Saturday, July 30, 2011

Falso Ícaro

Um homem vivia em um platô e às vezes ele ia até sua borda para olhar a planície. Ficava pensando como deveria ser bom lá embaixo, mais úmido, quente, cheio de vida. Certo dia, influenciado por um desejo incontrolável, jogou-se lá de cima. Durante a queda pensou que nada melhor do que aquilo poderia existir, o sentimento de liberdade, o vento açoitando-lhe com apaixonante violência, ele parecia um pensamento, livre capaz de qualquer coisa. Quando começou a se aproximar do chão sentiu medo e achou que teria sido melhor sua permanência nas alturas, onde já estava habituado, mas ainda assim ponderou ter valido a pena aqueles instantes mágicos da queda. Já no chão, dolorido até nas idéias, descobriu que o chão da planície, tirando uma ou outra característica geológica, era tão duro quanto o do planalto e para sua decepção, por mais que tentasse pular, alcançava um vôo pouco maior do que um suspiro, jamais poderia repetir a sensação da queda e jamais poderia retornar às alturas. Foi julgado por todos que souberam de sua aventura, uns o condenaram ferozmente por abandonar sua vida para viver uma aventura passageira, outros o reverenciaram como herói por demonstrar tamanha coragem e independência. Alheio aos que o julgavam, procurou não pensar nas conseqüências de seus atos, se teria valido a pena ou não, sua preocupação agora é outra: ouviu falar de um profundo buraco, e hoje passa os dias vagando pela planície a procura deste fosso, para poder precipitar-se, cada vez mais para baixo.

Sunday, July 24, 2011

Poemas à luz da Lua


I

Habita em minha casa,

feita de fábulas, uma Lua.

Talvez não a mais luminosa,

mas que brilha em meus olhos,

como se o mais fosse nada.

Tenho-a bela,

como se o mais fosse intenção.


 

Tal a lenda do santo,

um dragão de feições mórbidas e

rastro carregado de peçonhas,

cumpre seu papel de mal,

e devora a órbita da Lua.


 

O santo foi para um calendário,

as religiões mataram Deus

e o homem vaga à deriva,

com seus venenos e pretensões,

com ganâncias e vaidades.

Embebedando e fazendo cócegas,

tenta afugentar o dragão.


 


II

na última noite do ano

reuni em festa, umas partes de mim

que estavam guardados

um pedacinho ali, outro na gaveta,

adiante do por-do-sol,

em casas com roupa no varal e um,

de bom tamanho, pertinho da Lua

e cantei

e dancei

e vivi

dediquei tudo à Lua e adormeci

sonhei que cantava, dançava e vivia, com a Lua

cheia de si, iluminando a festa


 


 

iii


 

Uma besta na luz da Lua

devorou o brilho de um hemisfério

e consome o pouco sol

que resta em minha alma.


 

Disseram-me para, humilde,

dobrar os joelhes ante Deus.

Só ele pode devolver a luz.


 

Disseram-me para não questionar

Por que então ele tira-me a luz?

Por que criou a besta?


 

Falam-me de fé, de esperança

para por

querosene

creolina

lama

venenos

óleos

poções

onde só deveria ter a Lua.


 

Para orar aos deuses do céu

aos deuses da terra

e destinar 10% aos fazedores de milagres.


 

Sem o amparo da fé,

ofereço minha vida:

por nenhum deus aceita e

sem valor aos homens.


 

A mesma vida

sem o brilho da Lua,

não passa de um artifício.


 

LM

07/11/2008


 


 


 

