Agradeço às manifestações de solidariedade e à pujante audiência registrada e aos meus seguidores e também aos meus detratores, 2013 neles.
LM
Por ordem judicial terei de suspender as postagens neste blog até que se seja julgado o mérito de ação movida contra este blogueiro, pelo senhor Charles Trezinni.
Meu advogado, o Dr. Carreeiro, conseguiu liminar contra a retirada do ar do blog, mas estou impedido de publicar novos textos.
Segundo o avocato, a autorização para novas postagens deverá ser concedida em seis meses.
Aos meus seguidores e detratores, até breve.
LM
Estevan Grodosh não teve perdão. Morreu com um tiro na nuca enquanto rezava seu terço. Deus certamente estava prestando atenção nas intermináveis repetições da longa reza e nem percebeu a aproximação do matador. José dos Santos, conhecido como Zezinho Matador, nome de santo com reforço dos demais, não conhecia Deus muito menos todos os santos que pudessem conter em seu nome, sabia apenas atirar sem desperdiçar cartucho. José nunca se interessou em saber quem estava matando, bastava que lhe dessem a descrição, onde morava ou trabalhava e lhe pagassem o adiantamento. Metade antes e o restante depois do serviço pronto. Estevan era agricultor, nunca quis saber de quem eram as terras onde plantava feijão e criava meia dúzia de galinhas. Sabia apenas que era terra devoluta e isto para ele bastava, mesmo sem saber o que significava. José cobrava por importância da encomenda, um agricultor como Estevan era o que de mais barato havia em sua tabela de preços, os mais valorizados eram juízes, prefeitos e delegados, mas como havia pouca encomenda de figurões e muita de pé rapados, Zezinho andava matutando em inverter a tabela e começar a cobrar mais para dar cabo da caboclada. O problema é que se não mata na bala, a pobreza morre de fome ou pestes e pode não ter serviço. Estevan Grodosh morreu rezando para que sua vida, que era um inferno, melhorasse. Se tiver melhor sorte na morte do que na vida, deveria ter ido para o céu, mas como tinha lá umas contas a acertar com a igreja, o mais provável é que foi para o purgatório. José dos Santos nunca rezou e matou muitos Estevans e se tudo der certo, quando morrer deve ir para o inferno. Quem contratou Zezinho Matador para dar cabo de um sem terra vive do bom e do melhor, num luxo tamanho que José ou Estevan jamais imaginaram que pudesse existir. Ele também encomenda muitas missas por mês na catedral e é amigo do bispo, certamente sabe como chegar ao paraíso quando morrer.
LM
continua a chover
/contínua/
e as gentes desta terra
sonham o contrário:
não percebem que os pingos
insistem em se jogar das nuvens
em vão
pois secam
antes de caírem
nos telhados das pessoas de bem
deve ser por isto
que só eu percebo
há muito deixei de ser
uma pessoa de bem
a merda é
que por não ser
exatamente mau
tenho de ficar no limbo
onde a chuva não é farta
mas as goteiras nunca erram o alvo
LM
Já está há muito tempo naquela casa, seus pulmões já não aguentam mais o pó de cupim nevando do forro de madeira dia-e-noite-noite-e-dia até não ter mais nem casa para cair na sua cabeça. Está ali desde sempre, talvez até mais: antes de Edite, seus pais encheram a casa com sonhos para o futuro e tiveram três filhos. Os irmãos, assim que engrossaram as penugens do queixo, partiram e só retornaram para enterrar o pai. Edite ficou e de recompensa, recebeu como dote de casamento, a casa. Dentro dela, a mãe doente. Não teriam filhos enquanto a imobilidade daquele corpo se confundisse com os móveis herdados. Móveis carregados com cheiros antigos que, se disfarçando, foram ficando.
Sem a mãe, Edite sentiu toda a felicidade por vir, a casa se encheria de filhos e alegria. Bastava aspirar os cheiros dos novos tempos, de uma nova vida. Foi quando aspirou pela primeira vez o pó de cupim.
O passar do tempo pouco mudou a casa, apenas envelheceu-a mais e deu a Edite anos para serem passados da mesma maneira, sempre, assim como a mãe. Procurava refúgios e gostava de ficar sentada na varanda, contando os poucos carros que passavam na rua. Classificava-os mentalmente por cores e, quando reconhecia, por marca. Ou quantos vinham da esquerda e quantos da direita. Oculta por samambaias penduradas que quase tocavam a cerca da varanda, sentia-se protegida, anônima. Nessas horas não dava importância para a insistente chuvinha de pó de cupim que cobria a casa, especialmente ali, no seu esconderijo quase na rua.
A casa fora construída quando ainda não havia a rua, apenas um carreirinho. Ele foi se alargando, alargando, até o dia, quando Edite ainda nem era nascida, que os funcionários da prefeitura pregaram uma placa na própria parede da casa: R. Serapião Ventura. Agora, com a rua pavimentada, quase não havia espaço entre a casa e a calçada. Assim, camuflada entre samambaias penduradas e hibiscos que ladeavam o muro revestido de limo, Edite se sentia fluida entre as plantas, tão próxima de quem passava pela calçada e sem ser percebida. Poderia flutuar acima do assoalho, sobre as antigas camadas de cera que se sobrepunham no brilho escurecido da madeira, até a porta da saída, cujo verde da pintura resistia apenas na lembrança.
Em certas ocasiões, planejava meticulosamente como mudaria sua vida. Havia poucos carros para classificar e naquela tarde, não só planejou como se sentiu com disposição suficiente para executar. Sabia a que horas a vizinha saia, que horas voltava, os horários de Silas, dos filhos voltarem da escola, do vizinho e o mais importante, imaginara detalhadamente as conversas e respostas das pessoas que encontraria pela rua. Precisava apenas tirar o pó de cupim dos ombros e sair.
Ao amanhecer, a casa se apresentava ainda mais decadente. As primeiras luzes da manhã projetavam sombras irregulares e os contrastes realçavam a feiura pré-histórica da construção. Não era apenas um problema da idade, a arquitetura também não ajudava. Na garagem era onde a tacanhez da casa mais se manifestava, era onde Edite, enfrentando uma invasão de formigas, se perdia em caminhos familiares.
