Sunday, September 25, 2011

A teia

Ao que pus-me a tecer, teias e mais teias, confiante de poder cobrir, em princípio, esta tão miserável árvore que insiste em afirmar ser toda a minha vida, ser meu nascedouro e meu túmulo, onde perpetuarei a minha espécie e de onde tirarei meu sustento. Árvore insignificante, serás a primeira que tomarei por inteira e nada que estiver dentro sairá sem que eu saiba, assim como nada de fora se fará interno sem minha anuência. Tomada com meu manto, a miserável árvore, mais secume menos seiva, mais marrom menos verde, monocromática, será a primeira. Virá o bosque, depois a colina, o vale e, ainda que avançado na idade, o mundo. Uma imensa e translúcida teia que permitiria entrever nos aléns, sem, no entanto, deixar escapar completamente minhas conquistas. Minha urdição e legado.

O que poderia dar errado? Teço como poucos da minha espécie e tenho disciplina, meu esforço é do tamanho das minhas ambições, não perco tempo com futilidades e brincadeiras, apenas trabalho e trabalho e se sinto que tenho de deixar descendência para melhor perpetuar meu domínio, acasalo para que o sangue do meu sangue reine sobre minha obra.

Estava tudo planejado, tudo calculado, tudo previsto, as conseqüências, até deparar-me com o primeiro revés: um galho se partiu com o vento e a extremidade leste da teia balançou no ar. Pela primeira vez percebi a necessidade de rever parte dos planos. Recomeço e tomo a devida precaução contra galhos, aumentando a espessura do fio; isto me atrasou e meu projeto sofreu o primeiro abalo. Novas metas precisaram ser estabelecidas, talvez cobrir apenas o vale, e a frustração quase fez-me desistir.

Um segundo abalo: granizos perfuraram a ala norte e as ramagens superiores ficaram expostas. O trabalho estava quase todo arruinado e eu exausto. Ainda tentei, nova calibragem na espessura do fio, novo ritmo de trabalho, aumento da carga horária e consegui apenas um colapso. E apareceram pássaros, morcegos, outros tipos de ventos, esquilos e minhas teias simplesmente foram se transformando em fiapos aleatórios. Sem forças e desmoralizado desisti. Mas o que sei de teia? O que sei de tecituras? Quem me outorgou o poder de envolver meus amigos (tenho-os?), parentes, amores, em um manto? Não seria uma máscara? Tantas interrogações; passo a me imaginar um analfabeto diante de uma carta. Faço muitas perguntas e nem imagino onde posso obter as respostas. Nada sei que não seja tecer, mas este meu saber não é suficiente para cobrir seque minha casa e por algum tempo pensei que pudesse tudo envolver.

Faço minha última tecitura, meu último manto para envolver apenas eu e meus fracassos.


 

LM

Sunday, September 18, 2011

Há vagas

Após tantos e muitos currículos enviados a todos os departamentos de RH quantos tivessem em Joinville, Charles Trezinni foi chamado para uma pré-seleção. Muniu-se de suas mais bem elaboradas frases de efeito, banho completo, penteado cheio de gel e roupa de domingo e partiu tal qual o General Athikinsons para a conquista de Monte Nalverdense. A vaga era de repositor para trabalhar em um supermercado. Não parecia muito condizente com sua formação e capacidade, mas no aperto se sujeitaria.

(Repositor

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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Repositor é o profissional que trabalha em empresas de varejo, como supermercados, hipermercados e outros tipos de lojas.

Sua função consiste, basicamente, no abastecimento de mercadorias em gôndolas e prateleiras. O profissional da reposição também é um dos responsáveis pela precificação de produtos e controle de validade de produtos perecíveis através do rodízio de produtos.

Este artigo sobre uma profissão é um esboço. Você pode ajudar a Wikipédia expandindo-o.)