Thursday, July 21, 2011

Inutiliscência

Outro dia um sujeito de maus bofes me chamou de perfeito inútil. Desferi-lhe um cruzado de direita que raspou aquela cara gorda, acertei apenas vento, para sorte daquele metido a besta. Não deveria ser nada de mais, mais uma discussão no bar, nada muito diferente de tantas outras, a merda é que chamar-me de inútil acertou em cheio no pouco de orgulho que ainda me restava. Senti o golpe. A cada dia fui ficando pior até chegar a conclusão que devo ser o cara mais inútil da face da Terra. Fiz um rápido balanço da minha vida e entre prós e contras percebi que nenhum de meus atos merecia sequer uma nota de roda pé n´algum almanaque de bizarrices.
Entre os feitos positivos estaria o fato de ter concluído a faculdade de jornalismo, conquista com algum tipo de relevância, mas descobri, entre matérias encomendadas, reportagens (se é que se pode chamar reportagem textos com 3000 caracteres) chapa branca e outras obras ficcionais que esta é uma profissão tão inútil quanto a de ascensorista: qualquer um, por mais limitado que seja intelectualmente, consegue apertar o botão do elevador com o número do andar. No final das contas o jornalista finge estar contando alguma verdade enquanto o dono do jornal finge estar dando algum valor para verdade e todos fingem serem importantes e indispensáveis.
Preocupado em dar algum valor à minha vida procurei espelhar-me em exemplos de nobre existência, mas no final das contas, para ter uma vaga nos anais da história o sujeito deve se sacrificar por uma nobre causa. Legal, não fossem as nobres causas outro amontoado de grandes mentiras. Mentira ou não, o importante é se sacrificar: “Ó meu senhor Jesus, eu estou pronto para seguir-te mesmo no cárcere, mesmo até a morte, a imolar a minha vida por teu amor, porque sacrificaste a tua vida por nós.” e assim Antônio virou santo e é lembrado até hoje. Então, tudo a ser feito é se deixar esfolar e, em tempos de pirotecnia midiática, se deixar ser fotografado, filmado, entrevistado enquanto se é esfolado, contanto que seja por uma nobre causa. Até dava para adaptar a fala do santo para um contexto atualizado e substituir JC por algo mais apreensível pelos humanos dos tempos modernos. Algo não tão fugidio quanto aquele último refúgio do canalha nem tão alienante quanto Flamengo ou Ponte Preta, mas algo que santifique o imolado. Pelo jeito continuarei sendo inútil.
Afinal cheguei a conclusão que não sou o único classificado nesta categoria, apenas mais um na multidão, complanosparaofuturo, dezhorasdetrabalhopordia, repetindotodoosantodiasempreasmesmasmentiras, comprar casa financiada, carro financiado, esposa financiado, defender valores supremos como justiça social, liberdade, democracia até perder o emprego o carro a casa o brilho dos olhos e os valores supremos chupando o tutano do sujeito até o bagaço.
E o mais patético disto tudo são os que se dizem cientes da grande mentira que é o sistema e só o reproduzem diariamente para melhor poderem se infiltrar nas entranhas deste sistema e virem a ser o germe da sua destruição. Estes auto enganadores se imaginam escritores, poetas, jornalistas, artistas, agitadores sociais, revolucionários, subversivos, até assentarem, bem gostosinho, suas bundas flácidas nos macios sofás comprados em 10xsem juros. Para provarem sua virulência publicam, em blogs inexpressivos, textos recheados de críticas ácidas e no clube posam como seres superiores. Ninguém lerá seus textos e se alguém o fizer, não dará a menor importância.
Para coroar a farsa, embebedamo-nos e fingimos que temos amigos, fodemos e fingimos que amamos, pastamos e fingimos que nos alimentamos, lemos um monte de merda e fazemos cara de intelectuais metidos em pulôveres verdes, até a hora da nossa morte, amém.

LM

Tuesday, July 05, 2011

Não limpe o meio-fio

Há nos entornos de minha casa, como em qualquer casa, uma calçada, daquelas por onde transitam transeuntes, cãezinhos e demais espécies familiarizadas com este tipo de expediente urbano. Há também, e me parece lógico, mas nunca é demais uma explicação complementar, uma rua rente à referida calçada e, como não poderia deixar de estar em outro local, entre a rua e a calçada existe um meio fio. Dispensarei a apresentação deste último, certo de poder estar tratando com pessoas familiarizadas a este tipo de, repetindo, expediente urbano.
Como em qualquer rua, existe tráfego, de automóveis, caminhões, ônibus, motocicletas, uma e outra bicicleta, talvez alguma carroça e todos estes veículos deslocam mais ou menos quantidades de massa de ar, que por sua vez, deslocam mais ou menos grãos de poeira e areia. Parte desta poeira vai parar nas casas, nos escritórios, em hospitais, etc. já a parte contendo partículas maiores, a areia, fica por ali mesmo, na calçada, na rua, mas especialmente no meio fio. Neste acúmulo de areia não é incomum germinarem plantas, não daquelas ornamentais ou comestíveis, mas daquelas que ninguém quer por perto, as ervas daninhas. E é aqui que Josef K. poderia se sentir familiarizado, pois, como bons cidadãos, eu e minha família resolvemos que não é preciso deixar tudo o que é público ao encargo do poder público e pusemo-nos a varrer e capinar a parte do meio fio que já estava nos domínios do município. Feita a limpeza, o resultado foi o acúmulo de alguns sacos contendo areia e mato. Tirar do meio fio e jogar tal entulho no bueiro (como já vi vizinhos fazendo e só agora entendo os motivos deles) não nos pareceu a escolha mais acertada. Ensacamos, tomando o cuidado de não sobrecarregar no peso de cada saco e deixamos para a coleta de lixo.
Poderia continuar no parágrafo anterior, entretanto, para dar fôlego às idéias daqueles que possam achar-me prolixo, continuo neste outro parágrafo. Passou a coleta de lixo, e outra, e mais outra, e ainda outra e nada de levarem os sacos. Talvez os caminhões da coleta regular só possam coletar lixo, ainda que eu não saiba exatamente o que é classificado como lixo. Ligamos para a concessionária responsável pela a coleta (preciso abrir um parêntese: sempre fui contra esta imposição de termos de pagar a uma empresa particular, sem a opção de escolha, por um serviço que é responsabilidade do município, mas isto é assunto para outra discussão) e recebemos a informação de que eles não coletam este tipo de resíduo. O que fazer? Devolver a areia e o mato ao seu local de origem? Talvez no bueiro? No rio, que é para onde iriam a areia, mato e tudo mais que não entupisse o bueiro? Algum terreno baldio das redondezas? E agora vem a pergunta mais intrigante: se algum fiscal da prefeitura nos flagrasse fazendo qualquer uma das alternativas de descarte acima mencionadas? Deixo a resposta para Josef K, tão habituado a este tipo de situação.

LM