Sunday, December 18, 2011

Reflexo

Hoje encontrei um velho em meu espelho, me olhava com uma dose calculada de compaixão — não tão baixa para não parecer desinteressado, nem tão alta para não aniquilar completamente minha, já combalida, auto-estima — quase pude perceber algo de ironia nas rugas do cenho, como que forçando severidade e benevolência. Não gostei daquele velho e imaginei-o como um satírico bufão querendo pregar a última peça antes da morte, como o singnore Ciappelletto. Ignoro há quanto tempo está ali e agora, Relembrando e fazendo uma leitura de sua incivel personalidade, penso que talvez já estivesse há muito tempo escondido por detrás do meu reflexo, fazendo caretas enquanto barbeava-me ou escovava os dentes, empurrando minha imagem para que eu me cortasse com a lâmina ou deixasse uma inoportuna sujeira no dente da frente. Creio ainda, se minha memória não resvala, já tê-lo visto, mas tão de relance, tão furtivamente, apenas se insinuando, mas após ter visto aquela zombeteira face falseando ser benevolente, encho-me da certeza de que ele já me espreitava, zombava e esperava o momento de se deixar ser identificado. Hoje, no dia de festejar o dia dos meus anos ele, o velho, um estranho até então, se faz pleno.

Posso até estar passando por algum tipo de crise da meia idade e sei dos meus cada vez mais escassos cabelos e do seu inexorável branqueamento. Sei das dores diárias, cada dia um tipo, e da decadência do conjunto. E se alguém insinuar que era tão somente meu reflexo sendo observado em um mau dia, atalho-o com a explicação inconteste de não ter visto apenas o velho, senão ele e meu reflexo. Ora ele se punha na frente de minha imagem, ora ao lado, ou mais ao fundo, quase saindo do campo de visão, com metade do corpo oculta atrás da borda do espelho e meu reflexo ali, reproduzindo minhas caretas, gestos e minhas falências. Não eram a mesma coisa, apenas dividiam o mesmo lugar.

Por um breve momento pensei na hipótese de ser meu pai tentando voltar, ele que durante minha infância jamais aparecia nos dias de meu aniversário, consumido pelas chamas do arrependimento, poderia estar procurando um meio de regressar dos mortos para se redimir e alcançar a paz. Idéia logo descartada, meu pai ainda vive e também não seria do feitio dele querer expiar alguma dívida comigo. E quando receber a notícia da minha morte, como está muito longe, apenas dirá: "Agora não há mais nada a fazer, não vai dar tempo de chegar para despedir-me, não irei ao funeral, mas meu filho amado sabe, onde quer que esteja, que eu não preciso estar presente para estar perto dele. Farei uma prece, a mais bela e comovente, que só eu ele e Deus ouviremos."

Ele ainda está lá, posso vê-lo se escondendo atrás do meu reflexo, não é sempre que aparece, agora finge estar reproduzindo meus movimentos e até tenta se passar por mim, não quebro o espelho para não correr o risco de vê-lo multiplicado em centenas de fragmentos, assim ainda é apenas um. Mas como ele está tentando se passar mor mim, descobri como matá-lo: peguei minha navalha, ele fez o mesmo.

LM


 


 


 

Tuesday, December 13, 2011

Sonhos

Sabia de certos magos, vindos do sul, ou de além, e de suas habilidades em sonhar um ser. Encontrou nas cosmogonias gnósticas, tratados de demiurgos relatando tais experimentos mágicos, alguns exemplos bem sucedidos, uns frustrados e meditou por três anos e meio até descobrir em seu espírito, elementos autorizando-o a iniciar-se nas artes quase esquecidas do sonho e auto intitulou-se sacerdote. Para ele, entretanto, a carne já se havia revelado fraca por demais, suscetível aos sabores dos frutos das cerejeiras e de outras inebriações terrenas. Bastava tão somente sonhar um nome. Vagou por prostíbulos e sarjetas; templos e altares; casas de pessoas de bem e desvalidos e após, dois anos de buscas, encontrou a arena ideal, ancestral, para instalar-se e sonhar. Não havia marcas, como se não fosse freqüentada há séculos, por feras ou homens, apenas o tempo passava por aquele sítio e mal deixava suas marcas; era branco, ou se fazia parecer branco, como se um sonho sem cenário, mas há relatos de o mesmo lugar ter sido descrito como de cor sanguínea. Para ele era branco e em seu interior, tamanha alvura, não conseguia divisar as coisas, era tudo uniformemente claro, fazendo-o valer-se do tato. Identificou uma mesa de madeira, uma cadeira de igual material, um cabide uma cama forrada com um colchão de palha, um fogão à lenha. Sobre a mesa um copo com água pela metade, um bloco de papel e um lápis e mais nada. Viu que tudo estava bom e descançou.

Na primeira noite sonhou apenas com carne e matéria, não era o que procurava, queria apenas um nome, um nome cujo corpo ideal viria naturalmente. Nomearia a coisa antes mesmo dela existir e inverteria a lógica filosófica de Foucault. Não queria admitir, mas em seu íntimo, queria mesmo superar o deus, criando o nome antes do ser.

Sonhou todos os sonhos dos homens e sonhou todas as coisas da Terra e em certo ponto já nem sabia mais quando estava com os olhos fechados ou abertos, se desperto ou em vigília e até se ele mesmo não era um sonho, mas ao cabo de dez anos o primeiro signo fez-se, quase à materialidade, tão cheio de significações, era a letra L, do alfabeto ocidental. Ele, cujo idioma paterno quase se perdera após debruçar-se sobre signos de etnias e aldeias remotas, dominador de escritas orientais, grego e mais uma centena de dialetos mortos, não entendeu porque o ocidental L se pronunciara. Temeu não estar no caminho correto, esperava listras de tigre, ideogramas mandarim, letras do alefato, jamais um signo de um alfabeto decadente. Resignou-se e chorou. No chão branco do templo, as lágrimas quebraram o monocromatismo e revelou-se a segunda letra, um rubro I. Deu-se conta que seu pranto era um sonho e aceitou a imposição dos deuses em apresentar-lhe um nome naquele alfabeto impuro.

Na noite de sonho, coincidente com a noite de festejos da Walpurgisnacht, ele sonhou com uma mulher, estremeceu até o pâncreas. Estaria ele sonhando com um nome de mulher, invocando uma mulher inexistente? Sabia que isto o distrairia de seu objetivo, mas não deveria opor-se à inescrutável mão do destino e deixou fluir o sonho. Foi uma noite carregada de sensualidade, gozou dos prazeres da carne até quase saturar seus poros e ao amanhecer, adormeceu. Nenhum homem na face da Terra havia experimentado tanta paixão em tão pouco tempo e sobrevivido. Quando acordou a mulher havia ido embora e deixou sobre mesa um bilhete inusual, com apenas duas letras L e como ainda era sonho, tinha agora, se a seqüência das letras seguisse a de suas revelações, Lill. Conheceu uma mergulhadora norueguesa chamada Lill Hauggen, mas não era ela quem vira no sonho. Neste instante percebeu não ter lembranças das feições da mulher sonhada, sentia os cheiros dos odores, os gostos das secreções, a consistência do toque da sua Lill, mas não saberia como descrevê-la. O nome estava se impondo sobre o ser. Buscou lembranças de outras Lills, nada adiantou.

Não sonhou mais com Lill e nem outra letra se descortinou, entretanto sabia não estar completa sua missão. Atormentou-se, um tanto por sua falha em concluir tão grandioso projeto e outro tanto por não ver mais Lill. Dormia pensando no que deveria ser ela, acordava clamando seu nome, ofegava ao pronunciar seu amor, sem sucesso. Quase desviou-se de seu objetivo primevo e penitenciou-se por ter se entregue aos prazeres mundanos da carne e ao amor de uma mulher que só ele sabia existir, na intimidade de seus devaneios, ainda que sem feições. Resignou-se e voltou a sonhar os sonhos dos santos e profetas, viu guerras, chuvas, sementes de jabuticaba brotando e em meio a sonhos e profecias, intui serem uma única coisa, o nome Lill e a mulher do sonho, mas estava incompleta e ela só se revelaria por inteiro quando o nome estivesse completo. Quantas letras ainda faltariam? Seria um nome nórdico, como a de Lill, ou uma variante latina de Lilliane? Lille, simplesmente, ou uma fantástica Lillet? Quem sabe o colorido Lilla, por que não? Nestas elucubrações o auto intitulado sacerdote, percorreu mais oito anos, embora ele já não entendesse do transcorrer do tempo, sentia, em noites mais frias, umas dores nas articulações, uma ou outra indisposição, mas não associava isto à idade já avançada em anos.

Quando já havia invocado todos os nomes de mulheres, em todas as línguas, que pudessem principiar por Lill, teve outra revelação. Se este tempo todo estivera sonhando um nome a ser preenchido por um corpo posteriormente e como já havia atingido parte deste intento, sonhando com um quase nome de mulher e uma quase mulher, não haveria de ser uma mulher, sim um ser mágico, volátil, carnal na volúpia, mas independente da matéria na sua existência, alguma entidade que ocupasse o nome invocado trazendo não só a carne, mas a fé no transcendente. Mais uma vez estremeceu quando descobriu quem ele estava invocando o tempo todo e por quem se apaixonara perdidamente. E também prostrou-se e chorou novamente, jamais a possuiria, jamais a subjugaria, jamais a teria submissa e se quisesse entregar-se ainda uma vez aos prazeres celestiais de comungar com ela mais uma noite apaixonada, seria inevitavelmente consumido. Depois disto foi dormir já sabendo quais letras veria em seu sonho e sabia quem veria, estava preparado para entregar-se e ser consumido. Deitou-se e o sono não vinha, temeu não conseguir dormir, mas isto teria que acontecer em algum momento. Correu, escalou montanhas, nadou os oceanos e nada disto o extenuava, nada fazia o sono dominá-lo. Sentiu uma fraqueza e um frustração como se estivesse no último dos círculos infernais, quase antevendo o paraíso, mas preso a grilhões indestrutíveis. E a última das revelações fez o sacerdote estremecer pela terceira e derradeira vez. Ele sabia qual nome sonharia, sabia da sua amada, da sua entrega e da sua renúncia, morreria entregando-se ao amor e à paixão, heroicamente, mas precisava dormir para sonhar e não conseguia fazê-lo porque já estava dormindo e já estava sonhando, mas estava preso em uma zona miasmática do reino de Morfeu, entre o fígado e a alma e não escaparia daquele sonho sem propósito, eternamente.

