Monday, August 29, 2011

Protofantasmagoria


 

Após uma noite de sonhos agitados, amanheci metamorfoseado em um imenso mamífero, daqueles que plagiam mortos, bípede, implume e desajeitado. Precisava fugir, apenas fugir e nada mais, não da morte e suas intransigências, nem da vida e suas pseudologias, fugir do meu cadáver insepulto de bípede implume, do perdão de quem me amou, das picadas de insetos, das verdades, dos consensos, bons sensos, das linhas paralelas, da cruz e do diabo, dos olhares oblíquos e dissimulados, das listas de coisas das quais preciso fugir e dos animais que de longe se debatem como loucos. Na fuga a presa mostra todo o seu valor antes de virar uma refeição e com tantos motivos quantos coubessem em meus blocos de notas, sabia da necessidade da fuga.

    Durante a carreira desembestada descobri ser toda fuga uma corrida para a morte e suas intransigências e de tanto fugir perdi — caíram dos meus bolsos — outro tanto de coisas e abstrações próprias das listas dos fugitivos: canetas, lembranças, moedas de 5 e 10 centavos, um sabonete de ervas e talvez um ou dois amigos e nacos generosos de vida.

    A fuga cansava-me e não havia onde repousar sem ser encontrado, foi quando descobri não ter dado mais do que 47 passos desde a minha aldeia natal. Desembestada carreira circular, ou voltei sem saber que voltava? Preciso empreender nova fuga, desta vez do meu passado, que encontrei tão bem conservado entre álbuns de fotos e potinhos de pomadas guardados na casa dos meus pais. Até o dia de voltar a ser inseto.

LM

Sunday, August 21, 2011

Cronologia de moscas e sardinhas

Um certo Ulisses, às 15h30 de sua mais longa quinta-feira, muito longe de Ítaca, mais ainda de Dublin, bebia cerveja quente e comia sardinha frita. Sem pressa, comia e bebia e não tinha mais nada a fazer quando acabasse e nenhum lugar para ir, ou que quisesse ir. Apenas comia e bebia. Cerveja quente, faltava potência ao refrigerador do bar, sardinha frita, quando bem fritinha dava para comer até a cabeça, a cauda, a espinha, quando bem fritinha. Torrada, crocante, salgada com cerveja quente.

Aquele homem de barba grisalha e dedos dos pés tortos ligou o rádio com músicas de saudades partidas despedidas desencontros. O locutor tinha saudades de um tempo, quando era ouvido e era levado a sério. Este Ulisses, ouvindo sem levar a sério o locutor e suas músicas, pensou em como uma das suas sardinhas fritas poderia ter deixado sua parceira no mar, uma outra sardinha agora chorando e esta bem frita tendo a cabeça mastigada com cerveja quente.

Pensou por um momento que talvez fosse bom ter alguma coisa para fazer, as sardinhas estavam acabando, a cerveja continuava a vir quente. Não jogaria sinuca, sempre perdia, não queria pagar cerveja que não fosse beber, mesmo quente. Esperar. Não tinha nada a fazer, não tinha odisséia, nem vagaria pela cidade, pequena demais Barra do Sul para isto. Estava sentado de costas para o mar. O mar não o atraia. Às 16h42 percebeu as moscas que já estavam atacando as sardinhas e as carcaças não tão bem fritas desde às 15h49. Uma, duas, cinco, andando nervosamente de um lado para outro, esfregando com entusiasmo as patinhas da frente. Uma caiu na cerveja quente. Morte certa, embriagada ou afogada?

Não encontrou Polifemo, Serraria veio cambaleando cantar as músicas do rádio para Ulisses. Teve Vontade de sair, mas Serraria já estava ao seu lado, pés descalços, sem camisa, o calção velho puído azul claro com listas nos lados era tudo que trazia. Um olho azul e o outro castanho. Enxergava com ambos? Copo de cerveja mais quente agora pela metade e com mosca, deu ao Serraria. As outras moscas não pareceram se importar com a afogada embriagada e continuavam, agora oito, dando pequenos vôos de rápido retorno e andando sobre os escombros das sardinhas. Serraria tomou toda a cerveja e engoliu a mosca. No outro lado da pequena cidade ninguém tecia manto algum e o filho não o viria procurar. O mar não o atraia e Serraria com a mosca no estômago cantava e deixava escapar um borrifo de saliva e cerveja pelo vão da falta de dentes da frente. Ulisses teve de desviar-se do borrifo. Onze moscas foram espantadas quando o prato foi recolhido, um pano sujo xadrez vermelho e branco foi esfregado sobre o balcão. Serraria também foi espantado dali.

