Wednesday, February 29, 2012

Cachorro

Toc, toc, toc.

— Dona Vera, o dona Vera! É o Bruno do 10!

— Que foi? Isso lá são horas?

— É que tem um cachorro no meu quarto.

— Um cachorro?

— É.

— Isso não é bom, não é bom. Não aceitamos animais, muito menos um cachorro e dentro do quarto, isso não é bom.

— Ele tá lá.

— Vamos dar uma olhada. Isso não é bom.

— É um cachorro mesmo. Quando o viu pela primeira vez?

— Dona Vera, se liga, hoje eu saí para estudar e não tinha cachorro nenhum e ai, quando voltei, ele tava lá, por isso fui chamá-la.

— Ele te atacou, te mordeu, te arranhou?

— Não, só ficou me olhando.

— Vou chamar meu irmão, o Vilson, ele leva jeito com animais.

Toc, toc, toc.

— Abre logo Vilson, sou eu, a Vera!

— Que bosta, isso lá são horas de aparecer gritando na porta de gente?

— Tem um cachorro no prédio, no quarto desse infeliz.

— Ele latiu?

— Não, só ficou me olhando.

— Vamos ver isso, vou pegar umas coisinhas pra lidar com cachorros.

— Veja, ele ainda tá lá, bem onde o encontrei.

— Filha da puta, não é que é mesmo uma porra dum cachorro. Tenho que falar com o Dr. Uribe.

— Doutor? É o Vilson... tem um cachorro aqui... isso, um perro... tá bom... tá bom... sei... não, ele não latiu... tá, a gente espera... até.

— O doutor está vindo.

— Carajo, és un perro mismo y mui hermoso, sin embargo és un perro. Llamen aos bomberos!

Uóóóuuóó.

— Onde está o animal?

— Ali, por ali, naquele quarto.

— Quem mora no quarto?

— Eu.

— Hum! Vamos dar uma olhada nisso de perto mocinho. Meu Deus, pela Virgem Santa, é mesmo a porra de um cachorro! Isto está fora de nossa alçada, podemos, no máximo, dar suporte operacional, mas vamos ter de chamar a polícia. E quanto a você, não saia daqui.

Uóóóuuóó.

— Onde está o suspeito?

— Ali, perto da porta. Lá dentro está o cachorro.

— MÃOS NA PAREDE! ABRA AS PERNAS!

— O que foi que eu fiz?

— CALA A BOCA E PÕE AS MÃOS NA PAREDE!

— O cachorro, ele tá lá dentro...

— Fica quietinho e só fale quando te perguntar alguma coisa.

— AAAI, meu braço! Tá quebrando! Caralho!

— ATENÇÃO! O cachorro tá se mexendo. Parece... é isso mesmo! Ele vai cagar! AFASTEM-SE!

— E eu? Meu braço tá quebrado.

— Vilson, pega o guri e traga pra cá, ele nunca incomodou antes, sempre tão quieto, deve ser algum mal entendido.

— Mas não é o braço que tá quebrado, e não a perna!

— Capitão, o agente canídeo defecou.

— Rapaz, vá lá dentro e limpe aquela merda!

— Meu braço... tem um cachorro lá dentro...

— Não tente desviar a atenção com essa história de cachorro, você é o único responsável por essa confusão toda. Temos aqui dezenas de bons profissionais prontos a arriscar suas vidas para livrar a cara de bundões como você. Agora deixa de frescura, vá até lá e limpe aquela merda!

— Ele fez alguma coisa quando você o encontrou?

— Não, capitão, só ficou me olhando.

— Isso não tá nada bom, tem mesmo um cachorro lá dentro. Precisamos chamar a Força Nacional de Segurança Pública.


