Wednesday, April 06, 2011

Óbitos

Tem uns dias em que eu queria que o mundo explodisse, ou pelo menos desse um tempo e aquele era definitivamente um dia daqueles. Acordei com uma tremenda dor de cabeça e um gosto de sola de sapato na boca. Já ouvi gente falando de gosto de cabo de guarda chuva, mas como nunca experimentei cabo de guarda chuva, não sei que gosto tem, acredito que seja parecido com o gosto de sola de sapato. Precisava urgente escovar os dentes e dar uma cagada. Catei algum jornal velho e fui para o banheiro. Não sei como tomei gosto por aquilo, só sei que gosto de ler o obituário, ver aqueles nomes de pessoas mortas me relaxa, talvez porque eu saiba que nunca vou ler o meu nome ali. Relaxado com a leitura a tarefa fica mais fácil. Mal comecei a mentalizar os defuntos a porcaria do telefone começou a gritar na sala. Deixei tocar. Nem nessas horas um homem de bem tem sossego? Luiz Mendes, jornaleiro, 48 anos deixa mulher e 8 filhos. Vítima de um parafuso desprendido de algum avião que sobrevoava a cidade. Sepultamento hoje às 17h no Cemitério Municipal. Esse ficou com um parafuso a mais. E o telefone voltou a castigar minhas idéias, não teve jeito e levantei para atender, deixei as calças penduradas no prego da parede e saí do banheiro só de camiseta. A velhota do prédio da frente, sempre bisbilhotando na janela, esperou eu me virar para ela e se fez de assustada, saiu fechou a persiana fazendo o sinal da cruz. Tenho certeza que continuou espionando.
─ Quem é?
─ Bom dia, por gentileza, com quem estou falando?
─ Perguntei primeiro. Com quem quer falar?
─ Com o senhor Charles Trezinni.
─ Sou eu. Quem diabos está atrapalhando minha cagada matinal.
─ Desculpe por interromper sua caminhada, senhor Trezinni. Meu nome é Mara e sou do programa de relacionamento do banco...
Merda de bancos, não descobriram que sou um duro e não tenho nada para me relacionar com eles. Ligam em cada horinha. Voltei para meu trono. Verônica Shullzenn Haffstantler, do lar, 87 anos, viúva, deixa 4 filhos, 5 netos e 2 bisnetos. Sepultamento hoje às 9h no Cemitério Parque Resplendor Eterno. Pelo nome pomposo essa deve ter deixado uma bela herança para os filhos se engalfinharem. Já tava tempo demais no banheiro e não podia adiar mais, era hora de sair para a vida e encarar o mundo, mas já que estava lá não custava ficar mais um pouquinho e tocar uma bronha antes de tão árdua tarefa. Dei a descarga para não ter meus pensamentos eróticos contaminados com o cheiro daquela bosta toda. Continuei sentado no bacio e me vi no espelho. Tinha um espelho enorme na frente do bacio. Nunca entendi porque aquilo no banheiro, mas já estava no apartamento e não seria eu quem iria tirá-lo. Mas naquele dia me deu vontade acertar uma tijolada bem dada nele. Enxerguei refletido no espelho, um velho calvo, com o que restava dos cabelos formando um emaranhado de fios sebentos grudando no pescoço, sentado em um trono de merda, vestido apenas com uma camiseta daquelas que os candidatos distribuíam com seus números e fotos: Ribeiro Borges para deputado estadual. A cara do Ribeiro Borges aparecia sorridente como se fosse ele o mais feliz dos homens, ou como que dizendo como ficaria o mais feliz dos homens se fosse eleito. O velho refletido estava com as pernas finas abertas, a barriga saliente servia de apoio para o braço direito projetar a mão até um ridículo amontoado de pentelhos com muitos fios brancos. Mesmo vendo aquela imagem patética continuei a bolinar-me, mas não adiantava, meu cacete mais parecia uma gelatina ou uma lesma. Recostei-me mais, ficando meio sentado, meio deitado e encostei a cabeça na parede para olhar para o teto. Não suportava mais olhar para aquele espelho. Continuei a tentativa de acordar a lesma, era uma questão de honra. Uma mosca entrou pela janela pôs-se a zunir ao meu redor. Não era uma mosca comum, mas uma daquelas varejeiras gigantes, verde-metálica, barulhenta como um liquidificador velho. Desse jeito não dava. Tive de levantar e começar a caçada ao animal. Ainda estava só com a camiseta do Ribeiro Borges e postei-me no meio do banheiro, hirto como um perdigueiro, chinelo à mão esperando um movimento em falso da desgraçada para desferir o golpe certeiro. Senti um vento frio gelando minha bunda, ela passou triscando meu nariz, mas não me movi. Segui os movimentos acrobáticos e o zunido, enfim pousou na pia. A chinelada foi certeira, mas um caco de louça voou e foi parar em cima do meu pé. Deve ter pego alguma veiazinha ou algo parecido para sair tanto sangue de um corte tão pequeno. Tirei a camiseta e enfiei a cara do Ribeiro Borges para estancar a hemorragia. A bronha estava comprometida. Precisava tentar só mais uma vez. Tentei lembrar detalhes picantes da minha última transa. Só consegui lembrar de estar vomitando ao lado da cama de um motelzinho vagabundo. Não foi uma boa lembrança. Não tinha nenhuma revista pornô por perto, só o jornal com os obituários. Lembrei da Verônica Shullzenn Haffstantler e a punheta morreu de vez. Comecei então a enxergar a velha em com sua mortalha semi-despida me esperando na cama em alguma pose sensual. Definitivamente era hora de deixar aquela punheta para outro dia e sair daquele banheiro emoscarado e assombrado e sair para a vida, encarar o mundo, ou ir para o bar do Jacó beber algumas para dar azo às idéias e ficar rezando para que aquele dia acabasse. A vida e o mundo poderiam me esperar mais um pouco.

