Saturday, December 18, 2010

Cinco histórias brasileiras

1 - Ao som do capim seco sendo pisado, Samuel Almeida pensava e lembrava. Pensava na pouca comida alojada no estômago e lembrava de quando seu pai contava do tempo em que chovia e ele colhia feijão e mandioca. Pisava mais, agora em pedra e terra ressecada; na sua frente, erguidos de ameaças, ferros e concretos engolindo cana e cuspindo progresso. Samuel Almeida não trazia arma, abriu o peito e se fez Quixote: bebeu a água carregada de vinhaça e prostrou-se na terra, para não mais fazer dobras no capim seco.

2 - Ubiratam Rosso segurava o palheiro e desviava dos pés de eucaliptos. Desviava, desviava e acabou retornando ao local de partida. Nova tentativa, outro palheiro, e novo retorno. Parou para sentir o frio do Minuano, mas este também desviava e se perdia entre os troncos. Não havia mais espaço para o homem e apagou o palheiro. Ubiratam Rosso escolheu uma, entre as milhares de plantas, e se fez árvore. Um galho com forquilha alojou seu pescoço enquanto o resto do corpo balançava ao sopro do vento perdido.

3 - No meio da selva, Francisca Cabral fazia as tarefas dos filhos mortos. Sangrava as árvores, enchia as coités, defumava e trocava por um pouco de farinha a grande bola de borracha. Nunca reclamava, nunca deixava de recolher o látex, nunca falava com as pessoas, só com as seringueiras. Contava como estava cada vez mais fraca, perguntava se os filhos estavam bem, se o marido ainda vivia e perguntava o que era felicidade e se era verdade que existiam pessoas felizes. As respostas, só Francisca ouvia.
A última vez que Francisca Cabral foi vista, entrava na selva. Há quem diga ouvir a conversa dela com as árvores. Agora são as plantas que fazem perguntas.

4 - Da praia, Félix de Souza conseguia enxergar a Ilha dos Remédios e o butiazeiro. Ele não gostava de passar nestes lugares e sempre observava bem antes de por o barco na água. Se percebesse qualquer sinal vindo de lá, não saia para o mar. As pessoas falam que Félix, olhando para a ilha e para o butiazeiro, sabia quando o perigo estava por perto.
A cada retorno, ele trazia menos peixe; galhos e garrafas sem mensagens enchiam a rede. Félix de Souza percebeu um sinal, a despensa vazia o fez partir mesmo assim e, em alto mar, uma grande embarcação faz gravetos do seu barco. Agora, os demais pescadores tentam enxergar um sinal, da ilha, do butiazeiro ou de Félix.

5 - O carrinho de tração humana, abarrotado de papelão, garrafas de plástico, latas de alumínio, revistas, algumas pedras de craque, uma garrafa de aguardente e Pedro João Dias, aos 6 meses de idade. Na tração, se revezando, Catarina da Rosa e Aluisio Correa Dias. Fora o bebê, o craque e a cachaça, o casal vende todo aquele lixo por dez reais. Catarina e Aluisio não passam dos 20, aparentam 30 e se conheceram na rua, onde moram. Hoje tiraram a sorte grande: revirando o lixo em uma rua de bacanas, encontraram um pacote cheio de pedras de craque —nem foi preciso passar na Cracolândia — e hoje vão fumar pala última vez. Pedro João Dias será encontrado, perto de duas carcaças inertes, será enviado para um hospital, passará no Jornal Nacional, tirarão muitas fotos, e será enviado para adoção. Negro e soropositivo, Pedro ficará no abrigo infantil, o resto da sua vida.
Escritos para as sombras

Guardado na terceira gaveta da esquerda, na mesa de trabalho de Aderbal Fuentes, ao lado da pasta e da escova de dentes, de uma revista velha e de alguns clipes e alfinetes, esconde-se uns manuscritos. Folhas de caderno, de blocos de recados, de agendas, de pacotes de cigarros. Tudo cronologicamente organizado. São cartas sem destinatário, pedidos de desculpas, invenções de si mesmo, desabafos, atestados de existência, alforrias e outras mentiras que os humanos contam para o espelho. O autor imagina tais fragmentos como sendo um todo, coeso, mosaico labiríntico, mas uno. Aderbal prefere quase não pensar nos manuscritos, mas sabe que aquelas palavras, começadas a ser juntadas há mais de 20 anos, compõem uma mensagem de renúncia da lucidez, um abrir mão da sanidade e, mesmo já tendo decorado linha por linha, precisa folhar o calhamaço quase todos os dias. Necessita ver e tocar os papéis, pois sabe que assim que sua mensagem for enviada, estará assumindo a loucura ou deixando a vida.
Já esteve muito perto de colocar as folhas na caixa de correio, faltaram uns míseros selos, ou então, um bater de asas de besouro o distraiu. Às vezes põe em um envelope oficial, carimbado com brasões imponentes e anda pelas ruas como quem segura um ofício ou despacho de alta importância para o Estado. Leva seu embrulho passear pela cidade e quando cansado, para e toma um café, não sem antes, repousar o pacote com solenidade sobre a mesa, para que todos os passantes possam ver quantos carimbos e logotipos vistosos ele traz.
Aderbal trabalha na mesma repartição há vinte e cinco anos, quase o mesmo tempo de casado, tempo suficiente para criar duas filhas e um filho. Bebe pouco, não fuma e tem boa saúde, bons dentes, quase nunca vistos. Houve quem o alertasse do comportamento pouco recatado da esposa, mas ido o viço, isto parece ter parado, agora ela dedica-se à religião. Os filhos, sem carência do herói, almoçam com os pais três ou quatro vezes por ano. Na juventude pensou que poderia ser poeta, agora pensa apenas no dia em que vai enviar sua mensagem, ou deitá-la ao lixo.
Comecei a escrever este pequeno artigo em 19 de setembro de 2010 e espero estar completamente enganado.