Domingo de manhã seria o dia mais improvável para aquela faxina. Balde de água, esfregão, sabão, as crianças seguindo as trilhas das carregadeiras e o sol, ignorando suas nuvens particulares, entrava sossegadamente pela janela escancarada. Não se preocupava em disfarçar as marcas nos braços e no pescoço. Os meninos ainda não sabem o que são tipo de marca, apenas o sol que espiava pelas frestas da manhã.
O mesmo sol matinal começava a irritar Silas, bêbado em um beco do centro da cidade e também iluminava a casa vizinha, deixando à mostra, através das finas cortinas, o marido levando café da manhã na cama para a companheira. Era uma casa irritante, daquelas bem construídas com paredes sólidas, teto de laje que não derruba pó de cupim. Era pintada com um amarelo vibrante, como se seus moradores quisessem exteriorizar toda a felicidade que ali reinava. Na frente, um jardim impecável, como o restante da casa, exibia o colorido de flores da estação substituídas ao menor sinal de perda de viço. Mal conhecia seus habitantes e não queria, não gostava da felicidade deles.
Água, sabão, esfrega bem. Nenhum sinal externo vindo da casa ao lado. Varre. Crianças saiam da sujeira! Estes sapatos eram do Silas. Quis ter um galão de gasolina naquela hora. Crianças, para fora!
Sentiu pó de cupim caindo nela. Olhou para cima, como quem procura alguma coisa importante perdida, e fixou o olhar no caibro exposto. Certificou-se de que as crianças se entretinham. Olhou mais uma vez para a casa vizinha e fechou a janela. Pensou que se o domingo terminar, segunda vai procurar um emprego.
Não tinha gasolina, pegou um galão saiu, no caminho até o posto pensou que álcool pudesse ser menos fedido, enquanto andava pensava em empregar o combustível da maneira mais dramática. Poderia por fogo na casa, imolar-se em praça pública ou provocar uma explosão no shopping. Encheu o galão e foi ao caixa pagar.
— Olá vizinha. O que faz por aqui?
Ela se virou para ver quem falava e se era com ela. Era o morador da casa amarela, olhando-a com ar amistoso de bons vizinhos. Edite se sentiu constrangida de ser vista naquela situação. O que ele poderia pensar?
— Quer uma carona? Convidou o vizinho enquanto pagava a gasolina do carro. — Estou indo para casa.
— Eu vim comprar cigarro. E deixou o galão com álcool no posto.
No carro, Edite que até então estava conversando com monossílabos e meneares de cabeça, pensou em perguntar algo que os pudesse aproximar, algo como: "você é feliz mesmo ou é só um disfarce aquela sua casa babaca?".
— A gente mora há tanto tempo... eu não sei o nome do senhor...
— Não me chame de senhor, não são assim tão velho, mas sou um apaixonado por cinema. Respondeu inusitadamente.
O carro já havia passado a entrada da rua Serapião Ventura. E para se justificar, da resposta ou do caminho errado, continuou: — Já assisti umas vinte vezes O último tango em Paris, não teremos nomes, nem lugar certo para ir, e oraremos pela família.
—Lembrei que estou sem margarina em casa. Disse ao acaso Edite. Foi a única coisa que lembrou e para ela aquela conversa não fazia mesmo sentido nunca ouvira falar daquele filme, não sabia dançar tango, não conhecia Paris e não sabia rezar.
— Já que o senhor — fazendo uma pausa para se corrigir — quer dizer, você passou, poderia me deixar no mercadinho?
— Quando saí de casa percebi que não havia ninguém na casa de vocês...
— Os meninos estão na casa do primo e o meu marido foi embora.
— Então vamos comprar manteiga.
LM
na última noite do ano
reuni em festa, umas partes de mim
que estavam guardadas
um pedacinho ali, outro na gaveta,
adiante do por-do-sol,
em casas com roupa no varal e um,
de bom tamanho, pertinho da Lua
e cantei
e dancei
e vivi
dediquei tudo à Lua e adormeci
sonhei que cantava, dançava e vivia, com a Lua
cheia de si, iluminando a festa
LM
era para ser verdade
era para ter pureza
era para sempre
não teve o vento a levá-lo
nem marcas de tinta fresca
foi apenas fim
se acumularam desculpas
sobre os cheques devolvidos
faltou o som das lágrimas
perceberam tarde demais
que tudo era só teatro
falas decoradas
LM
Dois engradados de plástico cheios de bonecas, bichinhos de pelúcia, carrinhos, pequenos potes, instrumentos musicais rudimentares e tantas outras quinquilharias são os brinquedos perfeitos da menina que mora na casa verde. Uns emitem sons engraçados, outros, os sons são a menina quem os faz emitirem, há ainda os fofinhos, os engraçados por serem esquisitos e os esquisitos mesmo. Todos preenchem solitárias tardes da menina com alegria, faz de conta e muita magia. É neste cenário lúdico que nossa história se passa, é a história de amor entre o soldadinho de plástico e a bailarina de porcelana.
Ele era, como já ficou claro, um soldadinho de plástico e ela, sem nenhuma dúvida, uma bailarina de porcelana. Ele, um dos tantos brinquedos das caixas, ela um enfeite sobre a cômoda do quarto. A separá-los a imensidão da imobilidade dos brinquedos de plástico e dos bibelôs de porcelana, além da altura praticamente intransponível entre o chão do quarto e o alto da cômoda. Ela, apenas enfeite, dificilmente era requisitada para as brincadeiras, ficava nas suas alturas, observando os contos de fadas e as aventuras de princesas que a menina tramava com os brinquedos das caixas. Chamou-lhe a atenção aquele soldadinho preto, de plástico, querendo fazer pose de valentão, mas com uns olhos tão tristes o que o deixava bem bonitinho.