    A pré-seleção consistia em uma rápida entrevista, para ver se o sujeito não era retardado e uma prova escrita com grau de dificuldade bastante questionável, para ver se os candidatos eram minimamente alfabetizados. Impetuoso Charles artista irreverente de fina cepa Trezinni maroto dos marotos não se rebaixaria escrevendo bazófias sem botar em evidência toda a sua verve acadêmico-filosófica herdada de anos e anos de estudos cosmológicos da condição humana enquanto ser vivente e pensante possuidor do dom da dominação sobre os demais seres viventes e não viventes e pôs-se a escrever do fundod´almapuradepoetafilósofo para produzir mais um divisor de águas das ciências inexatas.

Fluxo pseudofilosófico acerca dos modelos de trapaçarias

Trapaceio nas orações sussurradas por entre os vão dos dentes quase cariados a mesma trapaça das gargantas-trovões dos donos do poderio. Alheias aos sons das palavras as trapaças camuflam as mentiras das muitas máscaras vendidas nas quermesses de verdades que nem mais camuflam as mentiras embutidas. Não há verdade nas casas honradas assim como não há honra nas negações da verdadeira essência dos baluartes da moral. Mais trapaças a se sobreporem em afirmações efusivas das qualidades em mascarar-me com a maestria dos grandes fingidores. E minhas orações são recebidas nas alturas celestiais pelos santos que embalaram meu terror e minha fé; meu ódio e minha apatia; minha eternidade e minha anemia. Oro também aos homens que derreterão o ouro das minhas moedas dos meus dentes e plantarão o trigo das minhas hóstias sem perguntarem a cor dos meus olhos ou a espessura do meu sangue. Trapaceio as vidas que apresento nos concertos e evidencio as maravilhas da espécie em exibições e vernissages aplaudidas e aprovadas por honrados bastiões da moral. Escrevo sobre flores para não ter que sentir a terra; escrevo sobre os homens para não ter que aspirar seus odores; escrevo sobre a morte para não me acusarem de negar a vida; escrevo sobre a vida para morrer menos a cada dia. Falo de Deus para adiar minha finitude.

O libelo trezinniano caiu nas mãos de um certo José Dias Shulzmamm, chefe dos repositores. José Dias, alma sensível, enxergou-se naquelas palavras. Mandou que trouxessem o impetuoso artista à sua magnânima presença.

— Foste tu quem escreveu estas palavras. E apontou para a folha da prova preenchida por Charles.

— Sim, meu senhor.

Nada mais precisou ser dito e não só Charles Trezinni foi admitido, como ganhou a oportunidade de escolher qual o turno gostaria de trabalhar. Optou pelo horário das duas da tarde às dez da noite, salário de R$ 603,50 mais vale transporte. Os melhores profetas, adivinhos e videntes da cidade já previram: Trezinni se aposentará por tempo de serviço, como repositor, das duas às dez da noite, sendo importunado, de tempos em tempos, pela bursite.

LM

Saturday, September 17, 2011

De tanto correr e brincar na chuva, Carolina pegou um resfriado, complicou, veio uma gripe forte, a pneumonia, uma infecção hospitalar e não resistiu.

Antonio Henrique deleitava-se com o vento entrando livremente em seus poros, envolvendo seu corpo durante os passeios de bicicleta, até ser atropelado por um ônibus que voltava para a garagem da empresa. Foi a óbito no local do acidente.

Com medo do mar e de barcos, Reinaldo, apaixonado por pescaria, pescava apenas na beirada de rios ou na praia. Fisgou um dos grandes e iniciou a luta entre peixe e homem. Estava na barranca do Rio Capim, local seguro, leito com não mais do que 1,6m de profundidade. Escorregou e foi para água, agora a luta era travada no ambiente do animal. Reinaldo afogou-se e seu corpo foi levado pela correnteza para nunca mais ser encontrado.