O que vejo diariamente nos jornais e noticiários, por mais que seja uma quantidade considerável de informação, nem sempre se traduz em igual nível de compreensão dos acontecimentos. Consumo notícias e tento decifrar o mínimo possível, se é que esta seja uma tarefa a qual eu esteja preparado, mesmo assim tento entender um pouco do que ocorre com nosso mundo e o pouco que percebo não é animador.
O processo de entrincheiramento dos EUA e dos países da zona do Euro contra as invasões de imigrantes (de raças inferiores?) evidenciam a postura egoísta destas nações, que só toleram a entrada dos pobres, enquanto puderem aproveitar a mão de obra barata para fazerem seus serviços “indignos”. Apesar das fronteiras cada vez mais fechadas, crises financeiras vão sendo sistematicamente escamoteadas sem, no entanto, conseguir uma real vitória. A queda nas produções industriais das tradicionais potências do norte indicam que estes não são fatos isolados, mas uma série de evidências do fracasso do modelo capitalista. Mas o que poderia ser motivo de alegria para os críticos do sistema, soa como um sinal de alerta para conseqüências mais tenebrosas: o que mais poderia impulsionar a produção, dentro do modelo capitalista, em tempos de retraçao do consumo? O que poderia incrementar a indústria até atingir o pleno emprego das forças produtivas? O que poderia cessar a tendência de deslocamento do centro do poder? A mais terrível das respostas: a guerra.
Enquanto a esquerda dá alguns passos tímidos na América Latina, vemos a extrema direita (às vezes fascista) ganhar prestígio e poder em vários países ricos e, a continuar este cenário, Barack Obama, mesmo que consiga a reeleição, dificilmente conseguirá emplacar um sucessor, abrindo caminho para a direita conservadora dos Tea Parties. Só isto já poderia justificar os temores de uma ação militar das potências em busca dos quintais perdidos e qualquer coisa pode servir de pretexto, desde o desmatamento da Amazônia, até a existência de células terroristas ou de narcotraficantes dominando as reservas de água doce.
Mesmo sendo sombria esta previsão (talvez até um tanto exagerada) não há como ignorar que o cenário uma guerra de grandes proporções, a ser desencadeada nos próximos anos, está sendo montado, resta saber exatamente onde o conflito vai acontecer. Oriente Médio, mais precisamente a partir do Irã, talvez Coréia do Norte ou quem sabe, ainda que aparentemente improvável, na América do Sul, por exemplo.
Este meu alarmismo, exagerado para alguns, não se baseia apenas no que acontece atualmente, senão em uma leitura de exemplos que a história nos dá, mais precisamente em um texto de Walter Benjamin, publicado em 1936, A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, onde o autor alertava para a guerra eminente que se estava armando na Europa.

O fascismo pretende organizar as massas sem alterar o regime da propriedade, que as massas tendem, todavia, a rejeitar. Acredita superar essa dificuldade permitindo às massas expressar-se (mas sem reconhecer seus próprios direitos). As massas têm o direito de exigir uma transformação do regime de propriedade; o fascismo quer permitir que se expressem, mas conservando esse regime. O resultado é que tende, naturalmente, a uma estetização da vida política. (p. 252)

Quando vemos que em níveis globais se acentua cada vez mais a concentração de riquezas nas mãos de um número reduzido de pessoas (a parcela mais rica da população mundial, apenas 10%, dispõem de 71% de toda a riqueza do planeta) e vemos os meios de comunicação de massa traçarem um perfil caricato medianizado e padronizado das pessoas (antes, consumidores), em todos os cantos da Terra, não podemos deixar de fazer uma associação com as palavras escritas em 1936, o que as torna sombriamente atuais. E mais sombrios são os seus desdobramentos.

Todos os esforços para estetizar a política culminam num único ponto. Esse ponto é a guerra. A guerra, e tão-somente a guerra, pode fornecer um objetivo aos grandes movimentos de massa, sem entretanto tocar no estatuto da propriedade. É assim que as coisas podem ser traduzidas em linguagem política. Em linguagem técnica, elas serão assim formuladas: só a guerra permite mobilizar todos os meios técnicos de nosso tempo sem nada alterar no regime de propriedade. (p. 252)

Benjamin, por sua vez se utilizava do manifesto de Marinetti, publicado em La Stampa, de Turim, sobre a guerra da Etiópia e sobre este manifesto, o autor esclarecia:

Para ele, a estética da guerra apresenta-se do seguinte modo: quando o uso natural das formas produtivas é paralisado pelo regime da propriedade, o crescimento dos meios técnicos, dos ritmos, das fontes de energia, tende a um uso antinatural. Esse uso antinatural é a guerra, a qual − pelas destruições que traz − demonstra que a sociedade não estava bastante madura para fazer da técnica o seu órgão, que a técnica não estava bastante elaborada para dominar as forças sociais elementares. A guerra imperialista, com suas atrozes características, tem por causa determinante a defasagem entre a existência de poderosos meios de produção e a insuficiência de seu uso para fins produtivos (noutros palavras, o desemprego e ausência de mercados). (p. 253)