 

LM

Sunday, February 26, 2012

Ao rei

Fui chamado em presença do rei Hamurabi. Devo apresentar-me a Vossa Majestade ao terceiro pôr do sol do recebimento deste comunicado. Estremeço-me, meu espírito aflige-se, três dias ainda, não conseguirei alimentar-me nem dormir, preciso controlar-me, não posso aparecer diante de tão elevada persona como se um zumbi fosse. Glória apavorante. Dos meus vizinhos, pelo menos metade deles arrancaria dois dedos dos pés para poderem ser recebidos pelo rei do mundo. O que poderá querer Vossa Majestade deste humilde servo? Terror! Teriam descoberto ser eu o autor daquelas malditas tábuas apócrifas, frutos dos desvarios juvenis? De nada adiantará prostrar-me ao chão e, em lágrimas, revelar o quanto renego aqueles dias e tudo que fiz nos momentos de intempestividade, o quanto amaldiçôo minha mão por ter escrito tamanhas insanidades. Não pode ser, já se passaram tantos anos, nem os mais proeminentes sábios e magos conseguiriam descobrir o autor dos escritos. Talvez o rei queira apenas recompensar-me por todos os anos de dedicação e trabalhos bem feitos em nome de Vossa Majestade Real e me conceda alguma graça, uma satrapia, afinal tenho me dedicado em enaltecer o nome do rei todo poderoso todos os dias de minha vida. Não devo preocupar-me, mas os olhos e ouvidos do rei estão por toda parte, estou perdido. Esqueça, tolo, nada deverá de mal acontecer-me, quem não deve não teme, a não ser que alguns dos tantos parasitas invejosos que orbitam o palácio tenham orquestrado calúnias para minha perdição perante nosso soberano. Serei açoitado mil vezes antes de ter minha cabeça separada do corpo. Urge fugir, irei para o Egito. Isto não é atitude de um homem corajoso, ficarei e enfrentarei meus detratores, até a morte, se preciso for. Não tombarei sem antes lutar o bom combate, sem mostrar todo o brio e valor dos da minha linhagem e, perecendo, acorrerão poetas cantando loas em minha lápide e as donzelas chorarão por um marido tão valoroso quanto eu. Quanto de suprimento e ouro consigo arranjar antes do amanhecer? Pegarei um camelo dos mais robustos, talhado para longas jornadas, subornarei os guardas para que não delatem minha partida e empregarei fuga através do deserto em direção ao Egito. Clamarei hospitalidade nas casas nobres pelo caminho para os pernoites e antes de a lua completar um ciclo já estarei nas terras banhadas pelo grande Nilo. Apresentar-me-ei com outro nome e oferecerei meus préstimos para a glória do meu novo rei. Creditarei meu exílio à morte prematura de minha amada esposa e, ficar em minha casa remeteria à sua amarga ausência. Como ficarão, de fato, minha esposa e meus filhos? Se Hamurabi descobrir minha fuga os porá a ferros e, se não os enforcar, os fará de escravos para serem vendidos na feira. Não poderei viver com esta culpa, eles não podem perderem-se por minha causa. O que o rei quer comigo? Não poderei suportar o lento caminhar do tempo, tenho que fazer algo. E se for apenas para apresentar o balanço anual das colheitas de damasco? Esta cicuta deve resolver.

LM

Tuesday, February 21, 2012

Vive la médiocrité: Auto ajuda para repensar o sucesso

Em minha última viagem à Marabá, tive o prazer de entabular das mais ricas discussões com meu muito amigo e compadre G. Estando eu em férias e aproveitando o conteúdo tautológico de nossas análises, ele me convidou para fazer uma palestra na universidade local acerca das existências ímpares de três dos exemplos mais bem acabados da inquietante condição humana: Pierre Menard, Brás Cubas e Memnon, o sábio. Não foi espantoso ter encontrado acadêmicos desconhecedores da história destes três ícones, se não, ter encontrado quem, antes de ouvir meus argumentos, objetar a existência de um paralelismo atávico entre eles. Trago aqui um resumo das palavras proferidas durante a conferência.


