. Ele já não sabia como andava a educação dos filhos, nem dos dois primeiros; não tinha contas das colheitas e dos rebanhos, tampouco lhes obedeciam todas as ordens os servos e soldados, aquiescendo quando em sua presença, desdizendo-o em sua ausência. Muitos eram os pedidos que chegavam até o senhor das terras, muitas súplicas, desde alívio na cobrança de taxas e aluguéis, até auxílio contra doenças, invasores, ladrões, infidelidade conjugais (sim, Adonai proibia o adultério entre seus protegidos), goteiras nas casas, ataque de lobo aos rebanhos, infestação de carrapatos nos cães, pragas nas lavouras e toda a sorte de infortúnios. Por vezes Adonai, exausto por tantas cópulas, ou por tantas súplicas, sumia, como que se tivesse evaporado. Ia caçar, pescar, se embebedar em alguma taberna onde não lhe reconhecem as feições ou apenas se esconder dos problemas e deixava seu povo largado à própria sorte. Fatal era, no entanto, seu regresso. O que poderia ser um momento de descanso, de relaxamento, parecia ser um exercício de sadismo, pois Adonai, ausente, quando do regresso, fazia uma vistoria geral. Exigia que todas as suas ordens e orientações fossem seguidas ao pé da letra e aquele ou aquela que o desobedecesse era duramente punido, muitas vezes, com a própria vida e em seus regressos, não raro encontrava alguma coisa fora dos seus conformes, o que provocava sua ira vingativa culminando com açoites, expulsões ou assassinatos como punição aos responsáveis. Não raro era filhos e filhas, genros e noras do servo faltoso, pagarem pela falta alheia, sofrendo o mesmo castigo, independente de terem participado ou não da transgressão.
Intuímos ser por estresse, mesmo que esta palavra ainda não fosse conhecida por aquela gente, o fato de Adonai andar cada vez mais irritadiço e cada vez mais severo, mais vingativo e mais cruel, alguns comentam até que ele sentia certo prazer em ver o sofrimento dos outros, mesmo que fossem seus filhos diretos. Algo que descartamos, pois que tipo de senhor se daria a tal trabalho apenas para deleitar-se com castigos e punições aos seus servos, ou que tipo de pai seria tão sádico ao ponto de não reconhecer limites nem ante o padecer de seus filhos? De toda a sorte e apesar de seus ataques de cólera, muitos eram os seus admiradores e defensores. Não temos, entretanto, como saber se tais defensores e seguidores o faziam por temor ou amor, sentimentos que podem rimar em algum verso de pé quebrado, mas não determinam o mesmo grau de fidelidade dos seguidores de Adonai.
Voltemos à biblioteca. Ela ficava estranhamente situada no centro da enorme sala principal, como se fosse uma espécie de centro de comando ou coisa parecida. Não era um primor de arranjo arquitetônico, aquela peça erguida no meio do salão, como se fosse um jardim de inverno, mas ao invés de samambaias e orquídeas, havia livros e documentos. Mais do que uma biblioteca, era um gabinete de trabalho, onde Adonai conferia suas contas e os demais assuntos burocráticos da administração de sua enorme propriedade. Entremeios a estantes com livros, aqui, acolá, mais abaixo, mais acima, pequenas janelas envidraçadas davam ao ocupante do local, uma visão bastante privilegiada da movimentação ao seu redor, nada escapando dos atentos e vigilantes olhos do patriarca, pelo menos na sala e enquanto estivesse na biblioteca. Também lá Adonai guardava seus documentos, escrituras, contratos, termos de posse, processos e toda esta papelada, ao que nos parece, jamais poderiam despertar maiores desejos nos pirralhos e o que havia de interessante lá eram artefatos de outra ordem. Ali Adonai também guardava certos livros, pecaminosos, menos para ele, com imagens sensuais e escritos picantes, também ali depositava parte substancial do seu ouro, pedras preciosas e pérolas, além alguns brinquedinhos seus, usados nas suas intimidades com as mães dos seus filhos, para tornar menos enfadonha a sucessão de cópulas com tantas mulheres diferentes. Há quem tenha dito, maldosamente ─ e por isto pagando com a vida quando tais insinuações cairam nos ouvidos de Adonai ─ que tais brinquedinhos pareciam um tanto estranhos a um legítimo varão e que seriam mais adequados aqueles homens cuja predileção não fosse deitar-se com mulheres.