LM

Monday, December 12, 2011

Libertas Quæ Sera Tamen

Buscou ainda algumas lágrimas, era imprescindível um pouco mais de comoção, estóico, mais ainda agora, longe de olhares condescendentes. Haveria de chorar, nada mais, um choro vindo de sombras do fígado, de reentrâncias do esôfago, de um dos ventrículos, só dele. E as lágrimas não brotaram. Tinha a obrigação de pôr-se em profundo pesar, mas não conseguia afastar-se da superfície dos sentimentos e assustou-se, como se diante de todo o mal, com um pensamento brotado de sua imaginação. Não poderia ser um pensar seu aquele, estaria ainda sob efeito dos acontecimentos funestos e além do mais, ele não era assim, ela também jamais mereceria tal tipo de luto de seu companheiro inseparável. Deveria, isto sim, guardar-se por meses, em memória dela. Xô maus espíritos! E afinal uma voz em sua mente pronunciou, de quase poder ser ouvido pelos vizinhos do prédio: Agora poderia fazer tudo que sempre teve vontade de fazer, mas nunca pôde. Tipo o que? Como!? Ainda dar ouvidos à voz e quere saber o que fazer? Tratou de exorcizar os demônios. Era preciso sair, era urgente sair para comprar bananas.

Ele examina cuidadosamente uma penca de bananas, parece ter muitas dúvidas sobre levá-las ou não para casa. Solícita, a atendente se aproxima.

— Encontrou o que procurava senhor?

— Ahhmm? Ah, não, não encontrei, nem sei mais se realmente quero encontrar, ou se a busca me basta.

— Desculpe...

— Já perdi entes queridos e por já ter, vivenciado isto, me imaginava mais preparados. Mentira. Estou sempre a perder pedaços de mim, nunca estou preparado para isto, cada parte que se vai deixa um vazio intransponível.

— Eu estava falando das frutas.

— Claro, as frutas, mas entenda-me, eu estava vulnerável naquele momento e queria falar com alguém, sem precisar escutar velhas fórmulas de como levar a vida daqui para frente, queria falar palavras que não existem e ouvir respostas que nunca foram dadas. Protegido por paredes profanas, ficaria escondido eternamente entre o marco de uma hora e outra e quando voltasse para a o mundo que os humanos chamam de realidade, não sentiria tão opressor o peso das minhas falências.

    — Acho que o senhor deveria procurar ajuda, não sei se estou preparada para isto, sou apenas uma verdureira, nada mais.

    — Tem razão, é que à vezes sinto falta de coisas que perdi, algumas foram caindo de meus bolsos, outras guardei em algum lugar e não as encontro mais, outras me doem de saudades, mas não recordo delas e não sei o que eram, sei apenas da dor e outras, tidas como muito caras, joguei-as pela janela por medo de perdê-las e agora, incompleto, tento seguir e tento encaixar, pedaços que encontro pelo caminho, em minhas lacunas.

    — Vai levar as bananas?

    — Meio quilo! Tem cerveja?

    No apartamento, deu-se conta de que era exatamente isto que estaria fazendo com ela em casa, comprando bananas e trazendo cervejas. Compreendeu não ser necessário passar o tempo para enxergar que não era ela a impedi-lo de fazer suas coisas extravagantes dos delírios de liberdade. Continuou comendo banana e bebendo cerveja, como sempre fazia.


 

LM

Sunday, December 11, 2011

Ad hoc

Uma girafa de pelúcia acompanha, ar preocupado, aqueles intermináveis gotejares. Pescoção dobrado, pensativa, o marrom das manchas misturado à tinta de canetinhas coloridas, restos de comida e outros resíduos ali deixados por mãozinhas impacientes. Ela olha sem desviar a atenção, cabeça levemente inclinada para o lado, mas olha fixo a dona das impacientes mãozinhas. Clarinha de quase transparência, duas manchas escuras sob os olhinhos fechados acentuam a palidez. A chupeta fogenãofoge cainãocai da boca até ser reconduzida ao seu devido lugar com estalar de língua e um suspiro. Respira uns ventinhos de bater de asas de borboleta, constante, a não ser pelos suspiros destinados à chupeta.

    Pinga, pinga, pinga, pinga, pinga, pinga, pinga, pinga, pinga, pinga, pinga, gota, gota, gota, gota, gota, gota, gota, gota, gota, gota, SF puro, gota, pingo, gogo, pinta, gota, pingo, pinta, gogo, dramin, gota, pingo, vincristina, gota, pingo, etoposido, gota, pingo pendurados em uma vareta de metal. Mangueirinhas fininhas, transparentes e com a ponta escondida sob a pele unem os pacotes de poções químicas à menina. Enquanto isso, o tempo brinca de acelerar e desacelerar. Gota, pingo, pingo, gota leva o tempo de uma jornada interminável do carro de Apolo, quase uma vida. Já escuro, hora de se recomporem para mais meia jornada interminável do outro dia e o tempo calha de acelerar e leva dois ou três piscares de olhos para já ser amanhã. E acelera de novo quando faz os 21 dias entre os ciclos durarem o tempo de 21 beijinhos apressados.

    Ao lado da girafa um leão e uma zebra dormem, esperando a hora de assumirem seus turnos junto com a menina e eles não sabem, nem os curandeiros, nem os deuses se toda essa droga vai dar conta de matar as células rebeldes.


 

LM

17/02/2009


 

Monday, December 05, 2011

Outros diálogos possíveis

Fragmentos de um diálogo possível em um relacionamento ao estilo Sartre e Simone de Beauvoir


 

Volto às quatro.

Não precisa voltar.

Às quatro? Que horas então?

Não.

Então?

É.

Assim?

Será melhor.

Para quem? Tem mais alguém?

Isso muda alguma coisa?

Não quero ficar sabendo por nossos amigos.

Também não temos muitos.

É você, arrogante e anti-social.

Pode me culpar, sempre foi assim.

Não adianta, não dá pra conversar...

Seremos amigos?

Não sei? Em algum momento algum de nós vai querer algo mais.

É.

É.


 

Fragmentos de um diálogo possível em um relacionamento ao estilo Charles Trezinni e Lillith de Oliveira


 

Volto às quatro.

Volta? Vai pra puta que pariu.

Boca suja do caralho. Então não volto.

Vá de uma vez. Nunca se decide mesmo.

Você é que não sabe o que quer.

Você sabe: só quer foder com quem encontrar pela frente.

Isso muda alguma coisa, porra.

Todo mundo fica apontando o dedo pra mim e rindo.

Vão se foder, ninguém faz nada por nós a não passar por cima.

Culpa tua, sempre se achando o gás da coca-cola.

Ah! Vá à merda com tua filosofia de porta de banheiro de rodoviária.

Não adianta...

Seremos amigos?

Não sei? Não dá pra rolar uma transa gostosa de vez em quando?

Fodeu, se veste e vai embora?

É

Pode ser. Quem sabe?

É.


 


 

LM

Sunday, November 27, 2011

Compotas

Diziam ter tido um passado. Provável ter tido apenas lembranças, e quiçá uma ou outra desilusão, entretanto, espírito dado a sofreres de amores e outras destemperanças, Rafael de Partula exilou-se na freguesia de Montes da Senhora, situada no concelho de Proença-a-Nova. Fixou residência em uma pequena quinta no extremo norte do lugar, quase fora de seu perímetro. Lá, algumas oliveiras e cerejeiras impunham à morada o ideal ar bucólico que ele julgava ser o retiro final buscado a tanto. Até inspirou-se a erguer uma pequena capela em louvor à Nossa Senhora das Cerejas. Um empregado se dedicava a colher os frutos, levá-los ao mercado, cuidar das árvores e manter o sítio livre de ervas daninhas.

Em um verão azul intenso, fragmentos do passado foram até ele, e passou a receber a visita regular de seus filhos. Eles disseram terem-no perdoado, faltava apenas acreditar e querer o perdão: acostumara-se a sofrer em silêncio e só e já não nutria esperanças de reescrever o passado.

Na freguesia havia uma vendedora de compotas. Rafael pouco sabia dela, quase não se falavam, apenas o necessário para adquirir alguns vidros de cerejas ou figos. Já não era jovem, ainda assim deveria ter uns trinta anos a menos do que ele e se não era de todo bonita, não se podia dizer feia, era alegre e tinha negros olhos cheios de feitiços. O perfume da vendedora de compotas despertava sonhos esquecidos em Rafael, mesmo assim não ousava a ir além do bom dia, dois vidros por favor, até logo, passe bem. Já não tinha mais idade, nem disposição par aventurar-se por este tipo de seara. Bastava vê-la duas ou três vezes por semana e, de volta a casa, preparar um dry martini, tomar um Viagra e masturbar-se na banheira, lembrando dos olhos e sentindo o cheiro da vendedoras de compotas de cerejas.

A despensa abarrotava-se de compotas, mas era dia de nova compra.

Bom dia, o que há de novo nas compoteiras?

Ao invés da resposta tradicional ela disparou a mais improvável das perguntas.

Que veia saltada é esta em tua fronte?

Era apenas uma veia saltada como tantas outras em cabeças de velhos mundo afora, esta, entretanto, era a marca de um pacto seu, sua extemporânea marca de Caim e lhe trazia lembranças afogueadas. Surgira a poucos dias, após uma latejância à toa na testa e Rafael desnudou sua insignificância e sua finitude.

É minha.

Ora, se não sei que és tua? Nunca tinha visto, tenho certeza ser nova.

Fez sua compra e saiu, um pouco mais sério do que de costume. Justo ela, ser a primeira, a única, a perceber a existência daquela veia. Outras pessoas estariam igualmente aptas a detectarem a uma intercorrência de dilatação vascular na têmpora esquerda do ancião. Um de seus filhos era médico, sua filha era bióloga, teriam capacidade para tal. Seu empregado, algum vizinho, o açougueiro, o carteiro, padeira. A compoteira enxergou o que ninguém mais havia visto. Rafael sentiu vontade de chorar, se controlou, não queria se tornar um velho chorão, queria preservar uma mínima essência de fibra e não poderia fazer isto na rua. Em casa fez tantos dry martinis quanto seu corpo suportasse. Num instante pupúreo a veia estourou. A vermelhidão misturou-se às cerejas e ao último drinque.


 

LM

Tuesday, November 15, 2011

Diálogos possíveis

Entre pai e filho


 

Eram as primeiras férias desde a ida de Charles Trezinni para o seminário. Tinha 16 anos, cheio de atitudes e idéias revolucionárias tomou resolução de não se fazer padre, tornar-se-ia ateu, comunista e pegaria em armas. Em casa, resolveu ter uma conversa de homem para homem com o pai.

─ Não quero ser padre.

─ Vai ser o que eu quiser. E não me venha com idéias, tem de ir aonde o dinheiro está.

─ Mas pai, e nossos valores, ideais?

─ Deixa isso pros outros. Eles que se lasquem, defenda o teu nariz.

─ É que não me identifico mais com a Igreja, virei comunista e graças a Deus, agora sou ateu.

─ Tanto melhor, assim não vai ficar me enchendo o saco para me arrepender dos pecados e também nunca disse para virar crente, disse para tornar-se padre.


 


 

Entre marido e mulher


 

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Ai meu amorzinho.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Ai meu benzinho.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Querido, acho bom amanhã ver a grade dessa cama, parece que tem alguma coisa quebrada,

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Por Deus e todos os santos, querida, que hora para pensar na grade da cama.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Me desculpe meu amor, mas é que só agora lembrei, já queria ter te falado antes.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Como assim antes? Quando é que você notou?

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Ora querido, essas coisas estragam.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.


 

Sunday, November 13, 2011

O distrato

─ Sou parcela do Além



Força que cria o Mal e também faz o Bem!