 

Discussão sobre o psicologismo intrínseco em Pierre Menard, Brás Cubas e Memnon, o sábio e a mediocridade


 

O que buscamos ao longo de nossas vidas? Um existencialista empedernido poderia objetar qualquer outra afirmativa que não fosse viver, já um minimalista acrescentaria o prefixo sobre. Um estóico apenas se diria ocupado em suportar o fardo e não teria nada a acrescentar, enquanto um hedonista estaria ocupado em excessos. A lista de comparações poderia estender-se enfadonhamente, fazendo analogias entre crentes e laicos, hegelianos e nietzschianos e assim por diante. Mas a resposta é: sucesso.

Antes de ser mal interpretado, entenda-se sucesso como a melhor realização daquilo que mais próximo está do caráter de cada indivíduo. Um lenhador sonha em ser o melhor lenhador que se tem notícia; um médico idem; assim como uma dona de casa ou um taxista. Pierre Menard não queria ser apenas o respeitável escritor que fora, queria ir adiante, queria, se não ser, ao menos escrever o que Cervantes escreveu. Notem, ele já havia alcançado uma condição proeminente, mesmo assim queria ir além, não bastava fazer a melhor exegese do Quixote, urgia escrever, anacronicamente, o Quixote, como se Cervantes não o tivesse feito.

O bon vivant Brás Cubas, tendo de despender o mínimo esforço para viver, perdeu-se com a idéia fixa do seu emplastro medicinal que curaria a eterna melancolia dos homens. Para qualquer vivente esta seria uma tarefa hercúlea, para quem de nada necessitava na, uma missão messiânica.

Quanto ao sábio Memnon, outro que de nada nesta vida lhe faltava. Tinha dinheiro, amigos fiéis, uma posição social reconhecida, entretanto queria mais, queria ser perfeitamente sábio e não entreviu maiores obstáculos para alcançar seu intento. A história nos mostra quão enganado estava nosso sábio.

Como vimos, os três exemplos não eram de homens quaisquer, eles tinham posições de destaque nas suas sociedades, tinham fortuna, eram inteligentes e bem relacionados, mas lhes faltava algo a mais do que a fortuna, lhes faltava o sucesso, serem reconhecidos como os mais proeminentes entre seus pares, almejavam mudar a história e conseguiram, no máximo, entrarem para história como exemplos picarescos, perderam-se os três, cada qual ao seu modo e jamais conseguiram atingir plenamente seus intentos. Agora volto à pergunta inicial de nossa discussão para reafirmar minha resposta. Poderia elencar uma vasta relação de outros exemplos similares, por ora bastam os já citados para afirmar que a busca pelo sucesso nada mais é do que a precipitação do fracasso. Vivamos na mediocridade e não nos perderemos. Não tratem o termo medíocre de maneira pejorativa, pois nada mais é do que permanecer na média, sem faltas, tampouco excessos. Vivendo na mediocridade não teremos os arroubos das paixões, nem os disparates furiosos da busca pelo sucesso. Também não cairemos do alto e se cairmos, não estaremos tão longe do chão. Viva a mediocridade.


 

P.S. Estamos trabalhando para que a transcrição completa da conferência seja publicada em breve, sob a forma de livro. Enviei-a à Sorbonne para chancela daquela instituição e estamos direcionando esforços para que o lançamento da obra ocorra na sede do Parlamento Europeu, com cobertura dos mais importantes veículos de comunicação. Será um sucesso.


 

LM


 

Sunday, February 19, 2012

Três atos da morte

I - Heráldica


 

De Portugal, levas de figuras inconvenientes foram convidadas a se aventurarem até as Índias. Em 1806, embarcaram aqueles lusíadas menos valorosos. Entre os expatriados, a Sebastião Açuz Mendes, coube o privilégio de ser o elo a unir os Mendes da Rua Torres, em Joinville, à Europa.