O tempo avançou em seu curso e o patriarca foi prodigioso, apesar de alguns maldosos comentários, em fornecer sêmen ao propósito de multiplicar os do seu sangue. Ainda assim Adão e Eva continuavam sendo os preferidos do pai, talvez, como dissemos, por sua incapacidade em amar a todos seus filhos de maneira igual, fato é que quanto mais filhos viessem à casa, mais servos eram necessários e mais lascividade os dois desenvolviam. Mimados em tudo e sem nenhuma regra que não fosse parecerem bonzinhos na frente do pai e fingirem que o obedeciam, os dois, por falta de ter o que fazer, ou por puro prazer, criaram joguetes sensuais onde cada servo ou serva bem apessoado poderia ser utilizado, iludido e descartado. Eram belos e o auge da juventude realçou-lhes ainda mais esta qualidade, fazendo com que qualquer um naquela terra pudesse se apaixonar pelos irmãos, quer homem ou mulher, pois suas belezas eram quase celestiais, divinas, como descreveu um antigo escriba que visitara a família por aqueles anos.
Como faziam os demais irmãos, as maçãs protegidas do pai eles já haviam experimentado, talvez por pura rebeldia juvenil, mas, de toda sorte, não acharam que o risco de serem apanhados e punidos valesse a pena, afinal eram apenas maçãs. Mas o risco de conhecer os segredos do velho Adonai, enterrados na biblioteca, era tentador.
Poderiam nem ser tantos, ou importantes, mas eram os segredos de Adonai e se algo ali o condenasse, faltaria juiz que o fizesse. Não eram muitos, mas eram desnudadores, revelavam como o patriarca era muito menos do que se fazia aparentar. Encerradas na biblioteca, dentro de uma bela arca, estavam as evidências e provas de que o império de Adonai havia sido construído sob uma base frágil. Ele se endividara muito além de suas reais condições e era pressionado por credores e fornecedores, também construíra uma morada muito maior do que sua capacidade para regê-la. Vendo aquilo, Adão e Eva perceberam como o pai era de fato, ele que sempre disse saber tudo o que se passava na casa, com todo mundo, na verdade não sabia nem dos próprios negócios e mantinha uma certa unidade na casa só com o uso da força e do terror, ameaçando com punições terríveis e inomináveis maldições aqueles que o questionassem. Assim era Adonai que, mais tarde, quando sua verdadeira face foi descoberta, recebeu uma precisa descrição de um certo vizinho vindo do Prata: “Adonai es un pobre diablo, con un problema demasiado complicado para sus fuerzas. Lucha con la materia como un artista con su obra. Algunas veces, en algún momento logra ser Goya, pero generalmente es un desastre.”
Os irmãos se deixaram levar pelas curiosidades ali guardadas sem perceber que eram observados pelo dono da arca. Não sabiam há quanto tempo ele estava ali, mas viram que ele já não exibia suas feições severas, indefectíveis, senão, apenas o semblante de um velho abatido. Mas foi por pouco tempo, uma fração de segundos talvez e a velha taciturnidade voltou: eles descobriram os segredos do pai.
O que fazem aqui?
Nada, apenas estamos brincando, olhando umas coisas.
Foi idéia dela.
Não foi não, eu apenas vi uma serpente entrando aqui e achei melhor ver onde ela se meteu, afinal poderia se esconder em algum canto que o senhor não visse e ela poderia picá-lo.
Essa não foi uma boa desculpa Eva e quanto a ti, Adão, não vejo só tua irmã aqui, mas a você também e quando um não quer, dois não fazem, tens tanta culpa quanto ela possa ter.
Mas não havia tranca nem nada e achamos que não fosse importante, já que estava tão vulnerável.
Mesmo assim vocês devem obediência a mim e se eu falei para não entrarem aqui não seriam necessárias trancas, minha palavra bastaria, mas vocês me desobedeceram e devem ser castigados. Eu dei tudo para vocês e o que ganhei, senão desobediência?
O senhor nos deu aquilo que achava bom para o senhor, não aquilo que nós realmente queríamos.