Às vezes a caixa de desenhos era colocada entre bichinhos de pelúcia e bonecas e a menina espalhava lápis e canetinhas a procura da cor ideal para os mais malucos desenhos. Já o soldadinho, esperava ansioso ser pego pela menina e mais ansioso ainda ficava, esperando ser jogado no chão de forma a poder ficar fitando a bailarina no alto do seu palco. Quando isto acontecia, não perdia a oportunidade de mirar cada detalhe da bailarina, seus olhos negros, sua pele branca, roupas brilhantes e, especialmente, um colarzinho com uma meia lua pendurado no alvo pescocinho. Os dois nunca conversaram, não sabiam um o nome do outro, mas o soldadinho, inspirado pelo colar com a meia lua, em suas fantasias chamava a bailarina de Luana.
Quando a menina recebia a visita de outras crianças, não havia brinquedo que não ficasse espalhado pelo quarto e num desses dias, após as crianças cessarem as brincadeiras, o soldadinho, estendido no chão, ouviu um ruído. Não havia mais crianças ali, apenas os brinquedos. Perguntou quem era.
— Sou eu, o lápis.
— Um lápis? E lápis falam?
— Sim! Não só falo como escrevo lindas histórias com maravilhosas ilustrações.
— E não é nem um pouco modesto. É você mesmo que escreve as histórias?
O soldadinho estava muito surpreso e confuso com a aparição daquela figura magrela e falante. Não que ele nunca tivesse visto um lápis, mas aquele era bem diferente e o lápis continuou.
— Modesto? Apenas falo a real. E vou contar como faço as histórias, é assim: as histórias são feitas com palavras. Não é mesmo? E às vezes, para dar um efeito estético bacana, existem ilustrações nestas histórias. Pois bem, eu sou um fazedor de histórias.
— Acho que estou entendendo. E se você faz as histórias, pode escolher também os personagens?
— Claro!
O lápis que não era bobo nem nada e já havia percebido os olhares compridos do soldadinho em direção à bailarina, percebeu logo onde o bonequinho queria chegar. Então o soldadinho perguntou:
— Será que eu poderia participar de alguma aventura?
— É pra já.
Sem perder tempo o lápis começou a rabiscar no ar seus caracteres mágicos escrevendo e ilustrando uma história de amor. Enquanto dava forma às palavras da história, o lápis desenhou uma escada que ia do chão do quarto até o alto da cômoda onde estava a bailarina. Ao redor dela dispôs flores, árvores, coloridas borboletas e notas musicais. Ao perceber as notas musicais voando com as borboletas, a bailarina começou a dançar enquanto o soldadinho, lá no chão, ficava em pé. Rodopiante e cantarolando uma linda canção, a bailarina desceu as escadas e foi até o soldadinho.
— Oi.
Disse a bailarina enchendo sua pequena fala com um toque musical.
— O oi.
Gaguejou o soldadinho.
— Meu nome é Luana.
— Eu já sabia, sempre soube que não poderia haver outro nome para alguém tão linda quanto a própria Lua.
O soldadinho, se não fosse inteiro preto, teria corado, não sabia como tinha dito palavras tão atrevidas, logo ele, tão tímido e calado. O lápis observava a cena e ria enquanto continuava a escrever sua história. A bailarina pediu para o soldadinho falar alguma coisa sobre ele e, ainda sem entender muito bem como, começou a contar emocionantes aventuras que ele tinha participado. Eram aventuras em florestas distantes, com salvamento de animais das armadilhas de caçadores malvados; histórias de castelos e princesas, fadas e monstros. A bailarina sorria e ouvia as lindas narrativas com muita atenção. Ele continuava sem entender direito o que acontecia, pois desde que saiu da prateleira da loja de brinquedos, nunca saiu daquele quarto e a coisa mais emocionante que tinha lembrança era ficar contemplando a bailarina. Então ele percebeu que não eram suas aquelas histórias, mas do lápis que escrevia e ilustrava as aventuras. O soldadinho voltou a ficar tímido e se entristeceu, pois tinha visto como brilhavam os olhos negros da bailarina enquanto escutava suas narrativas. Sentiu-se como estivesse mentindo para ela, pois não eram aventuras suas.
Sempre atento, o lápis notou a mudança de atitude do soldadinho, que voltou a ficar imóvel como um pedaço de plástico rijo e foi em seu socorro.
— O que foi amiguinho?
— É que eu fiquei tão empolgado com as histórias que nem percebi que eram apenas invenções suas, que nunca vivi estas aventuras.
— Engano seu meu caro soldadinho, eu faço apenas rabiscos, são vocês que fazem as histórias. Vejo seus rostinhos alegres, seus olhinhos cintilantes e ali enxergo as mais espetaculares aventuras que se possa imaginar. As histórias são suas e tem muitas maneiras de viver uma aventura, uma delas é entrando nelas através das histórias.
A bailarina, por natureza mais sonhadora, entendeu logo o que o lápis estava tentando explicar ao soldadinho, de alguma forma ela já sabia que as histórias estavam todas em seus corações e falou:
— Então não vamos perder mais tempo, vamos contar uma linda história com muita magia, danças, aventuras e romance.
O soldadinho se reanimou e eles continuaram a brincar, dançar ao som das melodias desenhadas pelo lápis e a viver as mais espetaculares aventuras.
LM
Até aqueles caras que tocam duas ou três notas e no mais, dão apenas batidas nas cordas do violão já me humilham ante minha total inaptidão para a música. Não tenho voz para cantor e não me arrisco nem em karaokês domésticos, isto ainda passa, mas não saber tocar algum instrumento musical me oprime profundamente, poderia ser qualquer um, flauta doce, chocalho, pandeiro, muito embora meu verdadeiro fascínio seja pelo violão. Pode ser que existam outros instrumentos mais nobres, ou mais difíceis para aprender, mais sofisticados talvez, mas é tirando notas na simplicidade da viola, na sua comovente sinceridade que me vejo quando sonho estar tocando algum instrumento.