Mefistófoles, em Fausto de Goethe.






Muitos e mais ilustres autores já trataram de temas infernais ou diabólicos tendo alguns, descrito com minúcias o sítio de perdição ou as relações tumultuadas entre os homens e o Demônio; acho desnecessário, além de ser uma heresia, citá-los. Existiram ainda estudiosos que tentaram, através de bem elaboradas teorias, definir os aspectos destas entidades que tanto medo inspiram nos crentes e, ao mesmo tempo, tanto os atrai. O respeitado Dr Laughton defende em sua obra, Locuções Satânicas, a possibilidade de existir um inferno metafísico, habitado por seres, cujas existências, seriam possíveis de serem explicadas através de teorias da Física Quântica, e que projeções espectrais de nossa consciência (ou de nosso subconsciente), poderiam sentir todos os tormentos deste inferno, mesmo após a morte do corpo. Considerando apenas os trabalhos tidos como sérios, poderíamos mencionar outras teorias de eminentes estudiosos, mas o fato relacionado a estas questões que mais me impressionou, não foi um estudo acadêmico, mas o estranho desaparecimento de um advogado, o Dr Gaston Abranches Carreeiro.



Alguns céticos atribuíram este desaparecimento ao fato do Dr Carreeiro estar envolvido com conhecidos narcotraficantes, tendo sido eliminado por conhecer demais as operações destes criminosos. Bastante plausível esta hipótese, entretanto alguns fatos inexplicáveis ainda pairam sobre esta história.



No verão de 1973, para cumprir as exigências do curso de Direito, iniciei um período de estágio não remunerado na famosa banca do Dr Carreeiro. Entre os clientes habituais do escritório, havia muitos políticos importantes, grandes industriais, além de ricos empresários, apontados à boca miúda, como sendo Barões da Droga. Devido a tão seleta clientela, chamou minha atenção o fato de um completo desconhecido, com modos educados, apesar de acanhado e com um aspecto humilde, marcar um harário com o Doutor, que não cobrava menos de quinhentos cruzeiros por uma simples consulta. Cobrava valores altos justamente para não precisar atender clientes menos importantes, invariavelmente encaminhados para os estagiários. Assim, quando algum destes clientes concordava em pagar pelo atendimento exclusivo do Dr Carreiro, ele o recebia acompanhado por um advogado iniciante ou um estagiário destinado a ser o verdadeiro condutor do processo, cabendo ao Doutor apenas assinar as argumentações e quando estritamente necessário, comparecer a alguma audiência, não deixando de cobrar até os minutos.



Este desconhecido de aparência humilde tendo solicitado uma audiência com o Dr Carreeiro, fora aconselhado pela recepcionista a ser atendido por outro advogado, com a agenda menos ocupada e com honorários mais de acordo com pequenas causas, além de que, o Doutor só teria um horário livre em uma semana. A questão financeira não pareceu ser um obstáculo, pois revelou estar disposto a pagar em dobro para que pudesse ser atendido no mesmo dia e, diante da firme resolução em pagar, ele foi conduzido ao escritório do Dr Carreeiro, após mais de quatro horas de espera. Eu fui escalado para ser seu assistente.



O cliente era um industrial chamado João Walter Gomes e apesar de seu aspecto desleixado, seus modos eram de uma pessoa com certo refinamento; falava com clareza e sua fala destoava do aspecto simplório, mesmo com o evidente estado de inquietação e medo estampado em seu semblante.



─ Muito bem meu senhor, o que o traz até meu escritório?



─ Doutor, antes de explicar as minúcias do meu caso quero informá-lo do meu firme propósito em aceitar todas suas exigências, inclusive quanto aos honorários, contanto que o senhor aceite e conduza pessoalmente este processo.



─ Mas sem saber do que se trata, não posso dar nenhum parecer.



─ Pois bem, quero cancelar um contrato, um contrato muito peculiar.



Estendeu na direção do Doutor, um envelope grande, bastante surrado onde havia um documento manuscrito em tinta escura, marrom talvez. Não pude ler o contrato, estava com o Doutor, mas descobri seu conteúdo após o seu esbravejamento.



─ O senhor está achando que eu não tenho mais nada para fazer? Isto aqui é uma firma séria e respeitada, pouco dada a brincadeiras, portanto se era só isto que o senhor tinha para me mostrar, considere encerrada a consulta.



Bastante irritado por estar perdendo seu precioso tempo, o Dr Carreeiro atirou o documento sobre a mesa e continuou.



─ Contrato de venda da alma ao Diabo! Era só o que me faltava! Faça-me o favor!



─ Tenho ciência da importância de seu tempo, mas, mesmo que o senhor não aceite meu caso, eu já paguei por uma consulta, portanto queira por gentileza escutar o que tenho a lhe falar e depois o senhor estará livre para tecer suas considerações e aceitar ou não este caso.



Ele proferiu estas palavras em um tom de voz baixo, porém firme, encarando diretamente os olhos do Doutor que não teve outra saída que não fosse, pelo menos, escutar aquela lengalenga.



─ Procurarei ser breve e sucinto. Há cerca de cinco anos, minha empresa, uma fabrica de garrafas e artefatos de vidro, começou a apresentar resultados negativos em seus balancetes, mas indiferente aos rumos da empresa, continuei mantendo o mesmo padrão de vida, com freqüentes viagens para a Europa, safáris pela África, festas monumentais freqüentadas e comentadas pela fina flor de nossa sociedade, enfim, mantive-me alheio aos problemas da fábrica até o dia que um dos diretores informou que estávamos à beira da falência. Interrompi todas as minhas atividades sociais e passei a me dedicar exclusivamente ao processo de recuperação da empresa. Telefonei para ministros, generais, empresários, banqueiros, tudo em vão. Até que o inevitável aconteceu. Tivemos a falência decretada e, meus bens particulares, seqüestrados pela justiça. Após este fato vários acontecimentos foram se sucedendo, como em um efeito dominó; tive as portas da sociedade fechadas para eu e minha família, nossos amigos debandaram, minha amante me trocou pelo síndico da massa falida, dívidas que estavam sendo pagas ao longo dos anos foram imediatamente executadas, enfim, de uma hora para outra, eu estava na miséria, não podendo sequer, manter meus filhos na escola, o que foi a gota d´água para minha esposa, que me abandonou levando as crianças. Não tendo mais ninguém a quem recorrer e num momento de insânia, inspirado em Fausto, tencionei invocar o Diabo e fazer um pacto. Recorri ao livro de nigromancia, In Saecula Saeculorum In Albis, e recitei algumas palavras malditas, mas como não fui atendido, recorri a outra maneira de fazer o pacto, descrita no livro e, com meu próprio sangue, redigi este contrato no qual apus minha assinatura. Para meu espanto, no outro dia, já ignorando aquelas besteiras de Satanás, ao pegar o Contrato para destruí-lo, percebi ao lado de minha assinatura a rubrica: LCF. Imaginei estar vendo coisas e me sentindo cada vez mais insano, tomei a decisão de pôr um fim em minha vida miserável. Encontrei um lugar que nos traz água à boca para um afogamento e quando me preparava para atirar-me às águas do rio, um homem me chama e pergunta sobre meu intento. Soluçante, contei-lhe minhas desgraças e meu propósito. Era um missionário espanhol chamado Carlos Herrera. Ele me acalmou, consolou, falou palavras confortantes e me convidou para ir até a casa do mais poderoso dos lideres, a casa de Deus.



Esta conversa aparentemente sem propósito, parecia ter finalmente atraído a atenção do Doutor.



─ Prossiga senhor Gomes.



─ A proposta do missionário me pareceu bem mais vantajosa do que a de Lúcifer: bastava doar dez por cento de meus bens para a igreja e passasse a contribuir mensalmente com mais dez por cento do que eu viesse a ganhar, com a glória de Jesus. Desta forma, segundo ele, recuperaria meus bens alem de garantir um lugar no Paraíso, algo bem melhor do que banhar-se nas águas do Letes. Passei a participar assiduamente dos cultos, doei, mesmo estando temporariamente indisponíveis, parte de meus bens para a igreja e com a graça de Deus, obtive algumas vitórias judiciais no processo falimentar, como o desbloqueio de grande parte de meu capital particular; em seguida consegui reassumir o controle da fábrica, renegociei dívidas em condições favoráveis e após alguns meses, alcancei minha plena reabilitação, muito mais completa do que a de César Birotteau. Recuperei minha família e minha amante e graças a retomada de meus rendimentos, passei a ser o maior doador da igreja. Estava de volta e agora em grande estilo, ao lado de Jesus. Mas havia aquele contrato e nem sei por que, o mantive guardado todo este tempo, sem revelar a ninguém, nem mesmo ao pastor. De uma hora para outra comecei a pensar a todo o instante nele, não me saia do pensamento. Eu orava, tentava esquecer, ignorava, mas ele estava lá, latente, apenas esperando o momento de reclamar seu pagamento. Encontrei na igreja o conforto necessário para manter a tranqüilidade quanto ao destino de minha alma, que já tinha seu lugar assegurado, não obtendo no entanto a mesma segurança quanto aos meus bens e entrei em uma crise depressiva terrível e me isolei completamente, até que recorri mais uma vez, ao In Saecula Saeculorum In Albis e descobri a possibilidade de obter alguma chance se nomeasse um negociador ou representante. É onde o senhor entra.



─ Mas como poderei eu intimar Lúcifer? Devo mandar a notificação para onde diabos afinal? Isto tudo não passa de uma tremenda maluquice.



─ Eis a minha proposta: Como ainda sou um homem rico, estou disposto a pagar muito bem por este distrato, além de pagar mensalmente seus honorários, a título de manutenção do processo, bastando para isto, que o Doutor elabore todas as argumentações, assine e mantenha arquivado em seu escritório até que surja algum fato novo.



A menção de um lauto pagamento e mais um significativo valor todos os meses, por um período indefinido, a se estender por anos, aguçou o interesse do Dr Carreeiro por aquele caso. Vislumbrava a maneira mais fácil de ganhar dinheiro que se apresentara em toda a sua carreira.



─ Quais argumentos, poderíamos apresentar? E como o senhor pretende efetuar estes pagamentos



─ Argumentaremos que minha recuperação se deve ao ingresso na igreja e não pela intervenção de Satanás e estou disposto a assinar um contrato de serviços advocatícios além de deixar um imóvel de bom valor como garantia para pagamento dos valores acordados.



O Dr Carreiro não teve mais dúvidas, no dia seguinte a esta conversa, encarregou-me de acompanhar o cliente até o cartório de imóveis para efetuar a hipoteca e ao cartório de registros e notas, para autenticar o contrato. Neste dia, o senhor Gomes apresentou-se de maneira diversa ao dia anterior, estava bem vestido, barbeado e, principalmente, aparentava uma serenidade própria daquelas pessoas que vivem de bem com a vida, era outra pessoa.