Que palavras são estas menina, eu sempre dei tudo do bom e do melhor e nunca deixei te faltar nada, nem a você nem a nenhum de teus irmãos, se não fosse eu vos ter concebido nenhum de vós existiríeis e apesar disso recebo apenas a ingratidão. Agora chega de falatório, não quero mais saber de vocês dois por aqui, saiam imediatamente desta casa e não voltem jamais, nem seus filhos, netos ou bisnetos; todos os vossos descendentes serão banidos deste local e aqui permanecerão apenas aqueles que me obedecerem e me amarem incondicionalmente. Daqui nada levarão senão, e antes que eu mude de idéia, suas vidas.
E assim foram expulsos e foi dada aos guardas e porteiros a ordem de jamais, em hipótese alguma, deixá-los entrar nos domínios de Adonai. Sem dinheiro nem bens, não foram muito longe e acabaram por montar uma espécie de acampamento pelas redondezas, onde Adonai podia avistá-los do alto de sua torre. Passaram fome, frio, sede, mas acabaram se arranjando e por ali foram ficando. Adão aprendeu a caçar, a preparar a terra e a cultivar trigo. Eva pastoreava cabras, fazia pães e colhia frutos na floresta. Irmãos apenas por parte de pai, e um pai ausente, também foram se arranjando nas intimidades e assim nasceram-lhes os filhos. Desta união e de seus filhos, muitas histórias já foram contadas, mas a nós, por ora, interessa-nos saber como andava o velho Adonai.
Do alto de sua torre ele, cada vez mais debilitado, física e moralmente, tentava acompanhar tudo o que acontecia em sua volta. Apenas tentava, pois, com o passar dos anos, quase ninguém mais ligava para ele, havia, sim, algum respeito, algo solene, mais para o campo das aparências em ralação ao ancião, mas de fato, poucos levavam a sério suas ordens e suas ameaças. É certo que ele já havia assassinado muitos de seus filhos e filhas que o desobedeceram e das maneiras mais cruéis possíveis, mas aos poucos as gerações mais novas foram se dando conta de que suas ordens eram delírios, exercícios de sadismo ou pura demência e ele foi ficando cada vez mais isolado em sua torre.
Inconformado com os rumos que sua obra havia tomado e com a rebeldia de seus filhos, brigando entre si, Adonai ainda teve poder para mandar destruir, pelo fogo ou pela água, ruas inteiras, mas isto também não teve o efeito desejado e a corrupção dos preceitos adonaianos continuou com mais intensidade. Então, como a última tentativa de retomar o controle, ele chamou, o único que ainda o ouvia e que a esta altura, havia sido alçado a condição de novo favorito.
Jesus (eis mais um nome que pode nos causar certa confusão histórica, mas as inconcebíveis coincidências grassaram durante a vida de Adonai), meu filho preferido, o único que me ouve e me obedece, teus irmãos e irmãs estão loucos, perdidos pela depravação da carne e pela corrupção do espírito. Só tu podes deter esta desenfreada lascívia que os consome. Quero que tu vás até eles e pregue minha palavra, faça com que eles encontrem o verdadeiro caminho da paz e da harmonia.
Mas pai, eles são muitos e não vão muito com minha cara. Se eu começar a querer dar sermão eles podem acabar comigo.
Não te preocupes meu filho, jamais te abandonarei e além disto, todo sofrimento que porventura eles possam impingir-te, recairá sobre eles em dobro.
Pai, o senhor já não tem mais a mesma força de antes, e eles já não acreditam mais que tu realmente podes cumprir estas tuas promessas, deixa eu aqui, no meu canto, com minhas discípulas, louvando ao senhor, e eles que fiquem lá, com ou sem lascívia.
Não, tu deves ir e deves levar minha palavra e se eles derramarem teu sangue, este servirá para purificar os pecados desta terra.
Como assim? Meu sangue purificando os pecados dos outros? Nem a pau.
Vá de uma vez, antes que eu mesmo te esfole e jogue tua carcaça aos cães.
Táá beeeimm! Mas vou logo avisando, se a coisa engrossar eu vou te chamar.
Vá de uma vez.
Como já vinha ocorrendo em outras oportunidades, o plano de Adonai não logrou êxito e a pregação de Jesus não foi tão convincente. Ele acabou pregado (literalmente) em uma cruz. Fazendo uma análise, à distância, dos fatos, nos parece que Adonai talvez não gostasse tanto de Jesus e apenas quis dar ao seu povo, um brinquedo para descarregarem suas tensões, suas raivas enrustidas e fizessem com ele o que bem entendessem, como fizeram.
Pai, por que me abandonaste?
