Sunday, January 23, 2011

Tinha um sapo no ranchinho, pegajoso, gelado, verruguento e Sandra precisava entrar lá pegar a bicicleta para o pai. Não teve jeito, preferiu levar uma bronca. Talvez um sapo fosse uma das únicas coisas que podiam fazê-la recuar, ela era impossível. Quebrava os dentes ─sorte serem de leite─; perdia os brincos nos fundos da casa, brincando de pega-pega, para achá-los, muito tempo depois, na rua em frente da casa, brincando de pular corda; jamais conseguia cicatrizar os esfolados dos joelhos e para disfarçar novas quedas, fazia-se um curativo com retalhos de folhas de bananeira, não sarava, mas o verde fresquinho era gostoso.
Cresceu, não esfolou mais os joelhos nem quebrou os dentes, mas trouxe da infância o medo de sapo, agora não pode pegar limões, tem um pegajoso, gelado, verruguento bem embaixo do limoeiro.

Friday, January 14, 2011

Cartas de agradecimento

Caro Doutor Luiz (Fernando Teixeira), ontem abraçamos e beijamos a Dra Clélia, pois foi ela a portadora de tão boa nova, mas parte considerável de tão singela homenagem deveria ser para o senhor. Como não estava presente, receba esta mensagem de agradecimento, de admiração e de incentivo. Claro que sabemos não ser um resultado definitivo, nem o fim de nossa jornada, mas foi a primeira boa notícia após tantas e tantas frustrações e só foi possível graças ao seu empenho em buscar novas possibilidades de tratamento em insistir, em brigar, enfim, em ser quase como um pai destas crianças.
Hoje é nosso primeiro dia de “férias”, a serem gozadas durante os próximos trinta dias, onde não haverá praia, viagens, acampamentos e outras coisas que as pessoas normais fazem durante as férias, mas seremos exatamente isto que sempre quisemos ser, pessoas normais, com direito a sonhar o futuro (tão incerto para todos, mas assustador demais para pais de crianças com câncer) com planos bobinhos, tipo qual escolinha escolher, se vamos tirar as rodinhas da bicicleta, trocar o forro da garagem que está com cupim e outras banalidades. No mês que vem retomamos a rotina de luta, com as esperanças renovadas e com mais vontade de lutar, pela Luana e pelas demais crianças que se encontram na mesma situação, por isso Doutor, por favor, não desista. Sabemos que muitas vezes sua luta é inglória, permeada por algumas derrotas, emperrada por burocracias, vaidades e incompreensões, mas a profissão de médico é assim, mais do que um emprego ou trabalho, uma missão.
Obrigado.