    Entre o primeiro e o mais novo Mendes, cinco gerações de degenerados, escravos, prostitutas, ladrões, viciados, poetas, falsários, pagãos, suicidas e o que é mais impressionante: nenhum assassino. Sebastião não derramou sangue alheio e sua descendência, mesmo na ignorância deste detalhe, também não o fez.

    Em 2006, Sebastião da Silva Mendes, acusado de um assassinato que não cometeu, é preso. Morre durante uma rebelião.


 


 


 

II - O truco


 

Jarbas embaralhou bem as cartas e entregou-as ao Vargas.

    — Corta! — ordenou.

    — Não carece de me dar ordens! — disse no tom ameaçador dos truqueiros, tentando aumentar a animação.

    Rei de paus, pica fumo e desafios fingidos. As imprecações eram proferidas de modo teatral. Mais pareciam senhoras no bingo da igreja se fazendo de valentes.

    — Mata agora — desafiou Miguel deixando o copas cair suavemente na mesa.

    Por que será que a gente não acostuma com a morte? Falou de maneira apática Jarbas, ao mesmo tempo em que jogava o gato.

    — Que horas ele morreu? — Perguntou Antonelo, parecendo estar fora de sintonia.— Eu não entendo. — Continuou.

    — Que horas morreu o Pedro Caixa d'Água ou o copas do Miguel? — Troçou Vargas, distraindo o companheiro para poder pegar o baralho antes da sua vez.

    — Há muita coisa que a gente não entende.— Jarbas deu um tapa não mão do Vargas para recuperar as cartas roubadas. — Como um baralho voltar para a mão de um ladrão, por exemplo, ou o que tem quando acaba a negrona.

    — Vamos tomar uma pinguinha? — Disse Antonelo, recuperando a sintonia.


 


 

III - Através do vinho


 

Ouço Gardel vibrar através de uma copa de tinto e creio uma Argentina particular, com Martin Fierro, Negro Uribe, Baltazar e um Borges íntimo. Escrevo tudo em papeizinhos — para não esquecer nada —, meto-os nos bolsos e perco-os pelo caminho. Enquanto busco as respostas que neles amarrei, giro mais uma vez o tambor. Não acredito na sorte e me amaldiçôo por estar escrevendo em português, por não saber mais dançar tango e por escutar o clique inofensivo do cão. Giro mais uma vez.


 

LM

Sunday, February 12, 2012

Sanguínea

N.A.: Este conto foi publicado há alguns anos em uma revista, livro de coletâneas, ou algo parecido, cujo título não me ocorre, mas assim que souber, informarei. Desculpem a falta de originalidade por não estar postando nada novo, mas tenho encontrado cada vez menos tempo para novas criações, desta forma lanço mão do expediente de auto-plágio.

Eles não acreditavam nas mentiras. Todos mentem. Não haveria uma vida pela frente. Não havia um nome a zelar. Não havia o desejo de serem vítimas. Mas ele buscou a morte, tencionou a vida e antes de dar o último tapa desprezou o arrependimento. Ordenou pela última vez: "enterrem minha carcaça enquanto ainda respiro, o cheiro da terra há de me ser agradável e à escuridão, já me acostumei. Sinto falta da minha primeira escuridão." O último, foi o mais forte dos tapas, depois, o mais animalesco beijo. Naquele dia não houve penetração. Naquele dia ela não obedeceria.

Antes de nascer, Gallimard já trazia uma cicatriz no púbis. Um vergão grosseiro, vermelho, pulsando irregularmente, abrigando culpas subcutâneas. A marca de uma cesariana mal feita, apressada, quando ele não era mais do que um girino. A marca a ser carregada pela continuidade da vida para lembrar de onde veio M. De um pseudo-útero ao útero da mãe.

A presença de Gallimard já oprimia M e quando foram expulsos da casa primeva, ela se recusou a sair. 18 minutos após o nascimento do primeiro, o fórceps a convenceu. Não queria sair, sabia que lá fora teria de olhar para a cicatriz. Queria poder evitar.