Ainda que os EUA e Europa enfrentem uma crise financeira ─ mais pela voracidade de suas elites do que por falta de recursos ─, eles não pretendem diminuir suas riquezas nem abrir mão de sua liberdade de controle sobre o resto do planeta. Além disso, os EUA enfrentam uma crise de identidade enquanto nação dominante provocada pelos fracassos no Afeganistão e no Iraque, além do crescimento econômico da China, entretanto é inegável sua supremacia bélica e sua capacidade de produção e consumo interno, assim como é inegável a capacidade de imposição do padrão American way of life na cultura mundial, derivado do eurocentrismo. Mesmo se considerarmos que os EUA sejam o centro irradiador dos produtos de consumos cultural, o padrão europeu branco e cristão continua sendo o modelo predominante na indústria cultural, assim como ainda é no velho continente onde muitas das grandes fortunas, oriundas da exploração da mão de obra e das riquezas naturais dos países periféricos, vão parar. Estes que também não são fatos isolados, apontam para uma necessidade de reformulação do capitalismo, que talvez os modelos keynesianos de bem estar social não consigam mais responder, restando a opção mais violenta.
Esta guerra será, como a tantas outras, uma guerra imperialista, onde os donos do poder tentarão impor suas vontades em nome dos mais altos ideais humanitários de liberdade e democracia, onde as grandes potências tentarão impor sua supremacia aos que tentarem ousar a questionar as verdades professadas na grande mídia. Diante deste cenário, o que nos resta a fazer? Nós, as massas, temos de nos rebelar contra estes 10% que ditam os rumos do mundo. Há que se negar o modelo que nos é imposto, em que você só é considerado cidadão se for consumidor, onde reproduzimos em escala menor os mesmos modos de dominação e exploração dos grandes capitalistas (qual pequeno burguês-classe-mediano-imitação-patética-dos-ricos nunca explorou a mão de obra barata de uma diarista pobre e negra?). Se o socialismo fracassou, também o capitalismo é um fracasso, pois um sistema que só privilegia uma minoria à custa da miséria de milhões e da destruição dos recursos naturais, não pode ser considerado um exemplo de sucesso.
Enquanto o mínimo de ração nos for ofertado, um pouco das migalhas do luxo dos ricos, outro tanto da falsa ilusão de que as coisas são assim porque são e a descarada ilusão da liberdade, a revolução não eclodirá, pois estaremos muito bem assentados em nossas zonas de conforto, resolvendo nossos grandiosos problemas da prestação do carro novo ou das férias em Florianópolis.
Indisciplinado demais para fazer postagens regularmente, Paulo Horn me pediu que publicasse alguns de seus escritos. Sendo que um pai não pode negar certos pedidos dos filhos, eis que postarei, mais ou menos a cada semana, um texto horniano. Se estes escritos receberem comentários mais elogiosos do que os meus,algo bastante provável, excluirei-o sumariamente deste espaço e darei-lhe uma boa surra.


Borra de café tintado nas fitas de máquina de escrever

Havia um copo de café, sujo como almofada de carimbo velha, que estava lá, no centro da mesa, intacto. Ainda restavam algumas centelhas de calor nele, mas o mais provável era que elas se dissipassem no ar condicionado. Mais tarde eu viria e ainda absorto com tudo que ocorrera desde o momento em que pegara o carro esta manhã e saíra pela rodovia rumo ao trabalho até o descanso na cadeira e tomaria um longo gole do café já frio, engolindo a tinta fria de carimbo com dificuldade, em que jogaria fora o resto do copo de café. Mas por enquanto havia o copo de café com centelhas de quentura em cima da mesa, junto com diversas folhas datilografadas em máquina de escrever antiga, rabiscos de caneta tinteiro e borra de fita de máquina. Alguns livros também estavam largados na mesa, por cima do criado mudo, ao lado do copo de café, com suas páginas displicentemente abertas, marcadas por papel picado com borra de fita de maquina de escrever.
Houve um velório e, talvez por isso, o papel picado de carnaval caiu da estante em câmera lenta. Cada vez que parecia repousar no tapete levantava em uma revoada, dançarino nos eixos do mundo, levando num instante a borra de café para longe do paladar, para longe das comentadas tarde de verão, escritas com fita de máquina em papel de quinta, na quina da sala, segurando as paredes num conceito de arquitetura que parecia vir de trás, de um ângulo totalmente novo, de um ângulo palavrar, de um ângulo escritural, entre escombros de letras perdidas nas dobras de livros não escritos que o acaso roubou da memória e que a memória roubou da escrita, e que a escrita roubou da perdição. E perdido nesta revoada de confete surgia uma idéia solitária, observando a dança como quem espera a passagem de um cometa com um desejo no arpoador do coração, buscando por entre estrelas um infinito de marcações no quadro negro da vida, na vida negra do quadro; quadrado cartesiano para as imperfeições do pensamento, das letras perfeitas, imperfeitas na criação da palavra que junto com você formou aquele ângulo triste no arpoador do meu coração.
Sim, sim, mas antes dessa revoada carnavalesca houve o enterro do natal com sua estrela guia norteando os palmos de terra cavados na estrada do dia, da noite e adentro, e você, meu presente, despindo-se entre as paredes de palavras e conceitos e excitações; dançando revolta como papel de parede picado, tinta descascada nas curvas venosas das horas, mostrou-me incerto como um pequeno filhote de furão escondido nas gavetas da cozinha de idéias que logo, logo, tornar-me-ia um domesticado filhote de gato, que não mais iria buscar a noite para cantar a sinfonia de miados síncopes, de sincopada melodia de cordas felinas de violino; e procuraria sempre minha caixinha de areia para despejar minhas tristezas e me entreteria com tua beleza acachapante até dormir fetal bola de pelo, no teu colo como se isso fosse grande coisa. Mas as coisas sumiram como grão de areia em baixo da unha.
A borra de café de fita de máquina de escrever aparecia ainda mais forte neste ano novo e o ângulo triste foi transformado em ângulo palavrar. As palavras angulares deram lugar a cantos, sons e becos, botas e brotos de brilhos de olhar, que me pegaram de canto numa escritural inovação das coisas matinais, como grãos de café que já brotam branquiais nas turvas águas de tinta que são as lágrimas de quem bebe tinta de máquina de escrever quando recita poemas nas pistas e autopistas dos postes de paredes de livros e folhas e cantos de bocas e risos de todas aquelas que sorriem para os olhos de um filhote de gato domesticado por você. Como eu. Mas então este ano novo apresentou-se angular e palavra no paladar e eu não tinha idéia de onde buscar novas palavras para erguer a arquitetura deste livro não escrito que eu vinha escrevendo até te conhecer e perder a inovação na borra do café. E borrado aparecia o céu sobre a esquina da folha em branco, e a tinta caminhava, teclando espaços em branco que preencheria com ângulos tristes e que, talvez revoltado com todo esse gosto amargo de não, não e não deixasse essa lacuna para que vocês preenchessem como bem quisessem, e não atrapalhassem as lamurias que tijolos rijos de resmungos eu ia erguendo em paredes de palavras tristes, de triste palavrear.
Dizem por aí que um pouco de palavreado poderia me tornar um escritor novamente ou realmente, e que tentar erguer paredes com ângulos palavrares era inútil, pois palavras erguem dunas com pó de café que sobra no coração. Pois eu até concordo que os ângulos palavrares são instáveis demais para erguerem qualquer coisa, mas sempre me perco com seu dedo dançando com os incautos últimos guerreiros de café borrado de tinta de máquina de escrever no meu lábio, plantando um silêncio cafezal e assim como uma traça não tem culpa de se alimentar de histórias, você não tem culpa de se alimentar de ângulos tristes. Botar a culpa disso em você seria negar toda a roda gigante por onde o mundo muda e retirar aquela etiqueta que identifica todo melancólico homem, sentado num banco de praça, com vários espelhos ao redor, um pombal de homens pegos no redemoinho de ângulos tristes que um dia com certeza foram ângulos palavrares até o primeiro e pequeno toque seu que muda tudo roda a roda e reduz a verborragia que é característica daquele cruzamento de idéias que são, em parte e nunca em todo, os ângulos palavrares.
Sabemos então que os ângulos tristes que condensam os homens um dia foram ângulos palavrares que tentaram serem paredes de conceitos e excitação e que ergueram dunas de borra de café tintado nas fitas de maquina de escrever, e que somente são tristes por característica úmida que rola ao rosto quando você não se despe e ainda que isso dure todo o infinito de coisas imutáveis, nunca é culpa sua e sim das fantasias desenhadas no arpoador do coração. Bem pensado, te eximir da culpa – mesmo que seja impossível pôr culpa alguma em você – seria negar também sua natureza destrutiva em salto alto, e construtiva em risos e lábios e reflexiva em paixões arrebatadoras. Havia então uma trindade não santa, paradoxal que era além de tudo criadora de ângulos tristes no arpoador de corações condensados pela simples passagem de um sussurro, de um suspiro, de uma você. Mas pra você isso é instinto. E instintivamente eu fui até a garrafa térmica, sem lembrar que a borra de café estava ainda mais forte no paladar, e fui maquinando e erguendo paredes, criando janelas, fugas, vãos, vasos, verbos e tudo era ângulo reto, torto, todo tinta de máquina de escrever velha; e verborrágico como um arquiteto de livros, romances, contos, contas, cantos, curtos espaços de branco deixava borrado para o espaço de verbos ainda vindouros e aquele livro que escrevendo ainda não escrevi ia se formando um edifício de palavras caídas de dicionários fictícios, empilhados em hiatos abertos por frases não ditas, escritas nas borras das fitas, nas máquinas de café, no amarelo do tempo que fica em quem toma demais.
Então de repente tudo desmoronava como um castelo de cartas de amor mal escritas pelo acaso de versos recitados nas sombras das dunas de pó de café, que se erguem cada vez mais borradas nas fitas de máquina de escrever, coadas em incautos sonhos recitados no arpoador do coração, e despidas pela luz que surge do teu despir-se, sobrecarregando todos os monumentos construídos sobre escombros de línguas esquecidas com ângulos palavrares rústicos, que a arqueologia de alfabetos entristecidos decidiu ignorar na procura por uma forma de reverte a tristeza que emana melancólica da beleza que você reflete. Claro que tentaria em vão reerguer suas paredes entre os escombros de letras perdidas nas dobras de memória que o acaso roubou das entrelinhas de versos de cantigas de roda, que rodopiaram feito folhas secas no mar de tinta que rola dos olhos e que pinta a face como um porta-estandarte de um carnaval sem festa, uma festa sem risos e uma fala sem todas as felicidades conhecidas pelas letras e alfabetos. E ali saberia que esse conceito arquitetônico que em vão tentava fazer valer não poderia ser estabelecido com ângulos mutáveis, com ângulos instáveis e que a instabilidade, embora fonte criativa de todo ângulo palavrar, é a ruína que transforma todo edifício de idéias, de palavras, de frases, fórmulas, pensamentos, prantos, portas de lacunas soltas nas folhas não escritas pela idéia, em dunas de pó de café extraído das sobras de canetas tinteiro borradas nas páginas não escritas de textos não tratados, de tratos não tolhidos e passados datilografados.
Enfim, acabara a tinta de máquina de escrever borrada no coador e espremida dentro de um último copo de café; aquele que eu tomaria devagar, recostado na cadeira e abraçado pela quentura que, se esvaindo, deixava ainda mais forte o gosto de tristeza no paladar. Aninhado como uma bola de pêlo no seu colo, acreditando ser mais do que realmente era, ia me tornando também um ângulo triste, trocando a afasia por um lento ronronar. Sim, havia caído todo tipo de palavra, acabado todo tipo de café, soterrado todo ângulo palavrar ou triste, mas restava ainda a esperança, este ser incauto que acredita piamente ser capaz de contornar a tristeza e reverter a incerteza, apenas por adorar um sorriso. O ano novo começara forte, como os outros.

