Sunday, January 29, 2012

Pequenos contos de antes e outras fantasias

I

Luiz Eduardo dava bom dia, boa tarde ou boa noite para todos os passantes. Muitos achavam um mimo, mas, desconcertados, alguns senhores sisudos, apressados e acometidos de grave amnésia, respondiam impacientes ou, pior, simulavam não terem percebido. A gravíssima amnésia os fizera esquecer de quando tinham cinco anos.


 

II

Chamavam-no de Nego, uma forma carinhosa de não fazer esquecer a cor da pele. Quase negro, miúdo, assustadiço como um bichinho, tinha muitos irmãos e irmãs, mas poucas brincadeiras. Quase não se sabiam crianças.

    O inverno de 49 foi ardido e a pouca roupa se evidenciou, mas em compensação foi a estação que trouxe o primeiro caminhão visto por aquelas cercanias. Com estradas para bois puxarem seus carros, a máquina a gasolina pouco avançava com a terra feito lama. Nas subidas então, era só com muita estiagem. Nego e um de seus tantos irmãos se maravilharam com o ronco, com a cor, com os pneus patinando e tramaram para ele não ir embora. Fizerem emboscadas e a cada tope que precisasse de terra seca, saiam do mato e com cabaças cheias de água faziam a lama necessária para reter o caminhão. Quando o motorista desconfiou da burla, tiros na direção dos sabotadores afugentou as águas, mas não a lembrança do inverno de 49.


 

III

O cavalo tinha uma cabeça diferente e Luana, mal completado os três anos, sentia o estranhamento sem saber como explicar.

— Cadê a cabeça do cavalo?

— Este não é um cavalo filhinha, é um centauro e ele tem corpo de cavalo e cabeça de homem.

    A explicação do pai não foi convincente e ela continuava a olhar com estranhamento para a estátua. Depois de um tempo, como que em estado meditativo, proferiu uma sentença carregada de sabedoria em estado bruto.

— Não quero cabeça de homem. Quero a cabeça do cavalo!

Sunday, January 22, 2012

Limbo

Estou morto ou algo muito grave aconteceu comigo. Apostaria na primeira opção, fiquei em dúvida ao sentir o toque de uma das pessoas. Era uma mulher e ao contrário das outras veio só, também lembro da escuridão através da janela. Ela deixou cair uma lágrima em meu rosto, mais do que seu toque, devo ter sentido aquela lágrima escorrendo por minha face até se perder no travesseiro. Assim como os outros, ela mexia sua boca, provável estar falando algo para mim, inútil, ouço o som e não consigo distinguir o que é fala, canto de passarinhos, latidos de cachorro, ranger de dentes, som de passos, apenas percebo o ruído. Ela deveria estar emocionada, compreendi pela lágrima e tentei transmitir a ela que sabia disto, mesmo ignorando qual tipo de emoção a fazia chorar. Era bonita, espero que seja uma emoção boa, não gostaria de ver aquele rosto chorando de raiva contra mim, ou coisa parecida, gostei da visita (só podem ser visitas estas pessoas), mesmo estando morto, podem estar vindo visitar meu túmulo, ou, quem sabe, eu ainda esteja sendo velado, vá saber, não tenho uma noção muito boa de tempo.

    Creio já ser outro dia (quantos terão passado?), e aquela mulher não veio, vieram as pessoas de antes: duas velhas, um homem, outra mulher, uma jovem e os sem rosto, de branco. Mais bocas movendo-se, não parecem estar falando para mim, suas bocas mexem e eles se olham, deve ser assim que uma folhagem na sala percebe as pessoas. Não os imagino emocionados, parecem estar bem, lembro-me deles mais exaltados. Estariam preocupados comigo, ou estariam só brigando entre eles naquele dia de exaltação? Nem sempre se dirigem a mim, aliás, não lembro de terem feito isto, devia estar dormindo, se é que durmo.

    Hoje elaborei outra teoria: não estou morto, tampouco aconteceu algo de tão grave, talvez eu seja apenas um recém nascido prematuro em uma incubadora. Não, todo mundo olha para bebezinhos e sorri, se bebê, devo ser muito feio e também não vejo nenhuma mamãe por perto. Esta teoria não foi boa, mas foi divertido, vou elaborar mais teorias. Sou realmente uma folhagem na sala, estas pessoas não me percebem, a mulher da lágrima chorou porque ela me plantou com alguém que ela amava muito e não está mais aqui. Melhor do que a do bebê, entretanto quando aquela lágrima escorreu pensei nela escorrendo por minha face, não por minhas folhas. Quase consegui. Um animal não devo ser, senão estaria latindo, miando ou coisa parecida, mas explicaria porque escuto o som das bocas que se mexem, sem distinguir tais sons. Também dificilmente um animal teria senso estético e cronológico, pois mesmo não estando certo do passar do tempo, eu o intuo e percebi as diferenças de idade nas pessoas, além de ter distinguido os sexos e eleito a mais bela. Sinto falta dela.