Terminado o estágio, fui trabalhar em um banco e praticamente não tive mais contato com o Doutor, a não ser em encontros fortuitos no fórum. Somente muitos anos depois, li nos jornais sobre seu misterioso desaparecimento. Apesar do caráter puramente lúdico daquele caso de venda da alma, nunca o esqueci, talvez por obra de alguma veia supersticiosa, e esta foi minha primeira lembrança ao ler as manchetes nos jornais. Procurei obter mais informações do caso. Segundo o depoimento de testemunhas, a última pessoa a ser recebida pelo Doutor, antes de sumir, foi um certo Lúcio Fernandez de Dite, personagem desconhecido de todos no escritório e descrito como sendo um cavalheiro muito refinado, que queria tratar de um litígio antigo movido contra ele, por um cliente do Dr Carreeiro, falecido alguns dias antes. Constava ainda nos depoimentos, que nada mais havia sumido do escritório a não ser a pasta do cliente João Walter Gomes. Em nenhum processo, os funcionários da banca encontraram qualquer coisa a respeito deste Lúcio Fernandez. Cada vez mais curioso, fui atrás de informações sobre o senhor João Walter, tendo encontrado, no jornal de uns dias antes, uma nota de falecimento. Investigando as causas da morte, descobri que ele morreu do coração, minutos depois de ter recebido a visita de alguém que se identificou apenas como sendo um velho amigo cujo nome, de acordo com um cartão de visitas encontrado na mão do falecido, era Lúcio Fernandez de Dite.



Já não podia deixar de esclarecer esta história fantástica e procurei encontrar o senhor Lúcio, tarefa bem mais fácil do que poderia supor: ele estava detido em uma delegacia para averiguações, por ser suspeito do desaparecimento do Dr Carreeiro. Valendo-me de minha credencial da OAB, pude solicitar uma visita como se fosse seu defensor e travar uma conversa absurdamente reveladora.



─ Não chamei nenhum advogado. Aliás, não preciso de advogado.



─ Não vim para defendê-lo, apenas fui atraído pelo caso por ter, há muito tempo atrás, conhecido o Dr Carreeiro e também o senhor João Walter Gomes.



Mencionei os dois nomes para ver qual sua reação.



─ Agora estou lembrado. Você é o estagiário que redigiu o distrato do Gomes. Você não passa de uma sombra também.



─ O que o senhor quer dizer com isto?



─ Uma sombra como o Gaston. Fique você sabendo que ele não está desaparecido, ele simplesmente nunca existiu. Não passou de uma projeção espectral do João Walter. Veja a ironia. Ele tentou me enganar, mas acabou procurando ele mesmo para passar o ônus do contrato ao contratar a própria projeção.



─ Não estou entendendo o que o senhor quer dizer.



─ Você acredita que é um ser único e absoluto, mas não passa de um reflexo daquilo que outra pessoa produz. Sua vida boa e confortável não é nada mais que um sonho de algum favelado qualquer, assim como a existência do seu amigo Doutor não passava de um reflexo daquele bobalhão do Gomes, que estava fadado a cair nas minhas garras, não importando o quanto esperneasse.



─ Você quer que eu acredite nestas sandices? Se você fosse quem está querendo insinuar que é, ainda estaria nesta cadeia imunda?



─ Que melhor lugar para um diabo, do que este? Enquanto descanso, recruto novos soldados nas celas e novos aliados nas salas dos advogados.



─ Não seja insano e use um clichê menos óbvio..



─ Insana é o que vocês chamam de vida. Você sabe que estou falando a verdade. ─ Tanto é que já vejo em seus olhos, prestes a se apagarem, o medo de se descobrir o subproduto de um desesperado e não restar para você, nada mais do que uma vaga lembrança, um déjà vu no sonho de outrem.



Não tive mais paciência para suportar tantas demências e saí imediatamente da delegacia. Estava aturdido com aquele palavrório todo e minha cabeça doía. Precisava ir para casa o mais rápido possível. Fui direto para o quarto, sentia urgência em descansar. Caí em um sono profundo, pululado por sonhos inquietantes e desconexos, até acordar, muitas horas depois, em um catre de um barraco da favela. Não sei como fui parar naquele lugar miserável e minha cabeça ainda doía muito. Um gosto forte de água-ardente vagabunda amargava minha boca. Estava na hora de ir trabalhar.



Tinha mais um banco para levantar paredes e na mente, lembranças que não eram minhas.



LM

Sunday, November 06, 2011

A Anfisbena e as cerejas

Plínio e Bruneto Latini a descreveram, cada qual a seu modo, se não a viram, intuíram-na e Sir Thomas Browne a negou, mas isto não impediu a Anfisbena de ter existido. Muito menos impediu-a de ter experimentado do fruto proibido. No Tratadus Originalis, de Augustiano Priemeto a clássica descrição do fruto proibido como sendo uma maçã é categoricamente refutada e, em seu lugar o autor coloca a cereja. A troca do fruto deu origem ao mito no qual o veneno da Anfisbena se teria originado de duas cerejas da árvore do bem e do mal colocadas em cada presa. Tendo a Anfisbena duas cabeças, podemos supor ter sido Deus enganado pelo animal que, de forma sutil, escondeu parte de seu corpo. A maldição divina caiu sobre a serpente a Anfisbena, para não chamar a atenção para si, desde então vive esgueirando-se entre sonhos, mitos e realidade. Não há registros conhecidos descrevendo a cereja carregada de veneno, mas a tradição oral vem colocando esta fruta em lugar de destaque em coberturas de bolos e sorvetes, bem como no toque final de drinques e batidas.

Não satisfeita em ludibriar o Criador, a Anfisbena voltou ao local do crime e municiou-se com considerável quantidade de frutos da árvore do Jardim do Éden. Pequenos, tornaram-se carga fácil de ser transportada e este estoque garantiu a perpetuação dos poderes do animal até os dias de hoje. Dizem que quando a Anfisbena se distrai, deixa cair uma cereja e aquele que a encontra e a devora é tomado por alucinações, mas isto ainda não explicaria como ela consegue extrair veneno mortal da fruta. Theodor Kutb Wufniks III nos apresenta o relato de um caçador das Ilhas Salomão, que teria encontrado algumas cerejas em um ninho abandonado de Anfisbena: "Nunca pensei em experimentar este tipo de fruto, sempre tive em bom termo os tantos alertas acerca de seus perigos, mas um átimo de desassossego, experimentei uma. O que parecia ser algo banal e corriqueiro, mostrou-se uma aventura intensa, da primeira ficou um gosto na boca, não sabia se bom ou ruim, e tive de tomar outra. Enquanto se mastiga, não há nada melhor, instantes depois sua cabeça pesa e se arrepende profundamente de ter sucumbido, mas passados alguns dias, volta aquele gosto na boca, nem bom nem ruim e temos de espremer outra entre os dentes." Segundo Wufniks III, o pobre homem perdeu completamente o juízo e partiu, floresta adentro, determinado a exterminar a Anfisbena, ou, segundo os céticos, a tomar-lhe a carga de cerejas.

LM

Sunday, October 30, 2011

Petits mensagens en bouteilles

Continua a chover e as gentes desta terra pensam que não: não percebem que os pingos de chuva continuam a se jogar das nuvens, mas secam antes de cair nos telhados das pessoas de bem. Deve ser por isto que só eu percebo, deixei de ser uma pessoa de bem. O problema é que como não sou exatamente mau, tenho de ficar no limbo, onde a chuva não é farta, mas as goteiras nunca erram seu alvo.

LM   

Monday, October 17, 2011

Motivos do amanhã


 

Não havia motivos, apenas pequenas saliências nos vãos das idéias e ele percebeu: o amanhã começou mais cedo naquele dia. Tomou o café, — mais forte do que o habitual —, estrangulou um ou dois rinocerontes e saiu. Sair de casa não se classificava entre as coisas mais prazerosas era, antes, um exercício de superação. Não gostava de multidões, de lugares abertos, de sol, vento a balançar-lhe os cabelos, bom dia e afins: preferia a companhia das baratas e dos silenciosos porta-retratos sem fotografias.

Uma vez instalado no seio da sociedade, tratou logo de assumir os trejeitos do personagem mais adequados às rutilâncias do convívio social, da moral e dos bons costumes e adjetivou com qualidades sublimes suas ações cotidianas. Cumprimentou amavelmente a senhora Bastos, devolveu afetuosamente a bola para o menino Eduardo, esquivou-se cavalheiristicamente de olhar para as bem torneadas pernas da datilógrafa Antonia e pediu, educadamente, fogo para acender o cigarro, a um simpático transeunte, que mui gentilmente cedeu-lhe uma fulgurante chama azulada. Era, afinal e ao cabo, um sujeito normal e de bem.

Vomitou escondido do contínuo Aderbal, quatro blocos de concreto, duas braças de capim-serra, e uma travessa de vidro. Auto-flagelar-se era parte do ritual diário de tolerância. Precisava tomar mais café e tolerar sereshumanosquefalavamcoisassemimportânciaotempotodo: Os números da economia indicam um grave retrocesso político-financeiro nas contas da corrupção do poder público envolvido com a conquista do espaço midiático das esferas mais abastadas das classes D, E e F e das classes menos favorecidas pelas chuvas torrenciais que inundam as bolsas dos grotões financistas e das planícies ensolaradas coberta por chalés de verão, hedges funds, corrida eleitoral, não atingiu as metas, o capítulo da novela, vai chover, et cetera e et caterva. Tomou mais café.

Quando a carruagem de Apolo deixava apenas seu rastro crepuscular, o valoroso guerreiro retornou ao seu soturno refúgio, longe dos olhares curiosos de homens e mulheres comuns. Escorria cafeína pelos cabelos e era mais um desempregado. O café não o ajudava mais e sua necessidade imediata era ficar simplesmente bêbado. Talvez assim entendesse porque sua vida não dava certo como a vida das pessoas normais. Bebeu o que encontrou em casa até reduzir seu vocabulário em 98% e imaginou estar sentindo-se só, imaginou estar sofrendo e imaginou sentir dor e saiu. Gostaria que aquela fosse uma noite fria, com uma fina e intermitente chuva a deprimir as pessoas, mas não era. Estava quente e as pessoas nas ruas pareciam especialmente felizes, sem preocupação em dormir cedo. Dezembro é uma merda.

Não sabia o que poderia ser mais patético: sentir-se deprimido às vésperas do Natal ou ver aquela multidão de pessoas felizes e ávidas para comprar qualquer coisa que possa ser carregada para todos verem, como se fosse um atestado de pertença ao reino da felicidade. Andou, ou imaginou ter andado e encontrou na rua uma sacola com panos vermelhos, era uma roupa de Papai Noel, ficaria com ela. Comprou uma cerveja e, num beco, resolveu vestir a roupa, tinha até gorro e barba branca. Tirando o fato de estar cambaleante, era um perfeito bom velhinho.

Preservando sua identidade secreta sob a máscara escarlate, o herói entra em um reduto de vilões, mal-feitores, cafetões e prostitutas, escroques de toda espécie. Eles percebem sua imponente presença e se calam, por uma fração de segundos.

No bar ninguém notou sua presença, não era a única celebridade presente, lá também estavam o Batman, o Diabo e o Homem Invisível, além de mais uns dois Papais Noel. Já era amanhã, em casa os rinocerontes estrangulados já deviam estar começando a feder, o pior é que sempre apareciam mais. Sentiu uma necessidade de pôr algumas fotos nos porta-retratos, talvez amanhã começasse a procurar uma câmera.