Quando jovem almejava tal habilidade para impressionar as meninas nas festas de escola, ou nos entardeceres na praia. Não preciso dizer que faltavam-me muitos atributos para impressionar as garotas, não era forte, bonito, inteligente, ou rico; não sabia surfar, nem tinha alguma habilidade que me fizesse ser notado, então sonhava com algo que não poderia ser tão difícil assim de conseguir: um violãozinho ordinário não era coisa cara e aprender a dedilhá-lo não deveria ser coisa inatingível. Estava enganado. Até arranjei um violão de segunda mão, de marca conhecida, mas daí a tirar alguma música dele foi um abismo intransponível. Tentei em outras oportunidades, com iguais fracassos. Agora, com os dedos fracos e menos ágeis, enterro definitivamente este sonho.
Sei fritar ovo, fazer arroz soltinho, macarrão al dente e, se a carne for de bom corte, assar um churrasco razoável. Temperar salada não conta, então eis todo meu repertório culinário. Em adolescente li um livro onde o personagem principal dominava as mais variadas técnicas de cozinha e era capaz de fazer um verdadeiro banquete com dois pães velhos, alguns temperos, um pouco de azeite, algum fruto do mar ou qualquer sobra de corte de carne. Além de cozinhar magistralmente, o personagem era um grande sedutor e maior ainda aventureiro. Em minha mente semi-infantil condicionei uma coisa à outra: um bom cozinheiro seria sempre um grande amante e viveria sempre em grande estilo. Deveriam proibir as crianças dotadas de parcos recursos intelectuais de lerem livros deste tipo. Logo saí eu, tal qual um dom Quixote – ele envenenado pelos livros de cavalaria, eu por heróis cozinheiros – a queimar cozidos, estragar peixes, esturricar carnes, e achando que estava abafando, principalmente quando fazia toda aquela gororoba intragável ser acompanhada por aqueles ordinários vinhos da garrafa azul. Ao menos o manchego teve seu escudeiro, quanto a mim, tive de lavar os pratos e jogar as sobras (e sempre sobrava quase tudo) só.
Haveria ainda outras tantas coisas a acrescentar a esta lista de insucessos, como pescar, cultivar um canteiro de cebolinhas e salsinhas, cavalgar, fazer e empinar pipas, mas seria uma lista muito enfadonha e correria o risco de ser taxado como um cara chato que não sabe fazer nada. Há ainda uma frustração mais singela, talvez até me digam, mais sem sentido, pois poucos são os que conseguem algum sucesso com tal habilidade e, em alguns casos de êxito, nem há tal necessidade. Evitarei alongar-me ao falar desta minha inaptidão, para poupar meus poucos leitores, que talvez já tenham até descoberto a que me refiro. Gostaria de saber escrever.
LM
Penso ter sido Funes o primeiro caso relatado e descrito em publicações científicas. Borges soube bem, como sempre, fazer uma descrição poética do passar dos dias deste memorioso, não sem antes, presumo, ter se debruçado sobre os relatos médicos do doutor Aquilino Pontes de Villa Real, onde este estranho aumento da capacidade de retenção de informação do cérebro humano é descrito. Adoto o sábio procedimento do argentino e também evitarei fazer uso da palavra recordo. Antes, penso ter sido assim que aconteceu, ou quase, quando estava passando em frente a uma loja de roupas usadas, nas imediações das ruas de prostituição do centro, quando esbarrei com um sujeito que saia da loja. Era Salomão Silva (fiquei sabendo mais tarde). Desculpei-me pelo encontrão e sem alterar o ar de enfado que já antes enraizara-se em seu rosto, respondeu que isto iria acontecer, não deveria preocupar-me com isto. Pensei em falar qualquer outra coisa, nada ocorreu e calei, ele também, mas não saímos da calçada. Para emitir som e sabendo que não me faria compreender (me estava incomodando ficar ali parado) pronunciei et in Arcadia ego e ele começou a entrecortar frases em línguas outras, suspeito, "auch ich war in Arkadien geboren" e "moi, aussi, je fus pasteur em Arcadie. Desfez-se um pouco do ar de enfado e esboçou um começo de sorriso ao confidenciar-me, sem saber exatamente porque, que estava a enumerar algumas possibilidades de desdobramentos desta frase, inimagináveis para Sir Joshua Reynolds, muito menos para o rei Jorge III. Fiquei um pouco confuso, havia lido sobre Arcadia, no dia anterior, as argumentações de W. Weisbach na Gazette des Beaux-Arts de 1937 e uma passagem da Le vite de' pittori, scultori, et architetti moderni de G. P. Bellori. Este livro é de 1672 e não conheço muitas traduções ou exemplares no Brasil, logo imaginei tratar-se de algum historiador. E ele continuou, empolgado, a citar estudos acerca do tema: Wielhelm Gustaffsön, nas Parafrases inter-relacionais, de 1633; Os evangelhos apócrifos de Judas Iscariot, escrito em 1599 por Estevan Garcya Orlentiano de Toledo. Obras que eu apenas escutara breves referências, quase lendárias e aquele estranho não apenas as citava, como recitava trechos que, com meu parco latim e meu pior ainda alemão, apenas intuia.