Luiz Mendes
Sandra Tromm
Luana Mendes
Cartas de agradecimento

Nós que não fizemos o anacrônico Juramento de Hipócrates, por vezes pensamos que o médico pode explicar e resolver tudo. Nós, os leigos, sentimos raiva quando recebemos a notícia que determinado tratamento não poderá ser realizado por falta de um medicamento, ou pela deficiência de um equipamento e, às vezes, acabamos descarregando nossa frustração nos médicos que, em nossa ignorância, imaginamos estarem indiferentes à nossas aflições. Condenamos-os porque foram viajar no final de semana, ao invés de ficarem estudando uma maneira de curar nossas doenças, ou de nossos entes queridos. Esquecemos de sua humanidade, de suas limitações, de suas frustrações e pensamos que eles são insensíveis ao sofrimento alheio. Somos tolos, somos pais, somos impulsivos, intempestivos, viscerais e sentimentais, mas, em alguns momentos de racionalidade, enxergamos os médicos como iguais, talvez até mais comprometidos com nossa luta do que nós mesmos, pois têm em suas mãos não um caso igual ao nosso, mas dezenas, centenas e cada paciente, cada pai ou mãe se acha no direito de receber toda a atenção e todo o esforço para si.
Alguns buscam respostas no divino, no metafísico, no espiritual e cobram dos médicos a pouca fé demonstrada. Por vezes, alguns com um pouco mais de conhecimento e com um pouco mais de acesso à informação, se acham mais preparados do que os médicos, fazendo perguntas que estes já responderam nos primeiros meses do curso de medicina. Pacientes e pais de pacientes têm esta mania de procurarem as respostas que os médicos não deram onde suas convicções os levam e acham que todos deveriam compartilhar de tais convicções. A luta pela sobrevivência é o instinto básico mais evidente de qualquer ser vivo e cada um usa suas capacidades e aptidões nesta luta.
Antes que os destinatários desta carta se aborreçam com meus prolegômenos, vamos ao assunto e por mais que até agora não pareça, esta é uma carta de agradecimento. Todos os que acompanham o caso da Luana Mendes sabem o quanto o tumor tem se mostrado resistente a tratamentos e o alto grau de recidividade apresentado, mas, após tantas vicissitudes, conseguimos fazer no Hospital Santa Marcelina, dia 20 de dezembro, a quimioterapia intra-arterial com três drogas (carboplatina, topotecan e melfalano). Vimos como é um procedimento com alto grau de complexidade, dependente de um número muito grande de profissionais altamente habilitados e de um conjunto de suporte bem concatenado e, quando realizado em um hospital com tamanho afluxo de pacientes com as mais variadas enfermidades, depende também de uma generosa dose boa vontade dos médicos e dos demais profissionais envolvidos. Mas o resultado do primeiro exame realizado após este procedimento foi muito animador, pois as sementes vítreas, tão impertinentes e constantes mesmo após inúmeros outros tratamentos, não foram encontradas.
Por isso, queremos deixar registrados nossos mais sinceros agradecimentos a toda equipe médica do Hospital Santa Mercelina especial ao Dr. Sidnei Epelman, chefe da oncopediatria; Dra. Fernanda Barakat, oncopediatra; Dr Francisco, com quem só falamos por telefone, mas que muito contribui para realização do procedimento naquela data; Dr Luiz Fernando Teixeira, oftalmologista e quem nos indicou esta nova possibilidade de tratamento; Dr Marcio Marques (não tenho certeza, mas minha memória quer crer que este é o nome do radioterapeuta intervencionista, tão atencioso que nos explicou, ali mesmo na hemodinâmica , como tudo havia corrido bem com a Luana e nos explicou, rápida e detalhadamente, como fizera o procedimento). Muitos nomes que deveriam estar constando nesta lista, por lapso de memória, por não saber ou por distração ficaram de fora, para estas pessoas, peço minhas desculpas, mas saibam que nossa gratidão não é menor.
Estamos cientes que o resultado do tratamento, apesar de tão alvissareiro, não é definitivo tampouco encerra nossa luta, mas nos dá novo ânimo e renova nossas esperanças. Presenciamos e aprendemos o quão difícil é a realização deste procedimento, mas pedimos a todos os profissionais envolvidos que não desistam de tentar implantar este serviço de modo definitivo e sistemático, não apenas pela Luana, mas por tantas outras crianças, cujos protocolos básicos não obtiveram êxito e cujas visões, e talvez suas vidas, dependam deste tratamento. Esta dose extra de esperança e ânimo alivia nosso sofrimento, o que nos remete às palavras do Dr Drauzio Varella: “Muitos procuram nossa profissão imbuídos do desejo altruístico de salvar vidas. Nesse caso, encontrariam mais realização no Corpo de Bombeiros, porque a lista de doenças para as quais não existe cura é interminável. Curar é finalidade secundária da medicina, se tanto; o objetivo fundamental de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano.”


Obrigado a todos.

Luiz Mendes
Sandra Tromm
Luana Mendes

Friday, January 07, 2011

Plano

Primeiro alguém contou uma história falando superficialmente do assunto. Foi quando aquilo rondou minha mente, mesmo que de maneira dissimulada pelo espanto. Era, sem dúvida, algo terrível. Como uma pessoa poderia agir daquela maneira? Como ela se sentiria? Quem teria coragem?
Não pensei mais no assunto, a não ser por vagos lampejos de lembranças, rapidamente descartados como lixo residual de pensamentos erráticos. Apenas lixo a ser tirado do campo de visão. E quando já estava bem administrada toda a destinação do lixo, li no jornal sobre outro caso semelhante. Se antes a história contada não tinha materialidade, a reportagem trazia detalhes, declarações, julgamentos, pareceres de doutores, enfim, trazia proximidade e forma. Agora não eram pessoas imagináveis, mas pessoas com seus nomes, idades, endereços, CPF e RG. Tinha elementos para comparar e exemplificar.
Mantinha distância, imaginando estar tentando entender mentes alheias. Entrava em outras mentes, que não a minha, para tentar enxergar com olhos alheios. Nada daquilo tinha alguma coisa haver comigo, era apenas exercício de imaginação, afinal eu seria incapaz de tamanha barbárie. Havia a família, Deus, lembranças dos ensinamentos da mãe, minha responsabilidade perante a sociedade, um trabalho, minha reputação e tantos outros valores a serem defendidos e preservados. Não, não era nada comigo, apenas imaginação.
Mas como seria se acontecesse comigo? Seria descoberto? Arrependeria-me? Interrogações que se aproximavam, rondavam-me como um predador rondando a presa. Meus filhos, netos, amigos de longa data, como reagiriam? E sem me dar conta, já estava com tudo pronto em minha cabeça. Cada detalhe, possibilidades, desdobramentos e reações possíveis. Era só agir. Eu queria mesmo agir? Estava tudo tão planejado, tão revisto em seus detalhes, cronometrado, não tinha como nada dar errado. Já previra até minha reação.
Não tem mais volta, espero apenas o melhor momento para agir. Continuo vivendo como sempre, só que agora sei que há um brutal eu dentro de mim, sonhado quase à materialização.