A bizarra marca se preservou, mesmo nas suas mais sutis reentrâncias, até o corpo de Gallimard se decompor. Ele viveu por 34 anos, 7 meses e 3 dias. A cicatriz, um pouco mais. M contaria a história.

Não eram gêmeos, eram pai e filha, ainda que fossem irmãos. Natureza reconfigurada. Diferente de algum tubarão devorador de concorrentes já no ventre materno, Gallimard concebeu outra vida. Gerou sua rival da sua carne. Não a devoraria, a subjugaria. Teria um sparring para treinar seu instinto de dominação. Uma fêmea, filha e irmã. Várias faces incestuosas.

Existiu uma família com pai, mãe e irmãos, mas a cicatriz estava presente, pulsando sob o emaranhado de pêlos, revivendo um pacto anterior à luz.

M nunca tocava no assunto. Evitava falar sobre aquilo como se agindo assim, não materializasse o sonho. Mas ela sentia os odores da cicatriz e isso a remetia à suas obrigações de boa filha, boa irmã e dócil fêmea. A família de aparências era ideal para justificar a constante união. Ela cheirava, mordia, depositava seus líquidos, mas não olhava para a cicatriz, era a última fronteira do pudor familiar e não suportaria ultrapassa-la.

Não seria ela quem executaria a última ordem. Não lhe agradava fazer algo contra o irmão 18 minutos mais velho, o pai que a pariu e o homem que melhor sabia como puxar seus cabelos. Também não seria ela quem impediria. Apenas olhou Gallimard sangrar até a morte.

Hoje ela ainda sente o cheiro e o gosto do suor da cicatriz e tem nojo, tem tesão, raiva, saudades. Depois reza para algum deus sádico que a violentou quando ainda era um feto. Um deus que não a deixa esquecer das lembranças de de dentro do útero e também não a deixa parar de sangrar. Os sangues de cada mês acompanharão M tanto quanto o sinal acompanhou Gallimard. Não lhe foi dado o direito de secar e conhecer a redenção. Sangrará até a morte.

Thursday, February 09, 2012

Quadrilátero, ou o terceiro caso

Antes de deixá-los, é preciso pôr a termo um e outro detalhe de minha vida pregressa, para adentrar na posteridade de alma lavada. Quis dar a este documento o título de testamento, posto estar deixando um legado, todavia não há bens em quantidade suficiente para regalar todos meus afetos e uns tantos de desafetos, aos quais gostaria de deixar algo para não esquecerem-se tão rapidamente de mim. Na falta de bens deixarei umas tantas revelações, se calharem a alguma coisa, dar-me-ei por satisfeito, em negativa, será o desvencilhamento das coisas corpóreas, espero.

Estando já me aguardando mamãe e papai, a quem finalmente conhecerei, quero destinar minhas primeiras últimas palavras à minha fiel e dedicada esposa, tão solicita durante 35 anos. Em reconhecimento aos seus méritos, serei direto: não resisti a certos encantos de outra mulher e sucumbi ao desejo da carne, desta forma, tomei para mim uma amante, desde os primeiros anos de nosso casamento até quase os tempos de hoje. Não te inquietes, cara esposa, pois tomei todas as precauções para que tu ou qualquer de nossos amigos e parentes não viesse a saber deste meu pequeno pecado. Revelo isto agora, não sem certo peso na consciência, mas preciso fazê-lo para provar-te que não era tão estúpido quanto me julgavas, nem tão insensível, também não sou tão palerma quanto me acusaste inúmeras vezes, apenas sempre foi de minha natureza, buscar o embate de idéias ao invés da luta, assim, para evitar o confronto com alguém que tanto prezava, arranjei outra, que, sem maiores responsabilidades, me ouvia, nos pequenos espaços de tempo, sem acusar-me ou censurar-me. Estando ela, desde o primeiro instante, ciente que jamais te deixaria, nunca exigiu nada mais do que algumas horas por semana. E o restante do tempo poderia dedicar-me a ti e as crianças que o bom Deus não permitiu nascerem. Entendo se não me perdoares, entretanto saiba que meu coração somente a ti pertenceu e, se me for dado tal privilégio no além, continuará pertencendo. Mais do que a tentação da carne, cultivei este caso para ter alguém a quem falar minhas idéias, minhas ideologias, pois tu foste sempre tão pragmática com as coisas da nossa casa e da nossa vida, mas tão alheia às coisas da política, da filosofia e das ciências e não queria importuná-la com tais assuntos, pertencentes ao mundo além do lar. Como já disse um sábio: "Haverá sempre um homem que, embora sua casa desmorone, estará preocupado com o universo. Haverá sempre uma mulher que, embora o universo desmorone, estará preocupada com sua casa."