Encheu-me de curiosidade e de ânimo conversar com tão culto senhor, apresentamo-nos e expliquei que estava fazendo um estudo sobre história da arte no medievo e perguntei-lhe qual sua titulação (nós, homens civilizados damos extrema importância aos títulos) e ele limitou-se a dizer que jamais frequentara escolas. Disse-me ser dono daquele brechó, um lugar de coisas do passado, e que falou já ter-me visto passando por ali. Objetei, não recordava (em negativa posso valer-me desta palavra) de ter andado por rua tão mal afamada. Ele ignorou minha resposta e prosseguiu: "A primeira vez foi em 1976, 26 de abril, às 15h33 de mãos dadas com um senhor, (seu pai)", ele descreveu as minhas vestimentas e de meu pai, evitarei entrar nestes pormenores, além de serem irrelevantes, não ousaria a tentar fazê-lo, mas este primeiro resgate do passado avivou minha memória e penso que realmente ocorreu. Comuniquei-lhe que talvez fosse apenas aquela vez, em infância, sem dar-me conta que aquele estranho acabara demonstrar ter mais lembranças minhas do que eu mesmo. Novamente ele ignorou-me e começou a fazer uma lista de outras datas em que passei em frente a sua loja, foram 87 vezes e, num jorro ininterrupto, porém coeso, ele descreveu não só datas, mas minhas roupas, horário, clima, quantas vezes conversei com as putas, se estava só. Falou-me de coisas que queria ter esquecido, ou antes, fingia que nunca aconteceram, mesmo que ainda fizessem parte de meu presente: O que estaria então fazendo em tão má afamada rua? Evitei responder, enquanto isto Salomão Silva falava de mim. Por ter recordações de detalhes ínfimos das minhas 87 passagens em frente da sua loja, ele pode deduzir informações que estavam além do seu campo de visão. O dia da morte de meu pai, do meu casamento, da minha separação, do nascimento dos meus filhos, até falou que algumas roupas minhas já tinham ido parar em sua loja e falou para quem as havia vendido.
Não pude deixar de fazer relação com Funes e tentei mencionar tal fato, Salomão adiantou-se e falou que Funes teve a má sorte de ter sua revelação após sua queda, enquanto ele já nasceu assim e tem recordações a partir do sexto mês de gestação de sua mãe, quando não passava de um feto. Poderia ter ignorado tudo aquilo, taxar como coisa de louco, entretanto sentia serem verdadeiras suas lembranças, especialmente após tantos e tão precisos relatos a meu respeito. Convide-o para sairmos da calçada, sugeri um bar ali perto, era um boteco que nunca fechava as portas e nossa conversa durou o restante do dia e toda a noite. Falou-me de suas lembranças, tantas que não caberiam nem em modernos computadores, descreveu-me todos os estudos sobre a Arcadia que havia lido, mas quando perguntei sobre sua família ele calou. Lembrava de coisas que aconteceram quando ele ainda estava no ventre materno, mas coisas dele, apenas dos outros, não tinha lembranças dele, de como ele era quando criança, ou quando era mais jovem, se amores teve, se casou-se, ou se teve filhos, suas lembranças eram de outras pessoas. Recordava de pessoas que podem ter sido seus parentes, sabe o que fizeram em cada dia, cada minuto, mas não consegue ver-se nestas lembranças e desde um tempo impreciso (eis o único lapso em sua memória) vive só, como uma imensa biblioteca vazia de pessoas.
Senti um profundo pesar, maior ainda respeito, durante a noite, enquanto ouvia Salomão Silva falar, elaborei planos para usufruir daqueles precisos registros do tempo, ao amanhecer desisti. Percebi que apesar de tão assombrosa quantidade de recordações, ele não sabia exatamente quem era, tampouco sabia organizar suas lembranças de forma a produzir novos conhecimentos, era incapaz de formular um juízo de valor, muito menos de tecer algum comentário que remetesse à abstração, antes apenas citava autores, filósofos, noticias de jornal, transeuntes que falavam sobre determinado tema, mas sua própria opinião estava soterrada sob inimaginável quantidade de informação. Desisti de minhas intenções, especialmente quando percebi que, apesar de não ter memória própria, de viver só, de não poder formular um raciocínio próprio, ele não era infeliz. Às vezes enfadava-se, mais com as lembranças dos outros do que com sua própria condição, parecia não se dar conta da própria existência e não seria eu quem o tiraria de seu sono cheio de sonhos dos outros.
Nos despedimos, falei que jamais esqueceria nossa conversa (arrependi-me de proferir tamanha blasfêmia na frente de Salomão Silva) ele falou a mesma coisa (com absoluta propriedade). Em casa pus-me a registrar este fabuloso encontro e dei-me conta de estar reproduzindo o mesmo modelo de Salomão Silva, pois escrevia sobre um memorioso, coisa já feita por Borges, achando estar fazendo algo muito importante e quanto mais eu tentasse reescrever para dar ares de assunto novo e autoral, mais eu me frustrava, percebia estar mais ainda tentando imitar o argentino, ou antes, reescrever o Funes, como Menard tentou reescrever o Quixote. Acabei duvidando de minha memória. Teria sonhado tudo aquilo? Salomão Silva não existe fora de meus devaneios? Estava apenas plagiando a ideia de Menard? Eu teria ido àquela rua ontem e mais 87 vezes? Pensei em terminar este relato com a morte de Salomão Silva, mas se ele realmente existisse, teria de matá-lo, tal pensamento fez percorrer um tremor por meu corpo, havia me deixado influenciar demais por acontecimentos confusos de uma noite longa, a mais extensa das noites de minha vida. Resolvi deixar de delírios, colocar as ideias no lugar, iria à loja de Salomão Silva naquele instante. Apavorei-me com a possibilidade: se fosse e ele não existisse, estaria definitivamente louco e não passava de um insignificante imitador de Borges, um macaco fazendo caretas para se parecer com um homem; se ele lá estiver, corro o risco de saber-me apenas mais uma de suas inumeráveis recordações.
LM
Ele sempre foi o mais talentoso, o mais elegante, mais inteligente, espirituoso e uma série de adjetivos que escuso reproduzi-los para não parecer que meus atos tiveram como motivação a inveja. Não, afianço-lhes não se tratar disto, embora todos nos sentíssemos eclipsados. Ouvi, não sem objeções, de vários dos do nosso grupo, desabafos com tons de desilusão por se acharem tão bons, e, talvez, até melhores do que ele, sem, no entanto, terem a chance de poderem brilhar sem serem vistos como um satélite. Inveja? Não de minha parte, agi de acordo com a razão pura.