 

LM


 

Sunday, October 16, 2011

Uma noite ainda

O caixão no meio da minúscula sala de estar dificultava a circulação de tanta gente. Eram apenas curiosos, querendo dar a última olhadinha no cadáver. O morto, quando vivo não era muito popular. Os curiosos queriam mesmo ter certeza da morte. Algumas tias cochichavam reminiscências pré-históricas. Lembravam, da infância e das travessuras. Dos namoricos pelos cantos da casa e das confusões com os meninos da rua do açougue e do adolescente belo e indomável. Evitavam falar dos últimos anos. Era o suficiente lembrarem-se apenas dos tempos de inocência e rebeldia inofensiva..

    Eram nove horas da noite. O frio aumentava o desconforto dos velantes. O defunto continuaria a interpor-se nos seus caminhos por mais algum tempo. A morte ainda não lhe apagara todos os rastros e já era possível perceber olhares e intenções diversas para a viúva. Ferdinando era só solicitude.

Anabela parecia ter lágrimas acumuladas há muito tempo, mesmo assim, percebia, impassível, os pequenos movimentos ao seu redor. Continuava seu choro sem motivo. Sentia o vazio e a perda de algo ignorado. Estendido em sua sala, o cadáver de alguém que ela amou um dia. Casaram-se, até que a morte os separou.

Já assumindo o papel de viúva, aturava as pessoas olhando-a com compaixão. Tão solícitas e amáveis, tentando consolá-la com uma generosidade ensaiada: "Mas você tem de comer alguma coisa, precisa se alimentar". A comida a constrangia. Em certas ocasiões, comer lhe parecia algo impensável, como se o animalesco se impusesse ao humano. Não aceitava o instinto de sobrevivência do corpo desdenhando os melindres da alma.

    Como uma águia que estende as asas sobre o ninho, Ferdinando se aproximou.

    — Ele sempre te maltratou e você ainda chora. Amava ele ou amava o sofrer?

— Houve um tempo, antes de nos casarmos, que eu o amei. Amei mais do que tudo na vida. Acho que choro por aquele tempo. Ou talvez pelo homem que ele poderia ter sido. Havia algo de muito bom dentro dele, mas ele pensou que poderia se desviar deste caminho doce e depois retornar. Sempre falava que estava passando por uma fase ruim, mas logo tudo passaria. Nunca acreditei nisto, e ainda assim, sempre dava mais uma chance. — Ela falava com convicção, só não conseguia convencer a si mesma. Duvidava daquele amor e o período doce não passara de amores juvenis, embalados por uma liberdade recém conquistada onde tudo era permitido: amar livremente, viajar em asas ácidas, escancarar todos os poros para absorver tudo da vida. Estas lembranças a frustraram, pois de tudo o que experimentou nada permaneceu. Nem a felicidade, nem a tristeza. Tudo passou. Restava um caminhar letárgico rumo à morte. Então o que a impedia de se entregar novamente às paixões e às experiências, era só pegar uma garrafa de vodka e levar Ferdinando para o quarto, quem sabe convidar também aquele negro, vizinho da Sebastiana, que ronda a mesa de canapés. Não seria a primeira vez ou, se preferisse, Margarida já havia dado mostras de sua queda por mulheres, também não seria a primeira vez. Poderia conseguir um pouco de coca ou um baseado. Tinha consciência da própria beleza e do fascínio que exercia em homens e mulheres. No entanto, apenas chorava ao lado do caixão daquele que a humilhou e a fez descer até os porões mais alagados. "Deveria agarrar o Ferdinando aqui mesmo e foder em cima do caixão." O que a impedia? Respeito aos mortos não era, já assistira muitos serem mortos e há muito já não se incomodava com o fato. "Acho que amanhã vou pr'aquela igreja que uma das tias falou. A merda é ter que dar 10% todo mês. Talvez noutra hora, deixa ver o que sobra do inventário."

    Uma das tias trouxe chá.

— Beba querida, vai te fazer bem. E vista um casaco, a noite será gelada.— Se esforçava, com as mesmas palavras de outros velórios.

— Saiu alguma coisa no jornal? — Perguntou distraída Anabela

    — Uma nota no obituário e uma matéria pequena no pé da página policial.

    Ferdinando se maldizia por não ter tido a idéia de trazer um chá ou oferecer o casaco. Também não trouxera nenhum exemplar do jornal. Outra tia reabastecia a garrafa de café e a bandeja de canapés e cochichava com energia para o negro.

— Pára de comer tudo seu morto da fome. Tu não era amigo do finado e nem da viúva e é o que mais come.

Ele fazia de conta que não era com ele e dava mais uma volta ao redor do caixão.

    Aderbal começava a se irritar com os urubus. Margarida fitava Ferdinando, cada vez mais indignada, cada vez mais enciumada. As tias ofereciam mais chá para Anabela enquanto o negro, vizinho de Sebastiana, rondava a mesa.

Uma mistura de odores impregnava a sala. Fumaça dos cigarros, cravos murchos, suores antigos, cachaça e café, tudo se misturando com os sussurros das rezas aprendidas em outros velórios, ditas em atos coreografados e cheias de soluços disfarçados.

    A terra já estava de escancarada, esperariam amanhecer para se livrarem de uma vez do cadáver. Anabela aspirou com força a fumaça do cigarro, deu uma olhada ao redor e retribuiu com um meio sorriso os pêsames do negro. Permanecia sentada muito próxima ao caixão "Caxãozinho vagabundo, já tem até buraco de bicho."

Sunday, October 09, 2011

A verdade

Borges conjeturou estar a verdade nas quarenta sílabas das catorze palavras casuais escritas pelo deus nas listras dos tigres. Afonso Argifontes, no livro As descobertas espetaculares de Resemundo Fialho, descreveu, através de uma intrincada fórmula matemática, os caminhos para chegar à verdade. Partiu do pressuposto de existirem não uma, mas uma série de verdades aceitas pela sociedade como, verdades verdadeiras. Identificada essa série inicial, Argifontes, sem, no entanto, informar os critérios de seleção das verdades iniciais, enumerou os critérios de aceitação e de promoção das categorias de verdades, baseados em cálculos quantitativos da população da Terra, a distribuição demográfica das gentes nos países e a quantidade de formas possíveis de repetir os enunciados. Também imaginou, ou pensou ter imaginado, um meio de medir, agora qualitativamente, a força dos enunciados escapulidos das bocas dos melhores seres humanos. A definição desta última categoria não ficou exatamente clara nas deliberações argifontianas e, imagino não ser difícil encontrar tal classificação nas páginas das principais publicações, periódicas ou não, dos países avançados e seus análogos, abaixo dos trópicos.

    Faltou, no entanto, Afonso Argifontes explicar-nos como convencer aos menos favorecidos intelectualmente, a aceitarem a definição última do que é a verdade. Arrisco lembrar, para esta tarefa, do caráter messiânico de certas profissões, como a dos jornalistas e dos bookmakers. Também tenho fé na imparcialidade e na lisura dos meios de comunicação de massa, especialmente os providos de grande aparato tecnológico e financeiro, que podem levar aos mais ignóbeis grotões, a luz de formulações como as contidas em As descobertas espetaculares de Resemundo Fialho.

    Já Marcomino di Lampedusa, primo em elevado grau de Giuseppe, muito provavelmente inspirado nas notas de Afonso Argifontes, percorreu o mundo tomando notas de todas as verdades quanto pudesse anotar. Preencheu 82 volumes com as mais variadas formas das mais puras verdades jamais proferidas por homens e mulheres de bem, membros da fina flor de suas sociedades. Compilou suas notas e publicou, vindo a ser aclamado por público e crítica, Os poderes da verdade — Por comentadores diversos e notas de Resemundo Fialho, cujo intróito cita humildemente Diderot: "Devem exigir que eu procure a verdade, não que a encontre.", como se não tivesse logrado retumbante êxito em sua busca.

    Assim, todo aquele que tiver qualquer dúvida quanto o que é realmente verdadeiro, jamais deverá deixar de consultar as glorificantes páginas do Os poderes da verdade..., sob pena de sucumbir ante o peso das mentiras e das meias verdades. De minha parte, dispenso a aventura perigosa e insana de aproximar-me demais de tigres e símiles.


 

LM

Desejos do Diabo

Ele se disse ser o próprio Diabo, o senhor das trevas, mestre do Inferno e, após esta infernal apresentação, olhava-me fixamente. Depois de um tempo de mútua observação começamos a conversar sobre as propostas e possibilidades daquela noite. Fumávamos, bebíamos cerveja e uma vodka barata vinda de uma garrafa de plástico. Sempre imaginei que ele tivesse gosto mais refinado, pelo menos a cerveja estava bem gelada.

— Tenho sido acusado das maiores injustiças, ele não sabe mais como manter a farsa que se criou em torno da sua igreja e agora tenta encontrar uma justificativa para as próprias mentiras. Veja você, que nem o inferno me pertence, dizem que é meu lar, meu reino, mas não posso nem chegar perto e já sou escorraçado por seus cães de guarda, um bando de lobos em pele de cordeiro, ou melhor, em pele de pombo, aquelas asinhas são ridículas, gosto de imaginar o Batmam com uma capinha emplumada. Minha casa é aqui, embora não possa reclamar, tenho sido muito feliz, sempre tive a mulher que quis na cama que escolhi, sou muito íntimo de algumas das maiores personalidades e as comidas e bebidas daqui não são tão ruins. Mas porque não moro no inferno? Você deve se perguntar. É simples: lá é o porão desta ditadura, é lá que são jogados aqueles que ousaram a pensar de maneira independente, é para lá que vão os que tentam levantar a voz contra os desmandos e as baixezas deste regime. — Achei meio batido esse discurso, mas deixei o cara falando mais merda pra ver até onde ia.

— Sabia que JC foi morto por que tava fazendo a cabeça da negada lá da Palestina e o chefe não gostou? Não foram os judeus e sim o cara quem mandou pendurar o próprio filho, se bem que não sei não se era mesmo filho dele, José andava se esfregando na moça. Bem, isso lá é problema deles e mesmo tendo nascido naquela família, até que o JC não era dos piores, meio pancada, mas boa praça. Bem, deixemos essa conversa e vamos ao que interessa: Compro a tua alma por quinhentos cruzeiros.

— Nem tem mais esse dinheiro. Que diabo mais burro.

— É mesmo? Bem, mas eu quis dizer quinhentos dólares.

— Ta melhorando, já passou até pra dólar.

— E então?

— Quinhentos euros, uns três torrões de erva e mais umas garrafas de vodka russa e podemos discutir os detalhes.

— Bem, vamos aos detalhes: não tenho euros e não sei aonde encontrar erva. Que erva é essa?

— Que caralho de diabo mais tanso. Vai procurar tua turma que já tá me enchendo o saco esse papo de viado. Se não tem dinheiro não leva fungadinha no cangote. Já não ando dando muita sorte ultimamente, pouco serviço, e ainda ter de aturar papo de bicha bêbada. É pra trincar os bago.