Para aquela que foi a segunda em minha vida também gostaria de deixar umas palavras, desta vez a despedida definitiva, tantas vezes antes ensaiada. Você sempre se mostrou atenta à minhas palavras e até se esforçava por parecer interessada e agradeço por isto, mas jamais você contestava, complementava, argüia. Repito, sou muito grato por ter me ouvido, especialmente não estando assim tão interessada, mas foi por este pequeno detalhe que acabei arranjando uma terceira mulher em minha vida. Você sempre deixou bem claro que jamais sentiria ciúmes de minha esposa, mas viraria uma onça se soubesse que eu havia arranjado a outra da outra. Sabia de suas reais intenções animalescas e sua disposição para deixar suas emoções aflorarem e transformar-se, efetivamente, em uma fera, por tal motivo, preservei com maior diligência a discrição quanto este terceiro caso. Ela me ouvia, assim como você, mas tinha suas idéias, às vezes até conflitantes com as minhas e entabulávamos extensas discussões acerca dos mais variados assuntos, discussões que poderiam durar meses. Como não dispunha de tanto tempo assim para ficarmos juntos, ela assentiu em nos vermos uma ou duas vezes por mês, entretanto mantínhamos uma profícua troca de correspondências. Ela me ouvia e me respondia.

À terceira não precisarei deixar muitas palavras, apenas um adeus, pois já havíamos discutido até a forma de minha despedida e a morte, muitas vezes, foi tema de nossas discussões. Aliás, ela foi contra este modelo adotado, preferiria que as coisas tivessem ficado como estavam, ocultas, cada qual em sua alcova, preservando-se as aparências para evitar celeumas, nossa correspondência só seria revelada (talvez publicada) quando os envolvidos diretamente no quadrilátero estivéssemos mortos. Achei muito trágico e, diante do fim próximo, achei melhor fazer agora tais revelações, nunca tive coragem de fazê-las antes.


 

LM

Wednesday, February 01, 2012

Telesacanagem

Minha cabeça doía como se o cérebro tivesse sido chacoalhado em um liquidificador, lá fora uma guerra era travada, uma guerra por valores que eu desconhecia e por motivos ainda mais ignorados, liderada por homens desprezíveis e sustentada na televisão por campanhas jornalísticas. Já havia dado minha contribuição para aquela merda toda, já havia matado muitos inimigos e outro tanto de aliados, já havia deixado meu sangue e partes de meu corpo no campo de batalha, agora eu só queria tomar umas cervejas, dormir um pouco e depois dar uma trepada; comer uma porção de bolinhos da chuva, ovo frito e café preto. Não era pedir demais, não era nada demais para um veterano, que cagou com amigos, família, com a vida, defendendo os valores dos mesquinhos donos do poder, dos plutocratas e dos fantoches colocados em altos cargos, era só isso. Como meus desejos não se realizariam, não tinha jeito, precisava sair de dentro da espelunca alugada por 50 paus por semana e tentar arranjar alguma coisa pra fazer. Já tava sem grana, sem bebida, sem merda nenhuma nas tripas e com o aluguel atrasado, dona Clotilde não me deixaria mais uma semana sem mostrar algum dinheiro, ou já ter arranjado um trabalho. Fui à agencia de empregos: motorista, não tinha renovado minha carteira; ajudante de carga e descarga, muito velho pra esse tipo de serviço; pedreiro, nunca fiz um balde de massa; frentista, talvez sirva; repositor de supermercado, pode ser; repórter, joguei fora meu registro profissional; revisor de texto, legal; auxiliar de produção, desde que não precise fazer força; açougueiro, não, seria capaz de decepar meus polegares naquelas serras; vendedor, não tenho mais paciência; professor universitário, se não achar nada melhor vou até lá; telemarketing, que porra é essa? Vou encarar.