A primeira série de homenagens fúnebres ocorreu alguns dias após a primeira crise. Os médicos não deram muitas esperanças e, diferenças à parte, todos sentíamos um profundo respeito e, ainda, nutríamos bons bocados de nossa velha amizade. Enquanto havia um resquício de lucidez, promovemos declamações leituras dramáticas, exposição de trabalhos seus, retrospectivas, tudo em alucinante corrida contra a morte. Burla feita, à medicina e a indesejada das gentes, quer seja por efeito de tamanha dose de remédios espirituais, quer seja por pura pachorra, ele, ou seu corpo, prolongam sua estada. Toda a emoção das despedidas antecipada reverberou entre nós e até ameaçamos uma reaproximação. Plenamente recuperado, voltamos ao nosso secundário papel enquanto ele brilhava, Fênix, mais do que nunca.
Evito falar em tempo, posto, não me ter dado conta de quanto se passou, talvez um ano, ou pouco mais e nova crise, muito mais arrasadora, sem qualquer esperança. Feita a primeira, faríamos a segunda despedida ao lado de nosso amigo, ainda em vida. Novas leituras, exposições, declamações, encenações, choros, revelações, mais algumas performances e o quadro permanecia inalterado, passando a estável, até recuperar-se, dantescamente emergia de mundos impenetráveis. Falseio ao querer fazer-me preciso, ainda mais se tratando de matéria, justamente, imprecisa, mas houvesse meio de medir, poderia apostar em menos entusiasmo e emoção nas segundas exéquias. Apenas impressão, nada mais.
Fizemos ainda uma terceira despedida. Limitar-me-ei a informar apenas isto.
Se já existia alguma frustração, algum sentimento de injustiça, arrisco até, alguma dose de inveja, repito, não de minha parte, tantas homenagens fúnebres sem cadáver o elevaram a condição de celebridade. Sua fama alcançou alturas incríveis, enquanto nós, mantínhamo-nos presos ao chão, ao labor braçal e bruto dos servos a suster os nobres.
Nada mais havia a ser feito, não poderia deixá-lo envelhecer e minguar, não agora. Haveria de imortaliza-lo e para isto era preciso terminar o que a natureza havia apenas ameaçado. Fui à sua casa, era desnecessário anunciar-me, tinha-me quase como um familiar. Encontrei-o ainda em pijamas, lembrei de uma passagem ocorrida nove dias antes da morte de Kant e pensei em conceder-lhe das Gefühl für Humanität – o senso de humanidade – e permitir-lhe trajar-se de maneira solene como a situação exigia, mas ele não teria mais nove dias.
LM
Não me proponho, com muita frequência, contar a história de nomes próprios, muito menos sendo de parentes. Abro uma exceção, mais por um carinho, dos tempos de criança, reservado a quem escolheu o nome, do que ao personagem batizado. Antes de chegar ao nome, falemos brevemente de meu tio Bartolomeu Mendes. Ele se dizia cantador e violeiro de fina cepa, minhas lembranças não contam a mesma coisa. Não consigo esquecer a maneira furiosa como ele agredia as cordas do violão enquanto maltratava tons e versos. Como gostava muito dele – era o único adulto da família que se dignava a falar e brincar com as crianças -, credito o desafino e a inépcia a algum gole a mais de cachaça ingerido antes das apresentações.
Para meu tio Bartolomeu, as coisas jamais pareciam seguir a normalidade dos demais senhores sisudos de nossa família e quando seu filho, Quininho, nasceu ele ainda tinha dúvidas se o batizaria Cabotino ou Baldaquino. Naquela época não havia exames de ultrassom e não recordo se havia uma opção feminina e talvez seja melhor nem saber. Resolvida, sabe-se lá como, a dúvida, Bartolomeu apresentou ao mundo seu filho Baldaquino Mendes, logo alcunhado de Quininho. Não tivesse sido esta a escolha, certamente teria como apelido Tininho. Não teve perdas ou ganhos.
Quer seja por ignorância, ou por falta de interesse em pesquisar, apenas na graduação fiquei sabendo o significado do nome posto, bem como da opção preterida. Tenho dúvidas se alguém da família saberia. Arrependo-me de não ter procurado os significados antes, poderia ter perguntado ao tio Bartolomeu de onde buscara inspiração. Agora resta apenas a versão de Quninho, de que seu nome é uma homenagem a um importante artista dos estrangeiros.
Feita esta breve hagiografia, um tanto do tio Bartolomeu, outro, etimológica, do nome de meu primo, descobri, não sem surpresa, que os Mendes, enfim, terão seu Cabotino. Recebi o convite, um tanto intempestivo, do casamento de Quininho. Justifica a pressa, o comunicado, no mesmo convite, que um impaciente herdeiro está a caminho. Baldaquino está com bodas marcadas com Arlequina Beviláqua e aguardam, ansiosos, o nascimento de Baldaquino Bartolomeu Cabotino Beviláqua Mendes.
LM
A mãe andava pelas ruas do centro, entre clientes e fornecedores. Do pai, soube que há alguns anos estava preso n'alguma penitenciária do interior, mais nada. Vivia como dava com a avó, um dia comendo pouco, no outro quase nada. Quando começaram a despontar dois protomamilos percebeu que também poderia ganhar algum dinheiro com seu corpo franzino. Os primeiros clientes foram alguns moleques da rua, mas eles não pagaram, deram apenas umas pedras de crack. Um homem em um carrão a levou para o motel. Queria que ela chupasse e engolisse, ela o mordeu. Apanhou, foi violentada de todas as formas e não recebeu pelo serviço. Foi a primeira surra das ruas, tinha doze anos. Aos dezesseis assaltava, matava, roubava, mas não cedia mais seu corpo. Foi presa aos dezessete, depois de vingar-se daquele mesmo sujeito que a violentou aos doze. Ele era um cidadão de bem, pai de família, respeitado homem de negócios, temente a Deus. Os telejornais bradavam por justiça, chamavam-na de monstro, assassina fria. Ainda legalmente menor, os representantes da sociedade, da família, clamavam na televisão por mudanças na lei. Era inconcebível pensar que aquela criatura repulsiva, que ousara a ferir de morte um cidadão de bem, pudesse ganhar a inocência assim que completasse a maioridade. No outro dia, aliviados, os formadores de opinião noticiavam a morte da assassina, ela se havia enforcado com o sutiã na cela da detenção. Ele teve uma belíssima missa de sétimo dia na catedral, ela foi enterrada como indigente.