    É ela, parece que se passaram anos, talvez tenham se passado mesmo, ainda mais se estou morto de fato. Está abatida, mais do que as outras pessoas. A cortina está abaixada, mas dá para perceber a escuridão além, então ela só vem à noite, estou ficando bom nisso. Está pegando algo, é um retrato, dela ao lado de um homem, eles parecem ser bem afeiçoados um do outro e estão felizes no retrato. Quem será? Bem que poderia ser eu, neste caso não só não seria, bebê, planta, ou animal, como já teria até um rosto, isto não invalida a possibilidade de não estar mais vivo.

    Não tenho certeza do passar dos dias, vejo quando está claro ou escuro, mas não consigo contar dias, tampouco saber se os rostos e fatos de minhas lembranças pertencem a um mesmo dia, ou a vários, talvez meses e até anos, também não sei se estou sempre acordado, se durmo, se sonho, preciso estabelecer alguns parâmetros, talvez assim consiga identificar mais sinais externos. De qualquer forma parece ter passado muito tempo, ao menos em minha percepção, que ninguém além dos sem rosto de branco aparece por aqui. Pensei muito neste local como sendo um hospital, mas não há tubos saindo de meu corpo, nem equipamentos onde esteja conectado, há apenas o teto, a janela e uma parede, cuja cor ainda não consegui lembrar o nome, também não recebo medicamentos, não há dor, fome, vontade de defecar, de urinar, nada. Cemitério ou hospital, não deveria ser muito popular, nem ter família grande, são sempre os mesmos a me visitarem: as duas velhas, o homem, a outra mulher, a jovem e aquela da lágrima e do retrato, esta vem quando os outros não estão e eles vem sempre juntos, talvez morem longe e só possam vir juntos e a mulher da lágrima deva trabalhar durante o dia e só pode vir à noite, neste caso é provável que more mais perto do que os outros. Estou ficando bom mesmo nisso.

     Imagino terem sido muitas as vindas das pessoas, só não saberia dizer quantas e cada vez mais eles parecem não perceber minha presença, talvez eu nem esteja mais aqui mesmo, eles conversam, conversam, falam baixo, falam mais alto, até alguns gritos, riem e se não estou enganado, riem bastante quando o homem fala e gesticula, ele deve ser um comediante. A mulher da noite é a única a se dirigir para mim e fala como se estivesse conversando comigo, se sou velho pode ser minha filha. Mas por que não vem com os outros? Deve mesmo trabalhar durante o dia e eles talvez não trabalhem, as duas velhas já se aposentaram, a mulher e a jovem são sustentadas pelo comediante que faz shows à noite, perfeito. Então, se são minha família, devo ser velho e ser casado com uma das duas velhas (até que não é tão ruim por aqui) e o comediante é meu filho, se fosse a mulher ela seria mais atenciosa, filha sempre é mais atenciosa com o pai, e uma das velhas, minha esposa, já estamos juntos a tanto tempo que nem lembra mais como ser atenciosa (quem sabe devo ter sido um mau esposo) e a jovem minha neta, jovens não gostam muito de velhos. E a mulher da noite? Se for minha filha brigou com a mãe ou não é filha dela, seu safadinho, andou dando umas escapadas, sempre soube que eu era pegador.

    Não, definitivamente a mulher da noite não é minha filha e isto me obriga a rever toda minha teoria familiar. Ela mostrou-me outros retratos, dela com aquele mesmo homem (eu?), em poses impróprias para pai e filha. Claro, poderia ser o marido dela, mas que interesse eu, no jazigo ou leito de morte, teria em ver minha filha aos agarrões com um marmanjo. Se for minha filha é bem sem noção e ela não parece ser uma pessoa sem noção. E além disso, hoje ela chegou tão perto que quase pensei nela beijando meus lábios, se estou em um caixão, ela teria se debruçado sobre o túmulo e beijado uma possível foto minha, imaginando estar beijando meus lábios, filha não fecha os olhos daquele jeito para beijar pai. Então quem são as outras pessoas? Alguém apagou a luz.