Paulo Guilerme Horn

Sunday, December 12, 2010

Botbine family

Conheci George Botbine há uns cinco anos, em uma entidade para reabilitação de ex-alcoólatras e, além de tentar largar a garrafa, Botbine tentava também controlar outro vício, ele era o que os especialistas chamam de viciado em sexo. Não sei muito bem como os especialistas conseguem definir exatamente isto, se é pelo número de relações ou se estas relações estão te trazendo problemas, mas se for pela segunda opção, estou nesta estatística, pois a maioria das minhas transas acabaram em problemas, e nem foram tantas assim.
Mas George era do tipo compulsivo, tanto que depois que estabelecemos o mínimo de amizade para entabular um diálogo com meia dúzia de palavras, o sacana foi logo propondo uma fóda. Não dei muita trela e fui logo o desencorajando com um direto do queixo. Não que tenha alguma coisa contra viados, mas o cara era doente e pra ele tanto fazia trepar com homem ou com mulher, desde que estivesse fornicando. Não me admira que também estivesse tentando largar a bebida, afinal quem nunca ouviu falar a respeito da ausência de proprietário de certas partes do corpo dos bêbados. Botbine devia acordar das ressacas com dor de cabeça e sem poder sentar direito.
Pelo jeito ele não ficou muito furioso com o queixo deslocado e continuou a me procurar nas reuniões dos ex-bêbados e não precisei mais dar nenhum direto. Tanto é que até marcamos para tomar uns tragos depois das reuniões. Coisinha pouca, só para não parar de forma abrupta. O cara não era mau sujeito, tinha classe, não misturava bebidas e bebia devagar, enquanto eu entornava uns três ou quatro copos de cerveja, ele ainda estava na metade do primeiro (até acho que ele nem precisava freqüentar as reuniões) e não se alterava muito enquanto enxugava.
As reuniões dos bebuns eram sempre nas terças-feiras, um bom dia para uns tragos (acho que é por isso que não deram muito certo, os organizadores deveriam ter escolhido um outro dia, menos propício a idas no bar) e acabou sendo automático, saíamos dos encontros e íamos, eu e George, até o bar do Schimit. Quando o Schimit soube da minha iniciativa de procurar a entidade antialcoólica, ele deu todo o apoio e até me pagou uma cervejas para comemorar, sem falar que a primeira, das terças era por conta da casa, e como não podia deixar de prestigiar quem me dava tanto apoio, levei meu novo amigo. Foi numa destas terças que ele me explicou 6melhor como era aquele negócio de vício em sexo.
Não sei direito, mas acho que Botibine era um cara de boa família, sempre tinha grana para táxi, andava bem arrumado, com roupas bacanas e falava difícil. Devia estar perto dos cinqüenta e era alto e magro, uma vasta cabeleira começando a branquear. Se eu não soubesse de minha preferência exclusivamente por mulheres, poderia afirmar até que ele era um cara de boa aparência, para não dizer bonito. Bem diferente de mim, que quase sempre estava empenhado no Schimit, alternava minhas duas calças jeans e meia dúzia de camisetas, jamais andava de táxi e era (talvez tenha piorado) feio como a peste e careca. Se eu fosse que nem ele, certamente seria classificado como viciado em sexo, só não ia cantar marmanjos, no máximo um daqueles travestis que parecem mulheres mais bonitas do que qualquer da barangas que eu já peguei.
Voltando à patologia do meu amigo, ele me explicou como não podia mais se controlar e da necessidade em fazer sexo todos os dias, mais de uma vez por dia. No começo ele entrava em chats de relacionamento marcava um encontro com alguma dona solitária, mas estes encontros esporádicos começaram a ser insuficientes e ele começou a contratar profissionais. Nessa época ainda era casado, mas claro que a coisa não poderia durar muito e a mulher foi embora com os dois filhos e uma bela indenização (o cara deveria ser mesmo muito rico). Quando não conseguia encontrar nenhuma das profissionais que o atendia, ele pegava qualquer uma na rua e quando essa brincadeira começou a ficar muito cara, ele passou a vagar pelos becos e a pegar qualquer um que quisesse um pouco de sacanagem, putas velhas, mendigas, ajudantes de pedreiros e agora tanto fazia se ele comesse ou desse, o que precisava era fazer sexo. Isto lhe rendeu muitos dissabores, pois começou a se atracar em qualquer canto, banheiro públicos, terrenos baldios, construções abandonadas e de vez em quando era preso por atentado violento ao pudor. Era hora de procurar ajuda especialmente porque Botbini, que já me confidenciava quase tudo, já não andava levantando direito. Também pudera. De qualquer modo, além das despesas com a putaria, a viadagem e a bebida ele agora, se quisesse ser ativo, tinha que comprar Viagra, ou seja lá que droga usasse. Depois da separação não sobrou tanto, especialmente para os padrões dele e antes que acabasse na sarjeta, procurou um psiquiatra. O médico entupiu George com um punhado de remédios e ele passou a ficar mais tranqüilo, só de vez em quando é que tinha uma recaída, mas nada comparado aos velhos tempos de sacanagem braba.
Não que eu precisasse, mas perguntei a Botbine como funcionava esse negócio de pílula para endurecer, só por curiosidade científica. Ele explicou que não era tomar e ficar de pau duro o tempo todo, mas que quando estimulado a ereção vinha com incrível facilidade, mas nada adianta estar duro se não souber usar direito, me alertou, não sei porque. Ainda por curiosidade científica, perguntei se não tinha sobrado nenhuma, só para eu ver como era, não que precisasse e muito menos que eu não soubesse usar minha ferramenta. Ciência, apenas. Botbine me deu logo duas caixas. Tentei imaginar o motivo que levava alguém a andar com toda aquela droga, mas logo desisti, nem quis perguntar, apenas aceitei a oferta, assim como um pesquisador aceita a amostra de um espécime raro.
Li com atenção metade da bula e peguei minha agenda de telefones. Adriana, casou. Ariane, se mudou para o norte. Beatriz, não lembrava mais de mim. Cláudia, morreu mês passado. Daiana está presa. E assim continuei com minhas infrutíferas tentativas até quase acabarem os créditos do meu cartão de orelhão, quando finalmente consegui falar com Soraia, uma coroa enxuta que conhecia há alguns anos numa festa nostálgica dos anos sessenta. Ela disse que lembrava de mim e disse que ainda não tinha perdido as esperanças de receber minha ligação, isto me animou. Marcamos para eu passar no apartamento dela na noite seguinte.