LM
N.A.: Desde quando expliquei para Luana que tinha um blog e o que era, ela me cobra para eu postar suas histórias, de preferência com a personagem principal com o seu nome. Tentei explicar que mesmo usando nomes de pessoas que conhecemos, a partir do momento em que vai para uma história, passa a ser o personagem e não mais a pessoa. Ela não quis saber dessas coisas, então, eis mais um pequeno conto de ventos e outras fantasias, com minha personagem favorita.
Em Farfallândia viviam as mais belas borboletas, cheias de cores, tantas que um pintor, daqueles dados a ataques de tragicidade, seria capaz de cortar um braço para ter em sua paleta tamanha quantidade de variantes cromáticas. Apesar da infinidade de tons desfilando em asas ligeiras, cada borboleta tinha apenas uma cor, nada de misturas, mas eram tantas as cores que não seria nenhuma surpresa descobrir não haver repetição, cada borboletinha com sua tonalidade própria.
A vida seguia em seu curso normal naquela vila multicolorida quando, até que em uma noite especial, em que a lua tanto encheu-se de brilho para exibir o maior luar já visto, nasceu uma borboletinha diferente, com asas completamente brancas. Nunca isto havia acontecido em Farfallândia então, vendo aquela criaturinha com asas brancas como uma pálida lua cheia, seus pais deram-lhe o nome de Luana.
A enluarada borboletinha cresceu alegre e amada, ela era muito simpática, carinhosa e, graças a sua cor singular, todos na vila a conheciam. Então chegou o a época de ir para escola. Luana estava ansiosa para poder conhecer novos amiguinhos, mas no primeiro dia de aula ela percebeu que não seria assim tão fácil quanto imaginava. As outras borboletinhas, que nunca tinham visto borboleta com asas sem o tradicional colorido, começaram a rir e fazer perguntas que Luana não sabia responder.
— Cadê sua cor?
— Você vai ficar colorida como a gente?
— Isso dói?
— Você pode voar?
As pequenas borboletas não sabiam que apesar da coloração diferente, Luana era uma borboleta igual a qualquer outra e podia fazer as mesmas coisas que as outras borboletas de sua idade. Isto deixou Luana muito triste e ela resolveu ir embora de Farfallândia. Tinha ouvido histórias sobre um mestre das cores, um artista muito habilidoso que morava no outro lado do bosque e decidiu procurá-lo. Não sabia ainda como este mestre das cores poderia ajudá-la, mas estava resolvida e partiu.
Não foi muito difícil encontrar a casa do mestre das cores, ele morava em uma cabana cercada por flores de todas as cores, ao lado da casinha, corria um riacho que desaguava em uma cascatinha. Os respingos levantados pela queda d´água se encontravam com os raios do sol e formavam um arco-íris permanente. Tudo ali era colorido, parecia ter sido cuidadosamente decorado por um meticuloso artista. O lugar era tão bonito que Luana nem teve medo e foi logo chamando pelo dono da casa.
— Olá! Senhor mestre pintor! Senhor mestre das cores! Gritou Luana
— Pois não. Em que posso ajudá-la? Respondeu o mestre, que não era um mestre, mas uma mestra, saindo de dentro da casinha.
— Oi! Meu nome é Luana, meu nome é assim porque nasci em uma noite de lua cheia e minhas asas são brancas como o luar e eu venho de Farfallândia.
— Olá! Eu sou Tarsila do Arco-íris, meu nome é assim por causa do arco-íris perto de minha casa.
As duas logo começaram a conversar e perceberam que seriam boas amigas e Luana até esqueceu o motivo de sua viagem, até que Tarsila perguntou.
— Mas o que você faz por aqui, tão longe de seus amigos?
Luana contou como estava triste por não ter cores tão vibrantes em suas asas como as outras borboletas e queria saber se Tarsila poderia ajudar a colorir suas asas. A mestra das cores deu uma grande gargalhada.
— Não seja tola minha amiguinha! Você já se olhou no espelho? Suas asas são as mais luminosas e brilhantes que já vi, como se fosse o próprio brilho do luar e elas são brancas porque têm todas as cores misturadas.
— Como assim? Todas as cores? Quis saber Luana.
— Vou te explicar. Falou a mestra. Nossos olhos não conseguem enxergar direito as cores, e o que vemos é o reflexo da luz. Isto é meio complicado, mas é mais ou menos assim e quando misturamos a luz de todas as cores sabe que cor temos?
— Uma cor multicolorida? Falou Luana.
— Não. Temos a cor branca. Então minha amiguinha, suas asas refletem todas as cores das asas das outras borboletas e é por isso que ela fica branca quando olhamos. Seu colorido único traz as cores de todas as outras borboletas e eu nunca vi asas tão brilhantes quanto as suas.
—Puxa vida, então eu não preciso ter vergonha de minha palidez.
—Nunca e se os outros riem de você, é porque não sabem direito das coisas. Agora volte para sua família e tenha muito orgulho de suas maravilhosas asas.
Luana voltou para Farfallaândia, mas algo terrível estava prestes a acontecer em sua vila. Um enorme e esfomeado sapo encontrara a vila e se preparava para um delicioso e colorido banquete. Vendo aquilo e vendo suas amiguinhas em desespero, Luana não teve dúvidas e rapidamente bolou um plano. Ela voou em direção ao sapão. Abriu suas enormes e brilhantes asas na frente do guloso, que vendo aquele espetáculo, esqueceu das outras borboletas e saiu pulando em direção aquele intenso brilho. Luana foi voando lentamente em direção a um abismo que existia ali perto, sempre tomando cuidado para manter-se a uma distância segura do sapão. Hipnotizado pelo espetáculo das asas da corajosa borboletinha, ele nem percebeu que pulava para uma grande queda. Depois de ter se esborrachado e quase morrido, o sapo guloso não quis mais saber de atacar borboletas, coloridas ou não.