 

LM

Tuesday, January 17, 2012




N.A.: De tanto contar histórias para minha filha dormir, acabei inventando algumas. Nenhuma verti para a escrita, deixei-as na fluidez da oralidade e elas estão sempre mudando um personagem, uma fala, mas como esta ficou sem um final, pois os animais sempre achavam algo para implicar com o pato, resolvi pô-la na ponta dos dedos. Creio ter encontrado um final (provisório) adequado, testarei amanhã à noite, lendo-a ao pé da Lua.

Uma feita, o pato cismou em fazer algo diferente, queria brincar, mas uma brincadeira nova. Tendo brincado com todo tipo de brincadeira que conhecia, calhou de fazer outra coisa: resolver pintar um quadro. Mas seria um quadro de que? Pensou, repensou até quase pôr um ovo e veio a idéia de pintar, justamente um ovo de galinha.

Cheio das vontades de impressionar os outros animais da fazenda, caprichou a não mais poder e pintou um ovo tal qual, ou melhor do que um ovo de verdade, de tal forma que nem a melhor das galinhas botasse um igual. Orgulhoso da sua obra saiu o pato pintor com sua pintura embaixo da asa e logo topou com o cachorro.

— Que é isso compadre pato?

— Ora, não é nada, só um ovo meu. E mostrou o quadro ao amigo.

— Nossa Senhora das Fazendas de Bichos, isso é um ovo seu, então o compadre é uma galinha? E eu sempre o tive por pato.

— Não, compadre cachorro, eu só pinto!

— Não entendo mais nada, então compadre pato, que eu pensava pato e era galinha, na verdade é um pinto.

O pato já começava a ficar nervoso e tentou explicar para o cachorro, mas este saiu numa gritaria desancada, alardeando aos quatro cantos sobre o ovo do pato, ou da galinha, ou (era um pinto?), que nem deu chance ao amigo. Inconformado o pato resolveu voltar para casa e pintar alguma coisa diferente, para desfazer o malfeito. Pintou um pinto, talvez o pinto do ovo da primeira pintura. No pátio da fazenda a bicharada só falava no pato galinha pinto.

Finalmente o pato terminou seu pinto e, igual ao ovo, era um pinto melhor do que qualquer pinto visto ou sonhado na fazenda. Mais orgulhoso ainda, saiu com sua obra prima e logo encontrou a galinha. Ainda bem, pensou, pois ela saberia que ele não poderia ser uma galinha, senão um pato.

— Que é isso comadre galinha? Perguntou a galinha, já tratando o pato como galinha.

— Comadre galinha, eu sou o pato, veja! Eu só pintei um quadro de ovo.

— Ah bom, compadre pato, mas mesmo assim, que é isso? Insistiu a galinha, já em cólicas de tanta curiosidade.

— Isso é só um meu pinto.

A galinha não acreditou no que via, era o melhor dos pintos, então o pato só podia ser mesmo uma galinha e das boas.

— Mas não é mesmo que o compadre pato é mesmo uma galinha das boas? Um pinto desses não é qualquer galinha a ter não.

— Não comadre galinha eu pinto.

A essa altura a galinha já não sabia mais se o pato era uma galinha, um pinto ou um pato e saiu desembestada cacarejando a descoberta. O pobre pato, já sem saber como agir, resolveu pintar o próprio retrato, assim ele só poderia ser um pato, nada mais. Voltou para casa e fez o melhor auto-retrato já pintado. Era muito melhor do que o próprio pato. Saiu estourando de orgulho e logo encontrou o coelho. Este, já sabendo das novidades do pato galinha pinto foi logo perguntado.

— Que traz lá compadre pato, ou comadre galinha, ou pinto?

— Largue mão compadre coelho, sou eu, o compadre pato e trago apenas isto... E antes de conseguir explicar que era uma pintura o coelho foi logo tirando suas conclusões e vendo dois patos, um melhor do que o outro, imaginou se tratar de um espelho.

— Ah, beleza! Um espelho, bem to carecendo dar uma deitada diferente no meu cabelo. E pegou logo do pato o quadro que julgava ser um espelho, mas viu apenas um pato refletido e entrou em pânico.

— Minha Nossa Senhora das Cenouras, virei num pato e dos bons! E saiu dando quac's pela fazenda e clamando ajuda para voltar a ser coelho.