O prédio era luxuoso caro e Soraia não estava mais tão enxuta quanto na festa dos anos sessenta, penso que talvez minha memória tenha me traído e talvez nem na festa ela fosse enxuta, mas agora não tinha mais o que fazer. Antes de sair de casa segui as instruções da bula e tomei a super pílula que me transformaria em um super-homem e para garantir o resultado, aumentei um pouquinho a dose, na verdade dobrei a quantidade. No caminho botei as mãos nos bolsos e fui mexendo com o belo adormecido, só para me certificar que a droga funcionava mesmo. Assim, quando ela abriu a porta e vi aquela velha magricela e com uns dentinhos muito gastos e amarelados no sorriso, fiquei parado sem saber o que falar ou fazer. Minhas orelhas queimavam, não conseguia respirar direito e parecia que tinha uma chaleira quente em cima da minha cabeça, mas meu membro estava rígido como um pedaço de ferro. Nada mais restava a fazer senão entrar e fazer o serviço. A bula dizia que não deveria ingerir álcool, mas mesmo estando com o membro já pronto, o resto de mim ainda não conseguia a se acostumar com a visão de Soraia, pedi algo para beber e ela trouxe uma generosa e salvadora garrafa de whisky. Bebi logo umas três doses e minhas orelhas queimaram mais ainda, até meus olhos pareciam que queriam saltar das órbitas.
O mal-estar aumentava e já não entendia mais o que ela falava então, sem alternativas, agarrei-a e fui logo metendo minha língua dentro daquela boca que mais parecia um esfregão velho. Ela não perdeu tempo e entregou-se às minhas investidas de maneira dócil e servil. Eu afundava meus dedos na poucas peles e ela se jogava por cima do meu corpo. Como minha ereção não era fruto da minha vontade e como não sabia quando ela passaria, tratei de encontrar uma posição confortável, deitei de barriga para cima e repousei minha cabeça em um travesseiro (minhas orelhas se incendiavam) e deixei que ela fizesse o que quisesse, acho até que cochilei por uns instantes, só acordando quando sentia uma língua entrando em minha boca. Não sei se sonhei, mas lembro de ouvi-la me xingar, chamar de maldito tesudo, filho da puta insaciável, lazarento gostoso e tudo o que tinha a fazer era dar uns tapas nas murchas ancas enquanto as pílulas faziam o resto do trabalho.
Foi uma longa noite e de manhã, quando julguei que Soraia estivesse dormindo, levantei, vesti minhas roupas e fui para a porta, mas ela estava acordada. Ela deve ter dito algo, mas apressei o passo e sai logo do apartamento, antes que ela levantasse e quisesse me abraçar ou coisa parecida. Meu cérebro doía como se tivesse tentado derrubar uma parede à cabeçadas. Fui para casa, mas antes dei uma passada no Schimit, precisava comer um ovo cozido ou um bolinho de carne e tomar um café preto. Botbine estava lá.
─Que merda! Estas pílulas deixaram meu pau duro e irresponsável. Comi uma velha magricela de uns 70 anos. Toma, isso é coisa pra maluco, como não tem nenhuma gostosinha querendo dar pra mim, é melhor eu não ficar com essas porcarias, senão vou traçar só bagulho.
Botbine deu uma gargalhada meio forçada e quando ia falar alguma coisa saí. Passei no mercadinho, comprei uma garrafa de pinga e fui para casa. Ainda não estava bem e a cachaça começava a aquecer minhas entranhas e aliviar meu remorso. Aliás nem sei por que estava me sentindo constrangido, afinal não era a minha primeira velha, nem a primeira feia, talvez nem fosse a última, mas e se ela pensasse que tudo aquilo era por atração à ela? Eu precisava remediar a situação e liguei marcando novo encontro, ela ficou surpresa, mas não declinou e à noite lá estava eu à sua porta, sóbrio, sem super pílulas e feio como sempre. Entrei e enquanto ela preparava um trago, percebi na mesa da sala, dois copos de whisky pela metade.
─Tem visita?
─Ah! Não é ninguém, só meu filho que veio dar um beijo na mamãe. Ele está no banheiro.
Botbine apareceu, impecável como sempre.
─Ora, ora. Se não é meu velho amigo Charles Trezinni.
Fiquei com uma baita vontade de enfiar a mão na cara daquele cretino, mas preferi deixar para lá, afinal o filho da puta era ele. Conversamos amenidades, como se fossemos bons vizinhos em uma manhã de domingo na primavera conversando enquanto as crianças brincam no quintal e nossas belas esposas preparam o almoço.
─Sabe mamãe, Trezinni é poeta e até acho que já publicou uns dois ou três livros.
─Na verdade só tive dois trabalhos publicados em coletâneas. Faço alguns serviços de free lance para jornais e revistas.
─Mas é apenas um primeiro passo, tenho certeza que assim que descobrirem seu talento não faltará quem queira publicar seus livros.
Que filho da puta falso, até outro dia era um louco fodedor e alcoólatra semi arruinado, agora tava ali me zoando. Mais do que nunca me decidi a foder com a mãe do cretino nem que tivesse de comer Viagra com farinha e se ele bobeasse, fodia o rabo dele também. Nos cumprimentamos cordialmente e ele saiu. Peguei a garrafa e comecei a tomar no gargalo mesmo, enquanto Soraia preparava uns pasteizinhos de atum na cozinha. Aquela cena todo, como eu havia chego até aquele ponto, as reuniões dos bebuns, o Viagra, minha vida patética me fizeram como que despertar de um estado de torpor. Decidi sair daquela casa e daquela família de loucos, mudar, arranjar um emprego sério, comprar uma casinha, casar como uma boa mulher que cuide de mim, ter filhos para poder correr com um cachorro e, quem sabe, ser feliz. Soraia trouxe os pastéis, estavam muito bons, comeria só uns três e depois sairia de uma vez. Tomei mais uns goles e senti aquela língua velha entrando em minha boca. Talvez só esta última trepada, para provar que não preciso de pílulas e depois mudaria de vida. Como era de se esperar brochei e tive de satisfazê-la com língua e dedos, acabei dormindo no aparamento da senhora Botbine. Pela manhã ela me deu um punhado de dinheiro, era mais do que eu ganhava em um mês todo.
─Compre umas roupas novas e bonitas, alguma bebida e fale com George, ele tem uma receita ótima para certos probleminhas. ─ E fez um gesto com dedo indicador se encolhendo.
Mais baixo do que isto eu não poderia chegar. Então lembrei da minha resolução da noite anterior e resolvi adiar por uns dias, talvez ainda pudesse tirar mais alguns trocados da velha.