— Está aqui, escrito em letras bem legíveis e no jornal, que é pra todo mundo ver: Estivador com diploma universitário. Realizo seus desejos íntimos e profundos.

— Então tá já que tu é um figurão dos infernos, cobro só cem euros.

— Pela alma?

— Não. Só pelo corpo.

— E aquilo sobre quinhentos euros, erva e vodka russa?

— Daí tu leva corpo e alma, mas só por um fim de semana.

— Deus abençoe os classificados.


 

LM

Sunday, October 02, 2011

Orphia

As pessoas nascidas em Orphia podem ser consideradas imortais. Elas morrem, mas algum tempo depois de deixarem esta vida, nascem novamente e o que é mais impressionante, jamais esquecem suas existências anteriores. Não me perguntem como isto acontece, ou porque só em Orphia ocorre este fenômeno, nem os moradores de lá têm estas respostas, apenas relato minha experiência, que pode ser facilmente comprovada por qualquer um, basta passar uma temporada naquela cidade e tirar suas conclusões.

Morei entre os orphianos por quatro anos e, como eles têm a certeza do retorno, não cuidam-se como nós, tampouco temem a morte e isto provoca um alto índice de mortalidade, especialmente pelo suicídio. Eu, da minha parte, teria medo de meter uma bala em meus miolos, ou de atirar-me no rio Ciriano, que corta a cidade. Claro, aqueles a ocuparem altos postos na hierarquia social ou econômica não fazem tanta questão de partirem, especialmente porque não se tem controle algum sobre como retornará. Pode voltar com outro sexo, em outra família, um fortão peso-pesado pode tornar-se um tísico amarelo de 47 kg, rico voltar pobre, bonito tornar-se feio, com outra cor da pele. Sabe-se apenas isto: quem morre renasce e preservará todas as lembranças das vidas anteriores, só não se tem memória da estada no outro lado. Desta forma não se sabe se é melhor manter-se morto ou retornar, nem se há como escolher.

Nos primeiros meses de minha estada em Orphia confesso ter sentido uma ponta de inveja de seus moradores. Poder ter quantas chances quisesse na vida, desistir de uma vida para tentar a sorte em outra, ou manter-se vivo por mais tempo quando encontrasse uma existência que valesse a pena, continuar tantos projetos quantos quisesse, que de outra forma não poderiam ser tocados adiante. Conheci alguns casos assim, um escritor cuja obra, ainda inacabada, já contava com 2701 volumes, um cientista que já havia retomado a mesma experiência 32 vezes e um apaixonado, que tentava conquistar a mesma pessoa por 9 vidas. Este último me confessou pouco se importar como sua paixão retornava, pois era um amor transcendental, metafísico, só não havia ainda convencido a outra parte, mas tudo bem, tinha todo o tempo do mundo.

Outros, mais avarentos, e não eram poucos, enterravam seus tesouros para recuperá-los quando de suas voltas. Por isso o solo de Orphia é todo escavado, esburacado: sempre tinha um vivo, e também não eram poucos, tentando encontrar algum tesouro alheio escondido.

Jurar alguém de morte é uma coisa sem sentido lá e os criminosos também não são condenados à morte, mas à prisão perpétua e nos casos mais graves, a pena extrapola mais do que uma vida. O difícil é encontrar o criminoso em sua nova reencarnação. Nenhuma marca física permanece e se isto ocorre, é por puro acaso, assim, a não ser que a pessoa fale quem foi e prove, fornecendo detalhes precisos, ninguém pode ser reconhecido. Quando descobri isto voltei a conversar com o apaixonado e perguntei como ele poderia reconhecer sua paixão: "Enxergo com o coração", respondeu-me. Lembrei-me da raposa do Pequeno Príncipe e, como a raposa podia fazer isto, aceitei com possível a explicação do apaixonado.

Com o passar dos meses comecei a por em dúvida as vantagens deste eterno retorno. Poucos são os satisfeitos com sua condição. É um sujeito que gostava mais da família anterior do que da atual e sai em busca de seus antigos parentes, considerada por ele sua verdadeira família; casais tentando se reencontrar – mas como fazer isto, se nem sempre retornam com sexos adequados ao seu relacionamento anterior, nem renascem em períodos próximos, além da dificuldade em saber como encontrar quem procurava? –; poderosos tentando recuperar seu antigo status e suas antigas atribuições e, como já relatei, é muito difícil reconhecer um antigo amigo ou parente, tem-se muitos relatos de pessoas que foram enganadas. Uma mulher (era esta sua forma quando falei com ela) a procura de seu marido, relatou-me que, após intensa busca através de investigações, anúncios em jornais e entrevistas, julgou ter encontrado seu amado. Viveram 10 anos em pura alegria até um dia ser procurada por um menino de 12 anos dizendo ser seu antigo (e verdadeiro) marido. Acabou por descobrir ter sido vítima de uma fraude e seu companheiro atual, na vida anterior fora seu psicólogo e por isto soube descrever tantos detalhes de seu verdadeiro amor. Algum tempo depois de ter-me revelado estes fatos, acabou dispensando os dois, o psicólogo e o menino e suicidou-se para tentar melhor sorte na próxima vida.

Outro fato negativo constatado é o nascimento de um antigo inimigo como filho ou irmão do desafeto. Isto provocou muitas mortes em família e mais suicídios. Como podem perceber e como acabei concluindo, as coisas em Orphia não poderiam andar tão bem quanto um observador apressado pudesse imaginar e com o alto índice de insatisfação com a atual condição, com as inúmeras desavenças jamais esquecidas, ninguém querendo abrir mão de seus privilégios e muitos temendo conceber um inimigo, a taxa de casamentos na cidade é praticamente zero e os nascimentos estão continuamente em queda. Sem a lembrança do período entre a morte e a vida, não temos como afirmar se estas almas não nascidas estariam sendo eliminadas permanentemente, ou se encontram outro destino, o fato é que Orphia está desaparecendo e, a continuar neste ritmo, não resistirá mais 40 anos para cair, definitivamente, no esquecimento eterno.

LM


 


 

Sunday, September 25, 2011

A teia

Ao que pus-me a tecer, teias e mais teias, confiante de poder cobrir, em princípio, esta tão miserável árvore que insiste em afirmar ser toda a minha vida, ser meu nascedouro e meu túmulo, onde perpetuarei a minha espécie e de onde tirarei meu sustento. Árvore insignificante, serás a primeira que tomarei por inteira e nada que estiver dentro sairá sem que eu saiba, assim como nada de fora se fará interno sem minha anuência. Tomada com meu manto, a miserável árvore, mais secume menos seiva, mais marrom menos verde, monocromática, será a primeira. Virá o bosque, depois a colina, o vale e, ainda que avançado na idade, o mundo. Uma imensa e translúcida teia que permitiria entrever nos aléns, sem, no entanto, deixar escapar completamente minhas conquistas. Minha urdição e legado.

O que poderia dar errado? Teço como poucos da minha espécie e tenho disciplina, meu esforço é do tamanho das minhas ambições, não perco tempo com futilidades e brincadeiras, apenas trabalho e trabalho e se sinto que tenho de deixar descendência para melhor perpetuar meu domínio, acasalo para que o sangue do meu sangue reine sobre minha obra.

Estava tudo planejado, tudo calculado, tudo previsto, as conseqüências, até deparar-me com o primeiro revés: um galho se partiu com o vento e a extremidade leste da teia balançou no ar. Pela primeira vez percebi a necessidade de rever parte dos planos. Recomeço e tomo a devida precaução contra galhos, aumentando a espessura do fio; isto me atrasou e meu projeto sofreu o primeiro abalo. Novas metas precisaram ser estabelecidas, talvez cobrir apenas o vale, e a frustração quase fez-me desistir.

Um segundo abalo: granizos perfuraram a ala norte e as ramagens superiores ficaram expostas. O trabalho estava quase todo arruinado e eu exausto. Ainda tentei, nova calibragem na espessura do fio, novo ritmo de trabalho, aumento da carga horária e consegui apenas um colapso. E apareceram pássaros, morcegos, outros tipos de ventos, esquilos e minhas teias simplesmente foram se transformando em fiapos aleatórios. Sem forças e desmoralizado desisti. Mas o que sei de teia? O que sei de tecituras? Quem me outorgou o poder de envolver meus amigos (tenho-os?), parentes, amores, em um manto? Não seria uma máscara? Tantas interrogações; passo a me imaginar um analfabeto diante de uma carta. Faço muitas perguntas e nem imagino onde posso obter as respostas. Nada sei que não seja tecer, mas este meu saber não é suficiente para cobrir seque minha casa e por algum tempo pensei que pudesse tudo envolver.

Faço minha última tecitura, meu último manto para envolver apenas eu e meus fracassos.


 

LM

Sunday, September 18, 2011

Há vagas

Após tantos e muitos currículos enviados a todos os departamentos de RH quantos tivessem em Joinville, Charles Trezinni foi chamado para uma pré-seleção. Muniu-se de suas mais bem elaboradas frases de efeito, banho completo, penteado cheio de gel e roupa de domingo e partiu tal qual o General Athikinsons para a conquista de Monte Nalverdense. A vaga era de repositor para trabalhar em um supermercado. Não parecia muito condizente com sua formação e capacidade, mas no aperto se sujeitaria.

(Repositor

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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Repositor é o profissional que trabalha em empresas de varejo, como supermercados, hipermercados e outros tipos de lojas.

Sua função consiste, basicamente, no abastecimento de mercadorias em gôndolas e prateleiras. O profissional da reposição também é um dos responsáveis pela precificação de produtos e controle de validade de produtos perecíveis através do rodízio de produtos.

Este artigo sobre uma profissão é um esboço. Você pode ajudar a Wikipédia expandindo-o.)

    A pré-seleção consistia em uma rápida entrevista, para ver se o sujeito não era retardado e uma prova escrita com grau de dificuldade bastante questionável, para ver se os candidatos eram minimamente alfabetizados. Impetuoso Charles artista irreverente de fina cepa Trezinni maroto dos marotos não se rebaixaria escrevendo bazófias sem botar em evidência toda a sua verve acadêmico-filosófica herdada de anos e anos de estudos cosmológicos da condição humana enquanto ser vivente e pensante possuidor do dom da dominação sobre os demais seres viventes e não viventes e pôs-se a escrever do fundod´almapuradepoetafilósofo para produzir mais um divisor de águas das ciências inexatas.