LM

Sunday, April 03, 2011

Caridade

─ Posso doar seu troco para a Campanha da Bondade?
─ Como assim?
─ Suas moedinhas senhor, parte do seu troco eu encaminho para a campanha.
─ Mas eu nem peguei as moedas ainda.
─ Não tem problema, eu encaminho pelo sistema do cupom.
─ E o que é feito com o dinheiro?
─ É destinado para uma entidade assistencial.
─ Qual?
─ Não sei exatamente qual, mas o senhor pode visitar nosso site na internet e acompanhar os resultados da campanha.
─ Sei. Posso inscrever minha instituição para receber a grana?
─ Não sei exatamente senhor, mas se o senhor quiser, pode acessar nosso site na internet.
─ Sei. E lá, no site na internet, vai ter alguém que pode me responder se posso inscrever minha instituição e deixar o número da minha conta.
─ Não sei exatamente senhor, mas o...
─ Você não sabe responder outra coisa? Não precisa responder. Eu preciso me inscrever para receber esta grana, o nome é um sinal, Campanha da Bondade, é bem sugestivo, deve ser para fazer alguma coisa boa e nada melhor do que me ajudar a voltar a ser uma pessoa boa.
─ Não sei se é assim que funciona a campanha senhor.
─ Eu era uma pessoa boa, ajudava velhinhos e cegos a atravessarem a rua, dava esmolas nos sinaleiros, cumprimentava meus vizinhos, não chutava cachorrinhos, só que isto é ficou para trás, estou me tornando uma pessoa má, dia após dia, cada vez mais mau, mais egoísta e mesquinho. O mote da minha campanha é irrepreensível: Ajude um homem bom não se tornar mau. Faça sua doação e preserve a bondade.
─ Não sei o que dizer senhor.
─ Já sabia. Me dê logo minhas moedinhas.