Logo o burro veio ver o motivo de tanta gritaria, encontrou o coelho em polvorosa e o pato à beira de um ataque de nervos.

— Compadre burro, virei num pato, veja, é só pegar este espelho.

O burro pegou o quadro, que julgava ser um espelho e viu o melhor pato já imaginado. Não poderia ter acontecido coisa pior, também pensou ter virado um pato e saiu numa carrera doida, logo a bicharada já não sabia mais quem era pato, quem era, burro, quem era coelho e o pato, desatinado das idéias, não conseguia pensar em mais nada, até ter a idéia de pintar apenas uma tela branca. Assim ninguém poderia pensar nada e acabaria logo com essa confusão. Cobrir de branco a tela foi num já e sem perda de tempo ele estava na rua com sua nova obra.

Os animais já meio fora do prumo, mas ainda lembrando que toda a confusão iniciara-se com o pato, foram ver o que ele trazia.

— Vejam, ninguém virou pato, só eu continuo sendo pato. E mostrou a tela branca para os bichos. O porco se aproximou, cheirou, olhou e saiu guinchando feito louco.

— Minha Nossa Senhora dos Torresmos, eu sumi!

Os outros animais olharam para a tela e acharam que também tinham sumido. A correria agora era geral e o pobre pato pintor quebrava o cucuruto pensando em alguma forma de acalmar aquele bando de doidos. Desorientado e com medo de causar mais confusão o pato resolveu pintar sua última tela. Nela colocaria não só figura, mas palavras explicando que não era uma coisa, mas apenas uma pintura. Caprichou gigante na nova pintura, era um perfeito cachimbo suspenso no ar, enorme e embaixo deste perfeito cachimbo podia-se ler, em letras caprichadas, a frase: Isto não é um cachimbo.

A esta altura dos acontecimentos, o pato já não tinha mais entusiasmo, orgulho ou pretensão com sua obra, queria apenas mostrar aos outros animais para eles verem que aquilo era apenas um quadro, nada mais. Saiu de casa e encontrou o cavalo.

— Olá compadre pato, o que traz aí?

— Não é nada compadre cavalo, só uma pintura. E mostrou-a ao cavalo. Este olhou, olhou, reolhou e sentenciou.

— Compadre pato, você precisa se tratar, qualquer um sabe que isto não é um cachimbo, mas uma figura de cachimbo.

Em pouco tempo os outros animais chegaram e foram logo tomando parte da discussão.

— Largue mão compadre cavalo, isto é um cachimbo, mas o pato ainda precisa se tratar, pois qualquer um sabe o que é um cachimbo e ele nega que isto seja um cachimbo. Argumentou o porco.

— Deixem de sandices, o pato está mesmo muito mal e precisa se tratar, mas convenhamos, ou ele não sabe pintar, ou não sabe mais o significado das palavras, pois como ele nega algo que acaba de pintar? Questionou a vaca.

A discussão não se encerrou, os bichos não se entenderam e o pato, antes que alguém resolvesse interná-lo em um manicômio, saiu de fininho. Daquele dia em diante jurou que não pintaria mais figuras e se fosse pintar alguma coisa, apenas deixaria a tinta escorrer pela tela, procurando sua forma.

LM

Sunday, January 08, 2012

Ventrina

A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente."

Einstein, Albert


 

    A incomum capacidade premonitória dos habitantes de Ventrina tornou esta cidade uma referência nos estudos do futuro. Todo aprendiz de vidente, cartomante, quiromante e demais gurus do porvir afluíam para Ventrina afim de tentarem apreender este dom. Inútil, tal característica é privilégio apenas dos nascidos lá. Os bebês ventrinenses, antes mesmo de aprenderem a falar as primeiras palavras já conseguem saber quando ficarão com fome, quando sua mamãe trará a gorda teta cheia de leite, a que horas eles chorão para terem suas fraldas trocadas e estas coisas do mundo dos bebês.