Fluxo pseudofilosófico acerca dos modelos de trapaçarias

Trapaceio nas orações sussurradas por entre os vão dos dentes quase cariados a mesma trapaça das gargantas-trovões dos donos do poderio. Alheias aos sons das palavras as trapaças camuflam as mentiras das muitas máscaras vendidas nas quermesses de verdades que nem mais camuflam as mentiras embutidas. Não há verdade nas casas honradas assim como não há honra nas negações da verdadeira essência dos baluartes da moral. Mais trapaças a se sobreporem em afirmações efusivas das qualidades em mascarar-me com a maestria dos grandes fingidores. E minhas orações são recebidas nas alturas celestiais pelos santos que embalaram meu terror e minha fé; meu ódio e minha apatia; minha eternidade e minha anemia. Oro também aos homens que derreterão o ouro das minhas moedas dos meus dentes e plantarão o trigo das minhas hóstias sem perguntarem a cor dos meus olhos ou a espessura do meu sangue. Trapaceio as vidas que apresento nos concertos e evidencio as maravilhas da espécie em exibições e vernissages aplaudidas e aprovadas por honrados bastiões da moral. Escrevo sobre flores para não ter que sentir a terra; escrevo sobre os homens para não ter que aspirar seus odores; escrevo sobre a morte para não me acusarem de negar a vida; escrevo sobre a vida para morrer menos a cada dia. Falo de Deus para adiar minha finitude.

O libelo trezinniano caiu nas mãos de um certo José Dias Shulzmamm, chefe dos repositores. José Dias, alma sensível, enxergou-se naquelas palavras. Mandou que trouxessem o impetuoso artista à sua magnânima presença.

— Foste tu quem escreveu estas palavras. E apontou para a folha da prova preenchida por Charles.

— Sim, meu senhor.

Nada mais precisou ser dito e não só Charles Trezinni foi admitido, como ganhou a oportunidade de escolher qual o turno gostaria de trabalhar. Optou pelo horário das duas da tarde às dez da noite, salário de R$ 603,50 mais vale transporte. Os melhores profetas, adivinhos e videntes da cidade já previram: Trezinni se aposentará por tempo de serviço, como repositor, das duas às dez da noite, sendo importunado, de tempos em tempos, pela bursite.

LM

Saturday, September 17, 2011

De tanto correr e brincar na chuva, Carolina pegou um resfriado, complicou, veio uma gripe forte, a pneumonia, uma infecção hospitalar e não resistiu.

Antonio Henrique deleitava-se com o vento entrando livremente em seus poros, envolvendo seu corpo durante os passeios de bicicleta, até ser atropelado por um ônibus que voltava para a garagem da empresa. Foi a óbito no local do acidente.

Com medo do mar e de barcos, Reinaldo, apaixonado por pescaria, pescava apenas na beirada de rios ou na praia. Fisgou um dos grandes e iniciou a luta entre peixe e homem. Estava na barranca do Rio Capim, local seguro, leito com não mais do que 1,6m de profundidade. Escorregou e foi para água, agora a luta era travada no ambiente do animal. Reinaldo afogou-se e seu corpo foi levado pela correnteza para nunca mais ser encontrado.

Luiz Mendes escrevia sobre pessoas mortas. Obituários, pequenas histórias macabras e outras bobagens, quando sentiu um toque, como se fosse uma mão se apoiando sobre seu ombro. Não teve coragem de olhar para trás, gelou inteiro e teve um infarto fulminante.

Agnes não sabe ao certo quantos anos tem. Lembra de uma vez ter comemorado 100 anos, mas já faz muito tempo. Nunca se deita antes de verificar todas as portas e janelas, cerrar as cortinas, tomar meio copo d'água, fechar o gás e as torneiras e apagar todas as luzes. Já na cama, reza um Pai Nosso e três Aves Maria. Este ritual mantém a morte afastada e como faz pouco barulho, seus ruídos não passam de sussurros, a vida também nem a percebe.

LM

Thursday, September 08, 2011

Coleções

Ao entrar na quarta década, encontrei somente uma fileira de portas que dão em quartos sem nada dentro, a casa parece ter crescido, aumentado o número de portas enquanto e eu, encolhia. Não casei, nem tive filhos, muito menos cachorros, e isso me conforta: posso justificar a falta dos itens indispensáveis para ser um responsável pai de família com o vazio por de trás das portas. Tenho, em boa quantidade, telefones de putas pagas, de entregadores de cerveja e pizza, além de fornecedores de crédito consignado a pensionistas e aposentados. Sou velho demais para trabalhar, muito jovem para já estar aposentado e fazer-me de louco elevou minha condição a dependente de mamãe. Falecida, herdei dela a pensão que ela herdara de papai, sargento do exército morto ao cair do telhado do quartel quando tentava resgatar uma pipa. Ele era muito gordo para subir em telhados, muito inábil com pipas e sua morte sustentou minha mãe, cujo casamento já havia acabado de fato, mas não de direito, muito antes da queda, e continuará me sustentando enquanto a vida vibrar dentro do meu corpo, ainda que eu jamais tenha trabalhado. Benditas sejam as instituições legais, por não questionarem com quem se deita tua mulher, desde que tragam, assinados os papéis do tempo em que ainda acreditavam no amor e benditas sejam por não deixarem desamparados os órfãos desvalidos de aptidões laboriosas.

Assim, avanço em anos com casa própria — herdada, desta vez, da mãe do meu pai: desgostosa com a morte do filho, a velha não agüentou muito tempo — renda garantida, nenhuma profissão, três faculdades começadas e trancadas logo no primeiro ano, uma coleção de vinis do Frank Sinatra e uma de canetas promocionais, além de uma bicicleta barra forte e um casal de colerinhos. Há também os amigos, fiéis, companheiros incontestes, freqüentadores assíduos do bar do Jacó. Jogamos dominó, general, caxeta e sinuca. Truco foi tentado, mas, barulhento e insano, causou certo desconforto e, a bem da amizade, deixamos de lado. Em dias de chuva, sinto falta de uma companheira inexistente, não mais uma acompanhante profissional. Quase sinto que estou me perdendo e busco algo de sanidade lendo um pouco de Noll ou Maupassant.

Um poeta louco disse que escrevia para se salvar. Não acredito em salvação na escrita, não acredito na salvação acomodada em qualquer lugar e se escrevo é para deixar registrado um capítulo da história da insanidade urbana na modernidade ou para acumular cadernos que poderei queimar na lareira se o próximo inverno for muito rigoroso. Também li anotações de adolescentes, afirmando: “só escrevo para me salvar”. Pro inferno com a salvação pela escrita. Pro inferno com companheiras. Desisti da redenção e apenas tento manter-me vivo, bêbado, com alguma comida nas tripas e enfiado entre um par de coxas: isto é o salvar-me, não a escrita de desabafos sentimentais, ou historinhas manjadas, carregadas de uma poesia de merda. Vou pro bar do Jacó tomar uma cerveja e comer um rollmops. Há mais filosofia em um rollmops do que em toda a academia cheia de metidos a besta se fazendo passar por intelectuais.

LM

Monday, August 29, 2011

Protofantasmagoria


 

Após uma noite de sonhos agitados, amanheci metamorfoseado em um imenso mamífero, daqueles que plagiam mortos, bípede, implume e desajeitado. Precisava fugir, apenas fugir e nada mais, não da morte e suas intransigências, nem da vida e suas pseudologias, fugir do meu cadáver insepulto de bípede implume, do perdão de quem me amou, das picadas de insetos, das verdades, dos consensos, bons sensos, das linhas paralelas, da cruz e do diabo, dos olhares oblíquos e dissimulados, das listas de coisas das quais preciso fugir e dos animais que de longe se debatem como loucos. Na fuga a presa mostra todo o seu valor antes de virar uma refeição e com tantos motivos quantos coubessem em meus blocos de notas, sabia da necessidade da fuga.

    Durante a carreira desembestada descobri ser toda fuga uma corrida para a morte e suas intransigências e de tanto fugir perdi — caíram dos meus bolsos — outro tanto de coisas e abstrações próprias das listas dos fugitivos: canetas, lembranças, moedas de 5 e 10 centavos, um sabonete de ervas e talvez um ou dois amigos e nacos generosos de vida.

    A fuga cansava-me e não havia onde repousar sem ser encontrado, foi quando descobri não ter dado mais do que 47 passos desde a minha aldeia natal. Desembestada carreira circular, ou voltei sem saber que voltava? Preciso empreender nova fuga, desta vez do meu passado, que encontrei tão bem conservado entre álbuns de fotos e potinhos de pomadas guardados na casa dos meus pais. Até o dia de voltar a ser inseto.

LM

Sunday, August 21, 2011

Cronologia de moscas e sardinhas

Um certo Ulisses, às 15h30 de sua mais longa quinta-feira, muito longe de Ítaca, mais ainda de Dublin, bebia cerveja quente e comia sardinha frita. Sem pressa, comia e bebia e não tinha mais nada a fazer quando acabasse e nenhum lugar para ir, ou que quisesse ir. Apenas comia e bebia. Cerveja quente, faltava potência ao refrigerador do bar, sardinha frita, quando bem fritinha dava para comer até a cabeça, a cauda, a espinha, quando bem fritinha. Torrada, crocante, salgada com cerveja quente.

Aquele homem de barba grisalha e dedos dos pés tortos ligou o rádio com músicas de saudades partidas despedidas desencontros. O locutor tinha saudades de um tempo, quando era ouvido e era levado a sério. Este Ulisses, ouvindo sem levar a sério o locutor e suas músicas, pensou em como uma das suas sardinhas fritas poderia ter deixado sua parceira no mar, uma outra sardinha agora chorando e esta bem frita tendo a cabeça mastigada com cerveja quente.

Pensou por um momento que talvez fosse bom ter alguma coisa para fazer, as sardinhas estavam acabando, a cerveja continuava a vir quente. Não jogaria sinuca, sempre perdia, não queria pagar cerveja que não fosse beber, mesmo quente. Esperar. Não tinha nada a fazer, não tinha odisséia, nem vagaria pela cidade, pequena demais Barra do Sul para isto. Estava sentado de costas para o mar. O mar não o atraia. Às 16h42 percebeu as moscas que já estavam atacando as sardinhas e as carcaças não tão bem fritas desde às 15h49. Uma, duas, cinco, andando nervosamente de um lado para outro, esfregando com entusiasmo as patinhas da frente. Uma caiu na cerveja quente. Morte certa, embriagada ou afogada?

Não encontrou Polifemo, Serraria veio cambaleando cantar as músicas do rádio para Ulisses. Teve Vontade de sair, mas Serraria já estava ao seu lado, pés descalços, sem camisa, o calção velho puído azul claro com listas nos lados era tudo que trazia. Um olho azul e o outro castanho. Enxergava com ambos? Copo de cerveja mais quente agora pela metade e com mosca, deu ao Serraria. As outras moscas não pareceram se importar com a afogada embriagada e continuavam, agora oito, dando pequenos vôos de rápido retorno e andando sobre os escombros das sardinhas. Serraria tomou toda a cerveja e engoliu a mosca. No outro lado da pequena cidade ninguém tecia manto algum e o filho não o viria procurar. O mar não o atraia e Serraria com a mosca no estômago cantava e deixava escapar um borrifo de saliva e cerveja pelo vão da falta de dentes da frente. Ulisses teve de desviar-se do borrifo. Onze moscas foram espantadas quando o prato foi recolhido, um pano sujo xadrez vermelho e branco foi esfregado sobre o balcão. Serraria também foi espantado dali.