Em Farfallândia todos receberam Luana com muita festa e pompa e depois daquele dia, ninguém mais riu das suas brancas e brilhantes asas. Dizem até, que algumas borboletas mais invejosas até quiseram se pintar de branco para ficarem parecidas com Luana, mas o máximo que conseguiram foi borrar suas asas.
LM
Antes de Isidore embarcar para Paris, o senhor Medina, imaginando uma viagem motivada pelo amor, recita alguns trechos dos Les Cahnts de Maldoror para o filho. O rapaz ouve em silêncio.
− A dama que me espera em Paris apreciará a poesia da nossa gente. − Murmura, mais para si do que para o pai.
Parado na frente do Hospital da Salpêtrièri, Isidore se sente ridículo por não ter procurado contatar o hotel antes de viajar. Colhe informações com os passantes e descobre ter sido demolido o antigo prédio, para dar lugar a este anexo do histórico Hôpital dês Invalides. Falta pouco tempo para seu aniversário e ainda não reuniu todos os ingredientes nem encontrou um hotel adequado. Olha para o edifício branco e se irrita com sua boa saúde. Nenhuma dor, nada de febre, tosse ou manchas vermelhas. Apenas a habitual palidez aristocrática herdada da mãe.
Na Escola da Sagrada Família, em Montevidéu, quando aprendeu a conhecer poesia, descobriu de onde viera seu nome. Foi lá também que descobriu com quantos anos e de que maneira morreria. O estudante Isidore Lucien Herrera Medina, além do mesmo nome, nasceu no mesmo dia da morte de Isidore Lucien Ducasse, o Conde de Lautréamont: 24 de novembro de 1870. Naquela época ele percebeu que receber o nome do Conde exercera uma influência que Joaquim, Ernesto ou Ramon não exerceriam. Foi quando começou a se interessar pela escarlartina.
Isidore custa a aceitar a idéia de não ocupar um quarto no hotel da Faubourg-Montmartre, número 7. Sem outra alternativa, se instala num hotel na Place St.-Sulpice com a Garnicière para fazer as últimas anotações nos seus Cantos. O quarto bem aquecido não tem as mesmas paredes desbotadas, como o Conde tanto apreciava.
Reunidos os ingredientes, prepara a mistura de metileno, anfetamina, plantas alucinógenas e vinho. Mergulha nos abismos dos lençóis de seda até despertar preguiçosamente. Isidore procura por Deus ou pelo Diabo. Desorientado, lembra do mal-estar generalizado se espalhando pelas entranhas. Reconhece o quarto do hotel, seus manuscritos sobre a mesa e suas roupas espalhadas. Imaginou não deixar memória de si, mas ainda está no hotel. Já é dia 25. Ele continuará vivendo e morrerá como qualquer um, menos como o outro Isidore.
LM
Não há vagas
Não vendemos fiado
Não aceitamos cheques
Não pise na grama
Não me provoque
Não jogue lixo no chão
Não fale com o motorista
Não fume
Não de comida aos animais
Não mude de assunto
Não ultrapasse na faixa contínua
Não bata a porta
Não aceitamos devolução
Não aceitamos reclamações posteriores
Não suje as ruas
Não tomarás Seu santo nome em vão
Não entre sem camisa
Não diga que eu não avisei
Não entre, cão bravo
Não pense que está sendo fácil para mim
Não fazemos troca
Não matarás
Não é o que você está pensando
Não adulterarás
Não compreendo
Não cobiçarás a mulher do próximo
Não havia mais nada a fazer
e os sims se negam.
A partir de Orphia, seguindo o poente em direção às montanhas do leste, o viajante encontra um grande deserto cortado pelo esquecido rio Çevir. Acompanhando o rio até quase o meio do deserto, está a cidade de Körlük. Diz-se de Körlük que lá todos os adultos são cegos sem, no entanto, haver uma explicação científica para tal peculiaridade, apenas sabe-se que esta patologia não afeta as crianças. Estas nascem perfeitas, gozando da mais absoluta saúde e assim permanecem até a adolescência, quando começam a perder a visão gradativamente, para entrarem na idade adulta, sem enxergarem mais nada.
Muitos tratamentos foram tentados e muitas experiências foram feitas, todas infrutíferas. Outra dificuldade às pesquisas é o fato de os cientistas não terem certeza absoluta dos diagnósticos oftálmicos, pois há a suspeita de que a endemia não se manifeste de maneira igual em todos os indivíduos. Desta forma existe uma divisão em três grandes grupos, sendo um formado por pessoas que teriam plena capacidade visual, mas por motivos insondáveis, comportam-se como se nada enxergassem. São os que enxergam, mas fingem que não veem e, muitas vezes, até parece que não querem mesmo ver nada diante de si. O segundo grupo é composto por pessoas desprovidas completamente da capacidade visual e, para posarem como seres normais, falseiam sua incapacidade e simulam que enxergam tudo perfeitamente. Eles não veem nada, mas insistem em afirmar o contrário, se portando como se realmente enxergassem e isto produz leituras equivocadas da realidade ao redor destas pessoas. Já o terceiro grupo é formado tanto por pessoas dotadas do sentido da visão quanto os desprovidos desta faculdade, o que os une é sua vontade, por assim dizer, de enxergar mais do que realmente existe. Tais pessoas afirmam que veem aquilo que jamais existiu, juram terem enxergado coisas fabulosas, enfim, querem enxergar mais do que a realidade e acabam não vendo nem o que se passa sob seus narizes.
Algumas famílias, percebendo que as crianças não eram acometidas pelas distorções na visão, começaram a emigrar para outras cidades, outras, impossibilitadas de seguirem todos, mandaram apenas seus filhos pequenos para serem criados em terras distantes. Tais artifícios parecem terem sucesso limitado, pois é certo que estas crianças tem preservada sua visão ao se afastarem de sua cidade natal, mas parece que ao retornarem para Körlük, em alguns meses os distúrbios começam a se manifestar e os regressos passam a apresentar os mesmos distúrbios dos demais körlükienses adultos. Com ou sem artifícios, em Körlük, apenas as crianças enxergam.
LM