    Assim Ventrina nunca participou de uma guerra, pois seus inimigos jamais puderam usar o elemento surpresa para empreenderem um ataque à cidade, entretanto quando as forças rivais, especialmente de Zantrana, reuniam um exército colossal e os ventrinenses previam a própria derrota, estes providenciavam a rendição antecipada e enviavam um diplomata para negociar um armistício e os termos de um acordo de paz. Não havendo guerras, passaram a usar o tempo livre para as diversões. O governador geral de Ventrina resolveu, então, criar uma loteria. Foi um fracasso, pois todos acertavam os números e os prêmios eram muito menores do que o valor da aposta. Ainda buscando formas de entretenimento, os sábios elaboraram um complexo sistema de números e letras que deveriam ser decifrados. Quem o fizesse receberia mil gnaes de ouro. Como o resultado destes códigos não era algo pertencente ao futuro, os ventrinenses não poderiam se valer de seus poderes e haveria, enfim, uma disputa. Mas os sábios, como os demais habitantes, eram homens do futuro, e rapidamente esqueceram, eles próprios, como decifrar os códigos da loteria e, ainda, as pessoas previram que não haveria ganhador, portanto não fizeram suas apostas. Acabou ali a Loteria Oficial de Ventrina.

    Não havia escassez de ouro ou alimentos em Ventrina, eles sempre sabiam qual seria o melhor alimento a ser semeado, quando choveria, ou quando teriam estiagem prolongada, também sabiam quando encontrariam um novo veio de ouro, ferro, prata e assim sabiam quanto dos recursos da cidade poderiam utilizar. Os nobres, em seus jantares, divertiam-se tentando lembrar do passado, já os pobres, divertiam-se tentando esquecer o próprio futuro.

Certo dia, um eminente filósofo intuiu que se ele agisse de modo diverso do que havia sido previsto, ele poderia criar um futuro alternativo, fora do alcance das previsões. Resolveu visitar um amigo, fez os preparativos e tão logo estava na rua, mudou abruptamente trajeto, indo para o sul quando deveria ir ao norte e rumou para a casa de outro amigo. Chegando lá o segundo amigo não se surpreendeu com a visita. Disse ter previsto a súbita mudança de planos. Ele frustrou-se com o fracasso e escreveu um extenso tratado filosófico vaticinado que os ventrinenses estavam condenados a ficarem presos ao futuro. Ao terminar a obra ele já sabia o tamanho sucesso que faria e a grande repercussão que causaria e assim foi. Os efeitos da obra começaram a ser percebidos especialmente entre os mais jovens. Como eles sabiam o que deveriam fazer para continuarem com suas vidas como estavam, param de fazer tudo, esperançosos de que algo inesperado lhes acontecesse. Logos os pobres começaram a tomar atitudos semelhantes, pois como sabiam que continuariam sendo pobres e teriam de trabalhar de sol-a-sol para sustentar os ricos de Ventrina, pararam de trabalhar e ficaram em suas casas deitados em suas camas.

Tal inanição foi tida como uma rebeldia contra a ordem institucional da cidade e o governador geral mandou por a ferros todos os insurgentes. Os jovens sentiram o gosto da aventura, seriam presos, estariam lutando por uma causa. Os pobres, sabendo que morreriam trabalhando, optaram por morrer na cadeia. Ventrina começou a ruir. O governador geral, aconselhado pelos sábios, baixou um decreto proibindo qualquer cidadão comum a praticar a arte de previsão do futuro, restringindo este ofício apenas aos nobres, sábios e dirigentes da cidade. A inaplicabilidade da lei fez o governador geral e os sábios serem ridicularizados até pelas crianças e como todos previram que a cidade estava em franca decadência e que se tornaria um povoados de poucas almas desorientadas, deu-se início a grande diáspora ventrinense. A cidade acabou e seus habitantes, espalhados pelo mundo, foram gradativamente perdendo suas habilidades premonitórias, agora eles buscam um outro futuro, com alguma esperança, ao menos.


 

LM

    

    


 


 

Thursday, January 05, 2012

Infâmia

Meu nome é Leopoldo Blinizesky. Sou descendente direto da mais nobre linhagem de gentis homens poloneses, sou quase um príncipe polaco. Meu tio-avô teve participação destacada na batalha de Braniewo, ele liderou o pelotão de artilharia ligeira que encurralou o incivel general Ollste entre o mar e a ravina de Syan. Também meu bisavô, o duque de Parczew ajudou a manter os invasores longe de nossa amada Polônia, com apenas dois mil valorosos soldados polacos, expulsou 30 regimentos do exército prussiano na Batalha de Kostrzyn. Sem falar do Príncipe Blinizesky, cujo olhar azul e penetrante enlouquecia as damas da alta aristocracia européia a ponto de fazerem seus maridos assinarem todos os tratados favoráveis à Polônia, durante o regime de Astrunws. Não relato isto por jactância, senão para por em entendimento os motivos pelos quais fui escolhido pela Ordem dos Szachtas para reconduzir nossa pátria ao seu devido lugar como potência do mundo ocidental e no comando da Europa.