LM
Sete cantos

Ano que vem completo 70 anos. Já não recordo há quanto tempo divido minha vida com esta janela. Não sou memorioso o suficiente para lembrar o que vi hoje de manhã, nem tenho criatividade para imaginar o que há além da cerca. Apenas sei a data da minha morte: no meu próximo aniversário. Se a Providência falhar, trago, sob o travesseiro, a caixa.
No ano que vem completo ciclo da minha vida, 70 anos, nem um dia a mais. Tempo suficiente para ter feito tudo que deveria ter feito. As inacabadas, desisti. Faltou-me força, talvez dedicação, ou não mereciam ser feitas, não serviam para nada além de preencher as lacunas entre o abrir e o fechar dos olhos. Se há algo para saber após a morte, saberei e chorarei todo o arrependimento, enquanto o tempo ainda existir. Nada havendo, termino, simplesmente, sem memória, sem flores em minha lápide, sem lápide – um punhado de ossos, de calcário, poeira – e o nada.
Ainda trago lembranças, modifico-as, suporto-as, invento-as. Invento-me e minto para este inventado e convenço-o-me de que aquele ser nulo era outro, não eu. Convenço-o-me da importância de passar os dias quentes, suando entre os cantos do quarto e olhando através (ou para ela) desta janela. Este cheiro azedo de humano – o pior dos cheiros – não exala das minhas peles. Vem com o vento, com o auto-convencimento. Não suportaria até o próximo ano fedendo assim. O cheiro da morte já conheço, já o senti: qual será o cheiro após a morte?
Escreverei uma carta aos meus filhos, um dia antes de completar os 70. Falarei de amenidades. Como tem feito calor; como o jornal parou de ser entregue sem aviso; o preço dos remédios; a falta de luz; a dificuldade em encontrar roupas boas e baratas; o barulho que vem da fábrica ao lado e de como é difícil dormir enquanto os motores zunem; falarei da falta de chuva nesta época do ano ou de como tem chovido ultimamente, mas especialmente, falarei como me sinto bem de poder passar os dias neste quarto, olhando para a janela. Inventarei-me pela última vez.