Adonai não ouviu o último lamento do filho preferido, estava ocupado espionando por buracos de fechaduras, quem se deitava com quem nos quartos da casa.
Passados muitos anos deste terrível episódio, um certo Frederico, um dos tantos descendentes de Adonai, farto de tanta hipocrisia, resolveu por a termo uma farsa que já perdurava mais tempo do que mentes sãs podem suportar. Ele era um tanto intempestivo, muito astuto, de raciocínio afiado, cheio das idéias e sem papas na língua, mas a sua característica mais marcante era sua fealdade. Não sem exagero era chamado de o mais feio dos homens e este avesso de Apolo teve coragem de fazer o que muitos já haviam pensado em fazer, mas nem sabiam direito porque não fizeram. Frederico subiu ao alto da torre e lá matou Adonai. Assim a história daquela casa, que a esta altura já era uma cidade, continuou, como sempre, apenas continuou.

Sunday, November 07, 2010

A verdadeira origem do vento

Bruno queria saber de onde vinha o vento. Tinha ouvido falar em deslocamentos de massas de ar quente que sobem, de ar frio que descem, mas, ainda sem ter ouvido, sabia sem sombra de dúvida, a verdadeira origem do vento: as árvores, quando dançam, quando querem espantar um pouco dos insetos e pássaros ou quando estão com calor, agitam os galhos, abanando-se com as folhas. O ar, ligeiro ganha rumos diversos e sai dizendo-se vento.
O pai segurou sua filha e olhou fixamente no fundo dos olhinhos negros: enxergou um velho chorando, enquanto a criança ria e fazia caretas. Ele sentiu o peso da própria insignificância e fragilidade, mas não podia deixar a pequena perceber a falência do herói. Segurou-a mais um pouco e deu tantos beijos quantos não a sufocassem e foi embora.
Diário de viagens para Nova Orleans

Todas as vezes que estive em Nova Orleans, pude desfrutar dos sons de melancias se partindo no asfalto quente. Não pense que se trata de alguma bizarrice dos negros do Delta do Mississippi. O som açucarado mergulha o visitante na atmosfera entremeada de densidades palpáveis, especialmente por sensações táteis, de algumas regiões nem sempre utilizadas do cérebro. Nova Orleans não cabe em melancias intactas.
O calor parece ter uma relação especial com a cidade. Eleva os vapores dos pântanos, do asfalto e dos suores, adensa a atmosfera. Caso não ocorresse a desorientação dos sentidos, o visitante poderia verificar essa cumplicidade do calor com a cidade. Em Nova Orleans os cinco (ou seis) sentidos ultrapassam suas atribuições originais e alternam suas funções. Em Nova Orleans as pessoas têm mais do que cinco (ou seis) sentidos.
A oscilação histórica da posse das planícies litorâneas do Mississippi fez se alternaram espanhóis, franceses e ingleses no domínio das terras e das gentes. Aos negros coube a escravidão nas plantações de algodão. Esta mistura temperou a cidade com sons de histórias antigas, de sabores agridoces e melodias assíncronas. Lá o tempo também tem uma cadência especial. Quando estive lá, vi como os olhos amarelos dos negros ditavam o ritmo da passagem das horas. Também vi mãos negras escondendo a brancura das palmas, pois as cores não lhes eram todas permitidas, apenas o branco do algodão, o preto da cozinha, o amarelo dos olhos e o azul da alma. Surgiu uma alma blue.
O Blues, das canções carregadas com tristezas atávicas e melodias intensas, pode não ter nascido exatamente em Nova Orleans (há muitos nascedouros possíveis, da África ao Mississippi), mas seu solo aquecido e úmido soube fazer brotar musicalidades nativas, como Jack Dupree, ou compartilhar ritmos com os vizinhos do Delta, B.B. King, Robert Johnson e Charlie Patton. Todas as vezes que vou para lá, vejo negras minhas mãos e sinto azul minha alma.
Em Nola, o visitante sempre perde algum pequeno objeto, do tipo uma lasca de unha, um dente de pente, um botão. Perdi todos estes objetos lá e para recuperá-los, é preciso voltar e procura-los. É assim, para resgatar alguns pequenos fragmentos que sempre retorno, mesmo sem jamais ter ido fisicamente. Para Nova Orleans, podemos ir sempre que escutamos a inconfundível balada do Blues, ou sentimos odores de melancias se partindo no asfalto quente.


Luiz Mendes