Apesar da nobreza de nossa causa, do valor de nossos patrícios e da certeza do sucesso, temos ciência de não ser esta uma tarefa exatamente fácil. Muitos são nossos inimigos, que nos temem e nos invejam, portanto devemos ser pacientes e perseverantes. Para não levantar suspeitas acerca de minha origem e de nossa causa, vivo fora da Europa em uma condição aparentemente degradante, como Kuranosuké, convivo com rameiras e com poetas, e com gente ainda pior. Não foram poucas as vezes em que fui encontrado esparramado às portas de lupanares, com a cabeça tomada com o próprio vômito. E os julgamentos sentenciosos proferidos contra minha reputação serão motivos de públicos pedidos de desculpas por parte de meus detratores: por ora perdôo–os.

Nada mais posso revelar, apenas que a vitória final está próxima e o mundo conhecerá uma nova era de paz, fraternidade e prosperidade, assim que nos assentarmos em nosso devido lugar. Saibam ainda que é com imenso pesar que me presto a assumir esta identidade aviltante, mas em breve juntarei-me aos demais capitães da causa Szachta, antes, devo zelar de meu disfarce.


 

LM


 

Tuesday, January 03, 2012

A outra viagem, ou a chegada

Jurou ser ter recebido o testamento das mãos de Kafka. Jurava por qualquer coisa, jurar pela alma de Kafka não seria nada de mais, desta vez jurava pela própria alma, prestes a abandonar os escombros de uma vida cheia de incertezas, inconclusões, inconformismos e mais algumas dezenas de ins. Era pouco menos de meia página, manuscrita com letrinhas trêmulas, em alemão. Ignorante, não pude ler o conteúdo do documento, precisaria de alguma ajuda germânica para decifrá-lo. Se fosse realmente de Kafka poderia valer um bom dinheiro, afinal, mesmo perjuro, o velho andou pela Áustria na década de 20, chegou até a ser preso com um manuscrito roubado da biblioteca do Monastério da Ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho. Para escapar da condenação, jurou ter se convertido ao cristianismo e ingressou na ordem, até conseguir fugir de Klosterneuburg alguns meses depois. Não seria improvável imaginá-lo disfarçado de zelador em algum sanatório encontrando Kafka em seu leito de morte. Assim, resolvi aceitar aquele pedaço de papel como pagamento da dívida. Era perder tudo ou ganhar muito.

Voltei para Joinville sem ter traduzido o manuscrito, não seria difícil encontrar algum alemão disposto a fazer o serviço a troco de duas cervejas. De fato, jantando no Jerk, conheci Geraldo, nome abrasileirado de Gerhard Kremer, professor de alemão e francês. Perfeito. Ele nem precisou de muito tempo para fazer a tradução, ali mesmo, na mesa do bar leu para mim. Não tive certeza se seria mesmo de Kafka, mas definitivamente não era um testamento, era um pequeno conto e se fosse mesmo um original inédito do escritor checo, poderia valer mais do que um testamento.

Viagem


 

Talvez devesse partir, sem demora nem medo de olhar para o abismo, apenas partir. Fiz. Não sem estremecer-me, demoro a entrar nas ruas sem ter certeza de estar perdido, por isso precisava saber se realmente estava perdido, ou apenas ensaiava os paços trôpegos. Lembrei-me ter esquecido as bagagens, Não as tinha. Lembrei-me de quê? Esqueci-me na casa? Agora sabia-me perdido. Apressei o passo, corri, perdi pedaços de mim tentando chegar, não sei aonde. Via uma cidade, uma vila, rua? Quanto mais corria mais seus muros riam do meu suor encharcando o colete. Quando finalmente encontrei um homem, perguntei como fazia para chegar à cidade.

— Deves tomar o caminho da esquerda. Entretanto, será mais fácil ir pela direita.

— E se ficar aqui?

— Estarás perdido e darás informações a viajantes perdidos.


 

FK

Era isto, sempre estive a procura de algo e nunca soube o que, sempre fugi de algo, mas fugia de mim. Guardei o pedaço de papel pedi dois steinhaegers e mais duas cervejas e continuei a beber com Geraldo. Não tinha mais pressa alguma, sabia que para qualquer lugar que fosse estaria perdido, ficaria ali, dando informações a viajantes perdidos.


 

LM