Friday, December 10, 2010

Esta é a cópia de um e-mail enviado ao Hospital Santa Marcelina de São Paulo no dia 10/12/2010. Pode estar destoando do restante dos textos, mas torno público algo pessoal pois esta luta não é apenas minha, mas de tantas outras famílias que passam por situções similares. Especificamente, vou lutar para que o Hospital Santa Marcelina consiga re-instalar e manter este procedimento, tão moderno e tão complexo de ser ser executado, mas que é a última esperança para tentar salvar os olhinhos de centenas de crianças.
A a complexidade da quimioterapia intra-arterial reside no fato de ser um procedimento altamente invasivo e que requer uma equipe de especialistas e instalações disponíveis no mesmo momento.
Abaixo a cópia do e-mail:


Meu nome é Luiz, sou pai da menina Luana Mendes e moramos em Joinville SC. Luana tem 5 anos e é alegre e sapeca como qualquer outra criança desta idade, mesmo estando em tratamento contra um retinoblastoma bi-lateral diagnosticado em outubro de 2008. Apesar de nossa luta não acho o drama de minha família maior ou mais terrível do que o drama de tantas outras famílias que encontramos pelos corredores de hospitais durante nossa jornada, falo isto para deixar claro que não queremos nenhum tratamento diferenciado nem qualquer vantagem em relação às outras famílias, apenas o direito de lutar e ter esperança.