LM
Outro texto de Paulo Horn

MARCHA DAS BARATAS

Primeira, acho que eu deveria ir embora, segunda, talvez para um lugar mais longe, onde eu pudesse voltar a estudar, mas, terceira, mas não tenho tanta certeza assim se eu gostaria de ir embora, de sair daqui onde vivi até agora e o que eu faria se não visse mais o cachorro branco deitado no pé da árvore todo dia de manhã, e quarta, o que me incomoda são essas baratas que parecem estar em todos os lados e vi essa saindo do pote de ração do Tobias e ele de lado, não chegava ao pote por medo daquelas patas que eram muito mais que as dele e talvez na pequenez houvesse algo de amedrontador ou ele só fosse um frouxo mesmo já que quando era pequeno comia até merda se eu não cuidasse, e terceira, o que eu vou fazer com o cachorro a hora que eu for embora, talvez devesse dar ele, mas tenho medo que alguem dê uma injeção no bicho, que ele não merece e muito menos dar ele para minha mãe que não deixa o cão ser cão, ora onde já se viu um cachorro que não lata e que mije só no lugar certo, para isso têm os gatos, que além de sorrateiros são limpinhos ao seu modo, segunda, é, eu teria que levar Tobias de qualquer jeito, mesmo que fosse ele quem atraísse as baratas da cozinha, e eu me vejo indo embora, sentando no ônibus, terceira, Tobias numa daquelas caixas com furinhos para respirar e eu sentado lá pela quarta fileira para fugir do chacoalhar das rodas via pela janela uma fila gigantesca de baratas na rodovia me seguindo e olha só, puta que o pariu tem uma barata gigante sentada ao meu lado, com licença, mas preciso ir ao banheiro e ela diz, pois não e recolhe várias patas para me deixar passar, quarta, e no banheiro eu lavo o rosto e também sou barata no espelho, é, quinta, realmente, não há como fugir destas malditas patas e Tobias está certo em olhar meio de longe por que eu tenho certeza que esses dias enquanto eu dormia uma delas me assediou, mesmo que não tenha certeza ela estava lá, e andou pelas minhas costas e que ria de minha cara, quarta, terceira, talvez num lugar menos movimentado não houvessem bichos como esse, talvez se eu fosse para uma cidade menor, com menos prédios e escapamentos, com gramados verdes bem podados e algumas rosas no jardim, com menos bueiros e esgotos, mas sei que não, segunda.
Primeira, eu talvez não devesse ir embora, segunda, talvez o certo fosse ficar aqui e daqui mesmo mudar as coisas, tomar coragem e voltar aos treinos de tênis de mesa e finalmente aprender a falar francês, terceira, esquecer de uma vez por todas Lúcia, andar ao sol e comprar um inseticida a base de água, prender Tobias no quarto por umas noites, longe de ralos e acho que voltar a fumar, comer mais sushi e talvez eu devesse convidar Lana para sair, mesmo que ela me meta mais medo do que as baratas em Tobias e isso também é besteira, quarta, ela é só uma garota, certo, uma garota muito mais bonita do que eu estou acostumado, mas vamos lá, não posso deixar que um par de olhos me tirem a ação desse jeito, mesmo que vivam tirando e eu devia pisar nas baratas, esmagar suas asas e patas no chão contra meu tênis e acho que amanhã se eu ver a Lana eu convido ela pra sair, quinta, nada muito especial, uma cerveja depois do expediente, isso se ela não estiver muito bonita, mas eu acho que ela aceita sim e eu posso pedir para ela, tu pode me ver um cigarro, não, o isqueiro eu tenho, (acho que eu gostaria de queimar uma barata viva) e o que tu vai fazer hoje e ela ia dizer que talvez saísse com uma amigas para dançar e então, tu não quer tomar alguma coisa depois do trabalho e ela iria sorrir e me dizer para encontrar ela naquele bar de esquina, no centro e quarta, amanhã, quem sabe, terceira, segunda.
Primeira, eu olho pro lado para ver se não tem nenhuma barata por aqui também, segunda, tinha uma me seguindo, tenho certeza, mas desapareceu de uma hora para outra, e talvez ela seja uma dessas voadoras e se esconda entre as nuvens por que eu sei que por mais que tu não acredites essas porras voam alto, e tem um grilo bem aqui, e eu espero que ele me fale algo, mas esse deve ser um meio tímido ou então ele é mudo por que fica mexendo essas pernas o tempo todo, mas eu não sei a língua dos sinais e como será que está Tobias essa hora, eu gostaria de passar um pouco mais de tempo com ele, mas as baratas, quarta, ainda tenho que decidir se vou mesmo e se for acho que tenho que vender o carro e talvez só alugue a casa, mas não sei, não gostaria de voltar para algo que alguém vinha usando e por isso eu te odeio Lúcia e vou embora, vou sim, mesmo que tenha que levar todas as baratas do mundo comigo, mesmo que rode por aí num ônibus cheio de patas eu carregarei comigo meu inseticida, meu isqueiro e serei o maior incendiário de baratas que o mundo já viu, e vou ser reconhecido e quinta, eu vou trazer Lana comigo e viver uma vida de aventuras e vão fazer um filme sobre mim e as baratas e quem sabe eu mesmo faça uma ponta como o cara da loja que vende o inseticida para mim e amanhã, quarta, amanhã eu ganho Lana que não me mete mais medo e sim, eu já vejo ela aqui em casa, acordando mais cedo que eu e me chamando por que vamos chegar tarde para o trabalho e ela amarra o cabelo num rabo-de-cavalo e eu ponho uma camisa qualquer e no caminho compramos o jornal da senhora no sinaleiro, terceira, eu vou para um lado e ela para o terceiro andar me dá um beijo na porta do elevador e vamos almoçar juntos, segunda, e eu entro na minha sala e ligo meu computador, primeira, e vejo se não tem nenhuma barata ao meu redor, digo olá para o louva-deus, ligo o PC e então escrevo, ponto morto.