Luiz Mendes escrevia sobre pessoas mortas. Obituários, pequenas histórias macabras e outras bobagens, quando sentiu um toque, como se fosse uma mão se apoiando sobre seu ombro. Não teve coragem de olhar para trás, gelou inteiro e teve um infarto fulminante.

Agnes não sabe ao certo quantos anos tem. Lembra de uma vez ter comemorado 100 anos, mas já faz muito tempo. Nunca se deita antes de verificar todas as portas e janelas, cerrar as cortinas, tomar meio copo d'água, fechar o gás e as torneiras e apagar todas as luzes. Já na cama, reza um Pai Nosso e três Aves Maria. Este ritual mantém a morte afastada e como faz pouco barulho, seus ruídos não passam de sussurros, a vida também nem a percebe.

LM

Thursday, September 08, 2011

Coleções

Ao entrar na quarta década, encontrei somente uma fileira de portas que dão em quartos sem nada dentro, a casa parece ter crescido, aumentado o número de portas enquanto e eu, encolhia. Não casei, nem tive filhos, muito menos cachorros, e isso me conforta: posso justificar a falta dos itens indispensáveis para ser um responsável pai de família com o vazio por de trás das portas. Tenho, em boa quantidade, telefones de putas pagas, de entregadores de cerveja e pizza, além de fornecedores de crédito consignado a pensionistas e aposentados. Sou velho demais para trabalhar, muito jovem para já estar aposentado e fazer-me de louco elevou minha condição a dependente de mamãe. Falecida, herdei dela a pensão que ela herdara de papai, sargento do exército morto ao cair do telhado do quartel quando tentava resgatar uma pipa. Ele era muito gordo para subir em telhados, muito inábil com pipas e sua morte sustentou minha mãe, cujo casamento já havia acabado de fato, mas não de direito, muito antes da queda, e continuará me sustentando enquanto a vida vibrar dentro do meu corpo, ainda que eu jamais tenha trabalhado. Benditas sejam as instituições legais, por não questionarem com quem se deita tua mulher, desde que tragam, assinados os papéis do tempo em que ainda acreditavam no amor e benditas sejam por não deixarem desamparados os órfãos desvalidos de aptidões laboriosas.

Assim, avanço em anos com casa própria — herdada, desta vez, da mãe do meu pai: desgostosa com a morte do filho, a velha não agüentou muito tempo — renda garantida, nenhuma profissão, três faculdades começadas e trancadas logo no primeiro ano, uma coleção de vinis do Frank Sinatra e uma de canetas promocionais, além de uma bicicleta barra forte e um casal de colerinhos. Há também os amigos, fiéis, companheiros incontestes, freqüentadores assíduos do bar do Jacó. Jogamos dominó, general, caxeta e sinuca. Truco foi tentado, mas, barulhento e insano, causou certo desconforto e, a bem da amizade, deixamos de lado. Em dias de chuva, sinto falta de uma companheira inexistente, não mais uma acompanhante profissional. Quase sinto que estou me perdendo e busco algo de sanidade lendo um pouco de Noll ou Maupassant.

Um poeta louco disse que escrevia para se salvar. Não acredito em salvação na escrita, não acredito na salvação acomodada em qualquer lugar e se escrevo é para deixar registrado um capítulo da história da insanidade urbana na modernidade ou para acumular cadernos que poderei queimar na lareira se o próximo inverno for muito rigoroso. Também li anotações de adolescentes, afirmando: “só escrevo para me salvar”. Pro inferno com a salvação pela escrita. Pro inferno com companheiras. Desisti da redenção e apenas tento manter-me vivo, bêbado, com alguma comida nas tripas e enfiado entre um par de coxas: isto é o salvar-me, não a escrita de desabafos sentimentais, ou historinhas manjadas, carregadas de uma poesia de merda. Vou pro bar do Jacó tomar uma cerveja e comer um rollmops. Há mais filosofia em um rollmops do que em toda a academia cheia de metidos a besta se fazendo passar por intelectuais.

LM