LM
Redecaptado

por Paulo Horn

Naquela quinta-feira, enquanto tentava compreender o porquê de tantos carros estarem nas ruas, lembrou-se de que este dia era um dia atípico apenas para ele. Voltando do velório pensava em como tudo ao seu redor estava morrendo e batia a tristeza. O que mais sentia falta era de sua cabeça. Poucos dias antes da morte prematura da Senhorita Vanessa sua cabeça havia sofrido um mal súbito inexplicável e em poucas horas definhou. Ficara estarrecido com a perda, mas logo depois que a morte secou-lhe o membro e viu de alguma forma bizarra sua cabeça cair e rolar pelo chão, começou a brotar uma nova do espaço vazio.
Nos curtos momentos que antecederam o nascimento da nova cabeça sentiu um grande medo de se tornar o oposto de uma carranca, um corpo sem cabeça pendurado na sala de alguém, ao lado de outras peças exóticas de mau gosto. No entanto sua cabeça foi brotando lentamente e já no dia do velório da Senhorita Vanessa tinha um corpo completo novamente.
Olhou por horas a fio sua nova cabeça no espelho, reconhecendo-se. Não havia nada de diferente da cabeça anterior. Deixou de lado a inspeção para visitar a recém falecida e passando muito protetor solar com medo de que sua cabeça ressecasse e viesse a cair novamente chamou um táxi para levá-lo até a capela mortuária onde se encontrava o corpo. Por todo o caminho teve sensações desconhecidas, como se os últimos 35 anos de sua vida tivessem desaparecido e as sensações adquiridas com o tempo tivessem sido lavadas de seu corpo, rolado para longe junto com sua cabeça.
Ficou impaciente em todo sinal vermelho que pararam no caminho. Sentiu pena de um cachorro magricelo que se abrigava do sol em baixo da mesa de xadrez da praça. Ficou inquieto com a lentidão do taxista e apreensivo se não perderia o enterro. Parecia que havia entrado em um processo de redefinição de si, como se suas entranhas tivessem sido expostas e lavadas, cada desenho rabiscado em sua cabeça tivesse que ser retocado. Desceu quase em frente ao cemitério e caminhou por entre as ruelas cercadas de túmulos, atravessando até a capela. O perfume de flores que tantas vezes lhe fez mal no passado agora acariciava seu rosto. Ficou preocupado, pois com a descoberta de ter perdido uma alergia que lhe acompanhara a vida toda teve certeza que aqueles desenhos feitos na cabeça que secara não necessitavam apenas de uns poucos retoques, de uma passada de tinta mais forte. De alguma forma teria que redesenhar o que perdera.
A Senhorita Vanessa estava cercada de coroas de flores e ao se aproximar sentiu como se fosse a primeira vez que a via. Depois de todos esses anos voltara a se apaixonar por ela e agora ela estava morta. Sentiu-se tonto e seus joelhos fraquejaram. Redescobriu como era chorar aos prantos e soube então o que era esse vazio que tanto se atribui à solidão. Lembrou do esquecimento quando fecharam a tampa do caixão e o rosto da Senhorita Vanessa foi sumindo lentamente. Reconheceu a impotência ao ver o caixão ser depositado na sepultura e a solidão se estendendo pela tarde enquanto todos iam seguindo com suas vidas e ele ficava só no cemitério, perdido com as redescobertas que agora desejava esquecer. Ficou desnorteado.
Perdeu-se no caminho de casa e aumentava cada vez mais a confusão dentro de sua nova cabeça. Queria voltar a ter sua cabeça antiga, queria que esta secasse e ele nunca mais precisasse lembrar tudo que redescobrira. Queria poder esquecer a Senhorita Vanessa e que um dia a amou, mas o vazio não deixava e sua cabeça não dava sinas de que adoeceria novamente. Perdia sua mente à progressão que sua cabeça se tornava mais viva. Voltou para frente do espelho e já não mais se reconhecia. Renegava esse novo ser que aparecia no reflexo. Sua antiga cabeça era uma casca seca jogada no lixo da cozinha. Por três dias seguidos sentiu e mais sentiu, mas não agüentou mais.
Quando redescobriu o desespero cortou sua cabeça com o machado de incêndio do corredor do prédio em que morava. Foi a única vez que redescobriu a decapitação.