Ulisses pediu mais uma cerveja, não conseguiu levantar o braço esquerdo, tentou falar qualquer coisa e a língua estava grossa, enrolou, balbuciou algo desconexo e sentiu uma sombra sobre os olhos. Escutou alguém falar, não compreendeu? Fraqueza. Sentiu latejar forte a cabeça, uma fisgada. Sentiu, ou pensou ter sentido dor, virou-se para o mar, agora o atraia. Começou a cair aos pedaços, primeiro uma perna, depois os braços, o mar ia ficando cada vez mais distante, caiu o tronco e por último o chão veio com força contra o rosto. Lembrou das moscas, da cerveja quente, das sardinhas, não lembrava quem era: às 17h59 era ninguém.

LM

Tuesday, August 09, 2011

La vérité sort de la bouche des buveurs

Sizenando Veroninski contou-me ter morrido de tifo. Por um momento pensei em não acreditar, não costumo acreditar, de pronto, em estranhos e Sizenando era estranho em muitos sentidos. Depois de mais uma ou duas rodadas, acabei pondo em bom crédito sua causa mortis. Refletindo um pouco conclui não haver nada de excepcional nem ser impossível um sujeito contrair tifo e transmutar-se de vivo a morto. Resolvido o motivo do óbito, aceitei tomar parte de mais algumas rodadas e ouvir o que mais o cadáver de Sizenando Veroninski tinha a dizer.

Fiquei sabendo, por exemplo, da sua ímpar profissão: guilhotineiro. Pensei tratar-se de um profissional da indústria gráfica, mas fui logo corrigido, se referia mesmo ao instrumento de decapitar condenados. O funesto ofício, entretanto, não era exatamente sua ocupação, senão a de manter em bons termos a manutenção do artefato de degolação. Afiava a lâmina, encerava as cordas e canaletas, removia resíduos de sangue, verificava as travas, enfim, cuidava de todos os detalhes do mecanismo para que nada desse errado durante seu uso, garantindo assim o bom andamento das execuções.

Confesso ter achado-o um tanto despudorado por narrar com tanta naturalidade os detalhes de um ofício tão funesto, entretanto há que se dar um desconto, alguém tem de fazer o serviço e de preferência bem feito. Imaginem um condenado cujo pescoço não fora eficientemente atravessado pela lâmina, permanecendo meio vivo meio morto, com um enorme talho a escancarar os interiores da nuca. Ou um travamento repentino durante a queda da lâmina? Seria mesmo um despropósito, ainda mais tendo de se recorrer ao arcaísmo de valer-se de um carrasco, daqueles com capuz e a empunhar um enorme machado. E onde encontrar, às pressas, tal profissional habilitado? Não se encontra tão facilmente bons decepadores. Ao cabo, vi que seu ofício era bom e continuamos a conversar.

Contou-me também uma sua aventura em nossa cidade. Como achei uma história um tanto improvável de se por fé, julguei melhor não a reproduzir para ater-me apenas as verdades factuais.

O motivo de estar Sizenando Veroninski cá por estas terras foi sua vontade de promover uma visita a sua irmã, a bela e jovem Ludmila Veroninski. E isto interessou-me sobremaneira. Mas ele se revelou muito fraco para a bebida e quando eu estava prestes a saber mais sobre a moça, vi sua cabeça despencar lentamente em direção à mesa. Ainda tive tempo de salvar um copo pela metade, o que poderia ter-lhe causado grave ferimento e mais nada consegui extrair daquele corpo inerte. Como não tolero bêbados que não conseguem preservar o mínimo de dignidade e se entregam ao torpor em qualquer lugar, deixei-o lá, debruçado sobre as próprias secreções intra-intestinais, peguei a garrafa e saí. O ar frio da noite fez algumas avaliações e mediu 1386,72 ml de diversos tipos de bebidas destiladas em meu interior. Fiz menção de contestar a avaliação, mas vomitei antes, dei mais alguns passos e caí, provavelmente empurrado por algum malandro. Devo ter batido com a cabeça no meio-fio e dali em diante não tenho lembranças, a não ser de sentir o frio carinho da filha do Dr. Joseph-Ignace Guillotin sondando a textura do meu pescoço.

LM