Diagnosticado o retinoblastoma, seguimos o protocolo básico para tratamento, quando foram feitos 6 ciclos de quimioterapia mais diversas aplicações de laser. Como o protocolo básico não foi suficiente, ela foi submetida à radioterapia, igualmente sem sucesso, então tivemos de enuclear o olho esquerdo. Tentamos mais duas braquiterapias no olho direito e como os resultados não foram satisfatórios, buscamos outras alternativas. Li uma matéria na internet que no Memorial Sloan-Kattering, de New York, um novo tratamento estava sendo testado com certo sucesso em casos como o da Luana, com recidividade dos tumores e aparecimento de sementes vítreas. Mas os EUA estão muito além de nossas possibilidades e descobrimos, que o Dr. Luiz Fernando Teixeira estava trazendo esta técnica para o Brasil. Foi assim que, em dezembro de 2009, iniciamos o tratamento da Luana no Santa Marcelina.

Fiquei muito feliz e muito orgulhoso por um hospital que atende pelo SUS estar à frente dos caros e luxuosos hospitais para ricos, oferecendo um tratamento tão inovador, praticamente simultaneamente aos primeiros tratamentos feitos nos principais centros mundiais. Mas nossa alegria não foi completa, pois percebemos o quanto era difícil conseguir marcar este procedimento, não obstante aos esforços da equipe médica e demais atendentes do Hospital. Ora tinha vaga na hemodinâmica, mas não tinha retaguarda na UTI, ora tinha vaga, mas tinham outras crianças com estágios mais avançados da doença na frente e apenas uma vaga por semana o que nos obrigou, mais de uma vez, a irmos para São Paulo e não poder fazer nenhum tipo de tratamento, pois era desmarcado na última hora. O resultado é que conseguimos fazer apenas uma aplicação de quimioterapia intra-arterial e não pudemos dar prosseguimento aos ciclos posteriores, apesar da redução de incidência tumoral apresentada.

Como não conseguimos mais marcar no Santa Marcelina (até recebi a informação que o hospital não está mais realizando este procedimento), fomos atrás de outras alternativas, mas restaram apenas hospitais particulares em São Paulo e como o plano de saúde da Luana, que é estadual, não liberou o pagamento do tratamento, conseguimos levantar o dinheiro para o primeiro ciclo (cerca de R$ 30.000,00) e já estamos nos planejando (vender carro, casa, empréstimo, etc.) para pelo menos mais dois ciclos. Quando achávamos que tudo estava mais tranqüilo, um novo empecilho apareceu: o Hospital Nossa Senhora de Lourdes, onde o procedimento estava agendado para o dia 08/12/2010, não dispõe de uma das drogas, o melfalano (Alkeran, da Glaxosmithkline) e tivemos de adiar indefinidamente.

Liguei para o laboratório Glaxo e fui informado que o pedido da dose para a Luana já está feito, mas que eles não têm em estoque e não sabem quando poderão nos atender, talvez em 20 ou 30 dias.

Como falei acima, a Luana é uma criança normal e apesar de toda carga de tratamentos a que foi submetida, tem uma acuidade visual excelente. Isto nos motiva a empregarmos todos nossos esforços para, primeiro salvaguardar sua integridade, e em segundo lugar preservar o olho remanescente. Diante da falta do quimioterápico e da urgência que temos para fazer o procedimento resolvi entrar em contato com O Hospital Santa Marcelina para fazer os seguintes questionamentos:



O Santa Marcelina tem em seus estoques o melfalano?



Tendo o medicamento, haveria alguma forma de nos vender, emprestar (até que o laboratório mande a dose) ou ceder, pelo menos para este primeiro ciclo?



E por fim, não haveria uma maneira de retomarem este tratamento e sua eventual continuidade, não apenas pela Luana, mas pelas tantas crianças que não têm a mesma possibilidade de luta que nossa família tem?



Não sei como conseguimos chegar até aqui (tanto financeira quanto emocionalmente) isto faz com que eu nutra um profundo respeito pelo Santa Marcelina e pelas pessoas que fazem este hospital e que se dedicam para oferecerem uma alternativa de tratamento aqueles incontáveis brasileiros que não podem pagar os altos custos da medicina particular para ricos, mas infelizmente, diante de tanta demanda, às vezes tais esforços parecem insuficientes. É por isto que confio, que se houver alguma maneira de ser atendido, meu pleito não será em vão.



Luiz Mendes

Sunday, December 05, 2010

Entre as Vejas

Remexia a pilha de revistas velhas. Só um monte de porcaria escrito, nada de interessante, a não ser outra paciente esperando sua hora de escancarar as cáries para o dentista. Mais de trinta, alguns quilos acima do peso, peitos caídos e cara de quem só toma uma xícara de café sem açúcar no desjejum. Perfeita. As bonitas e gostosas só dão para jovens bonitos, para ricos, ou cobram.
— Que demora. — Tentei puxar conversa.
— É.
— Tem medo de dentista?
— Não. — Estava tendo pouco sucesso.
— Que tal um sorvete depois. Dizem que é bom gelado depois de mexer nos dentes.
— Não to trabalhando hoje, me liga amanhã e a gente marca. — Entregou-me um cartão com seu nome e telefone: Drikka Sensual. Atende eles, elas e casais.
A primeira confissão