Ulisses pediu mais uma cerveja, não conseguiu levantar o braço esquerdo, tentou falar qualquer coisa e a língua estava grossa, enrolou, balbuciou algo desconexo e sentiu uma sombra sobre os olhos. Escutou alguém falar, não compreendeu? Fraqueza. Sentiu latejar forte a cabeça, uma fisgada. Sentiu, ou pensou ter sentido dor, virou-se para o mar, agora o atraia. Começou a cair aos pedaços, primeiro uma perna, depois os braços, o mar ia ficando cada vez mais distante, caiu o tronco e por último o chão veio com força contra o rosto. Lembrou das moscas, da cerveja quente, das sardinhas, não lembrava quem era: às 17h59 era ninguém.

LM

Tuesday, August 09, 2011

La vérité sort de la bouche des buveurs

Sizenando Veroninski contou-me ter morrido de tifo. Por um momento pensei em não acreditar, não costumo acreditar, de pronto, em estranhos e Sizenando era estranho em muitos sentidos. Depois de mais uma ou duas rodadas, acabei pondo em bom crédito sua causa mortis. Refletindo um pouco conclui não haver nada de excepcional nem ser impossível um sujeito contrair tifo e transmutar-se de vivo a morto. Resolvido o motivo do óbito, aceitei tomar parte de mais algumas rodadas e ouvir o que mais o cadáver de Sizenando Veroninski tinha a dizer.

Fiquei sabendo, por exemplo, da sua ímpar profissão: guilhotineiro. Pensei tratar-se de um profissional da indústria gráfica, mas fui logo corrigido, se referia mesmo ao instrumento de decapitar condenados. O funesto ofício, entretanto, não era exatamente sua ocupação, senão a de manter em bons termos a manutenção do artefato de degolação. Afiava a lâmina, encerava as cordas e canaletas, removia resíduos de sangue, verificava as travas, enfim, cuidava de todos os detalhes do mecanismo para que nada desse errado durante seu uso, garantindo assim o bom andamento das execuções.

Confesso ter achado-o um tanto despudorado por narrar com tanta naturalidade os detalhes de um ofício tão funesto, entretanto há que se dar um desconto, alguém tem de fazer o serviço e de preferência bem feito. Imaginem um condenado cujo pescoço não fora eficientemente atravessado pela lâmina, permanecendo meio vivo meio morto, com um enorme talho a escancarar os interiores da nuca. Ou um travamento repentino durante a queda da lâmina? Seria mesmo um despropósito, ainda mais tendo de se recorrer ao arcaísmo de valer-se de um carrasco, daqueles com capuz e a empunhar um enorme machado. E onde encontrar, às pressas, tal profissional habilitado? Não se encontra tão facilmente bons decepadores. Ao cabo, vi que seu ofício era bom e continuamos a conversar.

Contou-me também uma sua aventura em nossa cidade. Como achei uma história um tanto improvável de se por fé, julguei melhor não a reproduzir para ater-me apenas as verdades factuais.

O motivo de estar Sizenando Veroninski cá por estas terras foi sua vontade de promover uma visita a sua irmã, a bela e jovem Ludmila Veroninski. E isto interessou-me sobremaneira. Mas ele se revelou muito fraco para a bebida e quando eu estava prestes a saber mais sobre a moça, vi sua cabeça despencar lentamente em direção à mesa. Ainda tive tempo de salvar um copo pela metade, o que poderia ter-lhe causado grave ferimento e mais nada consegui extrair daquele corpo inerte. Como não tolero bêbados que não conseguem preservar o mínimo de dignidade e se entregam ao torpor em qualquer lugar, deixei-o lá, debruçado sobre as próprias secreções intra-intestinais, peguei a garrafa e saí. O ar frio da noite fez algumas avaliações e mediu 1386,72 ml de diversos tipos de bebidas destiladas em meu interior. Fiz menção de contestar a avaliação, mas vomitei antes, dei mais alguns passos e caí, provavelmente empurrado por algum malandro. Devo ter batido com a cabeça no meio-fio e dali em diante não tenho lembranças, a não ser de sentir o frio carinho da filha do Dr. Joseph-Ignace Guillotin sondando a textura do meu pescoço.

LM

Saturday, July 30, 2011

Falso Ícaro

Um homem vivia em um platô e às vezes ele ia até sua borda para olhar a planície. Ficava pensando como deveria ser bom lá embaixo, mais úmido, quente, cheio de vida. Certo dia, influenciado por um desejo incontrolável, jogou-se lá de cima. Durante a queda pensou que nada melhor do que aquilo poderia existir, o sentimento de liberdade, o vento açoitando-lhe com apaixonante violência, ele parecia um pensamento, livre capaz de qualquer coisa. Quando começou a se aproximar do chão sentiu medo e achou que teria sido melhor sua permanência nas alturas, onde já estava habituado, mas ainda assim ponderou ter valido a pena aqueles instantes mágicos da queda. Já no chão, dolorido até nas idéias, descobriu que o chão da planície, tirando uma ou outra característica geológica, era tão duro quanto o do planalto e para sua decepção, por mais que tentasse pular, alcançava um vôo pouco maior do que um suspiro, jamais poderia repetir a sensação da queda e jamais poderia retornar às alturas. Foi julgado por todos que souberam de sua aventura, uns o condenaram ferozmente por abandonar sua vida para viver uma aventura passageira, outros o reverenciaram como herói por demonstrar tamanha coragem e independência. Alheio aos que o julgavam, procurou não pensar nas conseqüências de seus atos, se teria valido a pena ou não, sua preocupação agora é outra: ouviu falar de um profundo buraco, e hoje passa os dias vagando pela planície a procura deste fosso, para poder precipitar-se, cada vez mais para baixo.

Sunday, July 24, 2011

Poemas à luz da Lua


I

Habita em minha casa,

feita de fábulas, uma Lua.

Talvez não a mais luminosa,

mas que brilha em meus olhos,

como se o mais fosse nada.

Tenho-a bela,

como se o mais fosse intenção.


 

Tal a lenda do santo,

um dragão de feições mórbidas e

rastro carregado de peçonhas,

cumpre seu papel de mal,

e devora a órbita da Lua.


 

O santo foi para um calendário,

as religiões mataram Deus

e o homem vaga à deriva,

com seus venenos e pretensões,

com ganâncias e vaidades.

Embebedando e fazendo cócegas,

tenta afugentar o dragão.


 


II

na última noite do ano

reuni em festa, umas partes de mim

que estavam guardados

um pedacinho ali, outro na gaveta,

adiante do por-do-sol,

em casas com roupa no varal e um,

de bom tamanho, pertinho da Lua

e cantei

e dancei

e vivi

dediquei tudo à Lua e adormeci

sonhei que cantava, dançava e vivia, com a Lua

cheia de si, iluminando a festa


 


 

iii


 

Uma besta na luz da Lua

devorou o brilho de um hemisfério

e consome o pouco sol

que resta em minha alma.


 

Disseram-me para, humilde,

dobrar os joelhes ante Deus.

Só ele pode devolver a luz.


 

Disseram-me para não questionar

Por que então ele tira-me a luz?

Por que criou a besta?


 

Falam-me de fé, de esperança

para por

querosene

creolina

lama

venenos

óleos

poções

onde só deveria ter a Lua.


 

Para orar aos deuses do céu

aos deuses da terra

e destinar 10% aos fazedores de milagres.


 

Sem o amparo da fé,

ofereço minha vida:

por nenhum deus aceita e

sem valor aos homens.


 

A mesma vida

sem o brilho da Lua,

não passa de um artifício.


 

LM

07/11/2008


 


 


 

Thursday, July 21, 2011

Inutiliscência

Outro dia um sujeito de maus bofes me chamou de perfeito inútil. Desferi-lhe um cruzado de direita que raspou aquela cara gorda, acertei apenas vento, para sorte daquele metido a besta. Não deveria ser nada de mais, mais uma discussão no bar, nada muito diferente de tantas outras, a merda é que chamar-me de inútil acertou em cheio no pouco de orgulho que ainda me restava. Senti o golpe. A cada dia fui ficando pior até chegar a conclusão que devo ser o cara mais inútil da face da Terra. Fiz um rápido balanço da minha vida e entre prós e contras percebi que nenhum de meus atos merecia sequer uma nota de roda pé n´algum almanaque de bizarrices.
Entre os feitos positivos estaria o fato de ter concluído a faculdade de jornalismo, conquista com algum tipo de relevância, mas descobri, entre matérias encomendadas, reportagens (se é que se pode chamar reportagem textos com 3000 caracteres) chapa branca e outras obras ficcionais que esta é uma profissão tão inútil quanto a de ascensorista: qualquer um, por mais limitado que seja intelectualmente, consegue apertar o botão do elevador com o número do andar. No final das contas o jornalista finge estar contando alguma verdade enquanto o dono do jornal finge estar dando algum valor para verdade e todos fingem serem importantes e indispensáveis.
Preocupado em dar algum valor à minha vida procurei espelhar-me em exemplos de nobre existência, mas no final das contas, para ter uma vaga nos anais da história o sujeito deve se sacrificar por uma nobre causa. Legal, não fossem as nobres causas outro amontoado de grandes mentiras. Mentira ou não, o importante é se sacrificar: “Ó meu senhor Jesus, eu estou pronto para seguir-te mesmo no cárcere, mesmo até a morte, a imolar a minha vida por teu amor, porque sacrificaste a tua vida por nós.” e assim Antônio virou santo e é lembrado até hoje. Então, tudo a ser feito é se deixar esfolar e, em tempos de pirotecnia midiática, se deixar ser fotografado, filmado, entrevistado enquanto se é esfolado, contanto que seja por uma nobre causa. Até dava para adaptar a fala do santo para um contexto atualizado e substituir JC por algo mais apreensível pelos humanos dos tempos modernos. Algo não tão fugidio quanto aquele último refúgio do canalha nem tão alienante quanto Flamengo ou Ponte Preta, mas algo que santifique o imolado. Pelo jeito continuarei sendo inútil.
Afinal cheguei a conclusão que não sou o único classificado nesta categoria, apenas mais um na multidão, complanosparaofuturo, dezhorasdetrabalhopordia, repetindotodoosantodiasempreasmesmasmentiras, comprar casa financiada, carro financiado, esposa financiado, defender valores supremos como justiça social, liberdade, democracia até perder o emprego o carro a casa o brilho dos olhos e os valores supremos chupando o tutano do sujeito até o bagaço.
E o mais patético disto tudo são os que se dizem cientes da grande mentira que é o sistema e só o reproduzem diariamente para melhor poderem se infiltrar nas entranhas deste sistema e virem a ser o germe da sua destruição. Estes auto enganadores se imaginam escritores, poetas, jornalistas, artistas, agitadores sociais, revolucionários, subversivos, até assentarem, bem gostosinho, suas bundas flácidas nos macios sofás comprados em 10xsem juros. Para provarem sua virulência publicam, em blogs inexpressivos, textos recheados de críticas ácidas e no clube posam como seres superiores. Ninguém lerá seus textos e se alguém o fizer, não dará a menor importância.
Para coroar a farsa, embebedamo-nos e fingimos que temos amigos, fodemos e fingimos que amamos, pastamos e fingimos que nos alimentamos, lemos um monte de merda e fazemos cara de intelectuais metidos em pulôveres verdes, até a hora da nossa morte, amém.

LM