No dia da primeira confissão, Charles Trezinni, miúdo demais para os doze anos, tremia com a possibilidade de contar ao padre tantos pecados: pensava em como poderia falar que tocava punheta sem falar a palavra punheta ─ o que poderia ser um novo pecado ─, muito menos pensar na punheta, como estava fazendo, pois ainda que para encontrar um meio de falar para o sacerdote, já devia ser um baita pecado.
A fila de meninos andou e chegou sua vez.
— Padre, eu fiz umas coisas...
— Mentiu, desobedeceu aos pais, brigou com irmãos, teve preguiça?
Muitos nãos, mas tinha uma coisa.
— No banheiro, sabe né, começo a brincar...
Sem prestar muita atenção ao tormento do menino, o padre manda rezar dez Pai Nossos e dez Aves Maria. Aliviado por ter conseguido falar, mas frustrado diante de tanta indiferença ante algo tão importante e pecaminoso, Charles elegeu aquela sua última confissão e continuou a tocar punheta, muita punheta, certo, já naquela idade, de que o inferno o esperava e nada mais havia a fazer.
Pindorama, o cão

De uma hora para outra, sem qualquer palpitação que pudesse ser classificada como motivo, bateu-me uma vontade, poder-se-ia chamar a isto de loucura, mas, fato é, a vontade veio e instalou-se: haveria de cortar a cauda do cachorro. Para a subtração, armei-me com um bom cutelo, rijo e maciço, sem deixar de ter a afiação necessária ao barbear-se. Encomendei-o a Bill, antigo fornecedor das carnes servidas nas mesas das pessoas de bem de nossa cidade. Armado, determinado, faltava-me, além da vontade já bem acomodada, uma justificativa socialmente aceita. Sarna! O pobre animal, acometido de daninha molestia, haveria de melhor ficar sem o apêndice tomado de pruridos. Eis-me armado e justificado.
Examinando minhas consciências, qualquer um poderia ali encontrar explicação diversa para a extirpação. O rabo era ordinário, sempre enrolado para cima como que altivo, artifício útil para tornar mais evidente o insolente ânus. Sim, era um ânus insolente, enorme, brilhante, de um vermelho arroxeado escuro e com a insuportável mania de pôr-se a piscar, ou melhor, a mover-se em ritmo de beijos, o tempo todo. Matar o cão, nobre servidor da nossa família, vigilante e obediente era arbitrário e injusto; o ânus, com seu ordinário adorno, deveria pagar sozinho por sua falta de urbanidade.
Antes de prosseguir, algumas palavras sobre o detentor da cauda, poderiam por em justo entendimento, possíveis julgamentos açodados. Pindo era o nome, não exatamente o nome, mas o apelido, uma corruptela do verdadeiro nome: Pindorama. Nome dado em razão de sua cor amarelada contrastando com o cintilante azul dos olhos. Note que, apesar de não pertencer a nenhuma raça específica, Pindorama trazia belas feições e atributos dignos de serem preservados. Era altivo, de porte avantajado, ainda que não pudesse se equiparar a um São Bernado; fagueiro e lépido, a custo alguém não simpatizava com ele. Havia, no entanto, aquela chaga escura e brilhante, já descrita, a enfear-lhe o conjunto. E o rabo? Como já disse, enrolado em si, inútil a não ser para indicar a certeira direção da extremidade do intestino; fino, mais escuro do que o resto do corpo e irregular na pelagem, era o ícone de um processo degenerativo do que poderia ser um belo cão. Sim, um canino de promissor futuro, a não ser pela parte mais periférica do conjunto.
Ao ato, a ferramenta escolhida para intervenção se revelara pouco prática. Havia a necessidade de acomodar Pindo sobre um cepo ou qualquer superfície de firmeza consistente. Faze-lo deitar-se sobre o local apropriado não era tarefa improvável, dada a sua docilidade e obediência, a dificuldade advinha da natureza indômita do apêndice a ser amputado. Determinado, pratiquei uns poucos, zunindo golpes em arbustos. Com mínimo esforço, pude dividir uma pequena bananeira. Era, sem dúvidas, um respeitável cutelo de açougueiro.
Sssssifff! Caim! Caim! Caim! Não poderia classificar como dos melhores golpes. O pobre Pindo salvara-se por eu não ter imprimido a potência adequada. A cutelada acertou-lhe o a coxa e abriu um talho no couro, sem, no entanto, atingir o rabo. Imaginei que melhor seria munir-me com uma tesoura, daquelas avantajadas, usadas para poda de galhos ou aquelas de bombeiros, utilizadas para cortar a latarias de carros com acidentados entalados entre ferragens. Com um bom tesourão não seria difícil posicionar a ferramenta no ponto ideal de corte. Precisava, antes, encontrar o fugitivo, julgo, devido ao susto do golpe infeliz e à dor do ferimento. Reexaminado a nova estratégia, percebi o desarrazoado de imaginar o animal, ressentido com o ferimento na coxa, inerte enquanto espera pelo fechamento inexorável das pinças. Melhor seria aprimorar o uso do cutelo ou de outra arma sibilante.
Enquanto Pindo não retornava, passei os dias a praticar em bananeiras, pequenas palmeiras, galhos de sibipiruna, mas a seiva não atestava minha perícia: o sangue se insinuava. Consegui, a troco de sardinhas e salsichas, convencer alguns gatos e cachorros das cercanias a adentrarem em gaiolas. O sangue dos animais não foi inútil, apesar de algumas perdas, posto que tornei-me, em pouco tempo, um exímio, digamos, espadachim, ainda que munido com um cutelo e, de um só golpe, nenhum rabo permanecia em seu lugar. Mas a matéria prima dos treinamentos logo escasseou e empreendi buscas, infrutíferas, ao sumido cão.
Como os gatos desapareceram da vizinhança, os caninos remanescentes eram deveras ferozes e a seiva das plantas não tem a vermelhidão necessária, avancei sobre meus dedos, ou melhor, de início, apenas sobre a ponta do mindinho esquerdo. Fácil, avancei mais uma articulação e depois outro dedo, e outro, até restarem-me apenas o polegar, o indicador e o médio da mão direita. E nada de Pindorama regressar. Amanhã, passados dois anos da primeira auto amputação, fixarei com amarras e correias o cutelo em minha desdedada mão esquerda e investirei sobre o médio. Espero que o cachorro volte logo, o indicador, quando fechado em si e abarcado pelo polegar, lembra muito a forma do insolente ânus fugitivo.