    Me colocaram em um curralzinho do tamanho de um ovo, não era possível descolar os cotovelos do corpo e se virasse o rosto para o lado batia com o nariz na divisória, na minha frente um teclado, uma tela de 10 polegadas e socado na cabeça os fones de ouvido e o microfone. Antes de ser entalado no curralzinho tivemos um extenso treinamento de um dia. Eu e mais uns vinte otários e otárias aprendemos a dizer "É um prazer receber a sua ligação, meu nome é Charles Trezinni. Em que posso ser útil?" ou, "Lamentamos o ocorrido, tenha certeza que foi uma falha pontual, vamos estar resolvendo seu problema em até 72 horas, caso não seja plenamente atendido, entre em contato novamente e vamos estar encaminhando o senhor para o departamento técnico." E outras baboseiras do gênero. No final das contas até que era legal trabalhar lá, não precisava ficar olhando para as fuças de ninguém, as ligações eram da puta-que-o-pariu e não tinha risco de algum daqueles milhares de clientes insatisfeitos entrarem porta à dentro sentando o braço em quem estivesse pela frente, e dava para ficar fazendo palavras cruzadas enquanto os trouxas do outro lado da linha pensavam que estavam sendo atendidos. Só não dava para não atender as ligações, tentei mocosar e não atender ninguém, fiquei fazendo de conta que falava com alguém, mas logo veio um sujeito dando cutucões nas minhas costas.

— Trezinni, se quiser ficar brincando posso te dar as minhas bolas como brinquedinhos. Atenda logo os malditos telefonemas.

Descobri que eles um controle de ligações e sabiam exatamente quando você estava trabalhando ou não e era bom cuidar com o que falasse, pois também monitoravam nossas conversas. Como devo ter um imã que atraí a escória, com o tempo começou a aparecer na minha mesa uma ligação mais absurda do que a outra. Era uma velha dizendo que seus filhos a abandonaram e há mais de cinco anos que não tem notícias deles; ou um caminhoneiro com o caminhão quebrado e sem nada para fazer enquanto o guincho não chegasse resolveu trocar a senha e contar umas vantagens e mentiras de suas aventuras na estrada; um viciado querendo falar com a mãe dele e outras esquisitices.

Me passaram para o turno da noite e neste horário as coisas só pioraram, mais malucos desocupados ligavam para zoar com a gente e eu, pára raio de bizarrices, os mais doidos pareciam cair justo na minha mesa.

— É um prazer receber sua ligação! Meu nome é Charles Trezinni, em que posso ser útil?

Uma voz —parecia de homem— respondeu quase sussurrando.

— Como você é neném?

Percebi a sacanagem e como não tinha nada melhor para fazer, entrei na brincadeira.

— Já não sou mais tão jovem, mas ainda tenho um ou dois truquezinhos na manga.

— Gosto de coroas safados, gosto de brincar com aquelas bolas murchas enquanto minha boca suga toda sua alma.

Não me agradou muito a idéia de um marmanjo brincando com minhas bolas murchas, mas como o traste deveria estar do outro lado do país continuei com a viadajem.

— Minhas bolas e todo o resto são bem menos murchas do que você pensa benzinho, posso te arrombar com uma fincada bem dada.

— Ui! Seu velho lobo! Safadinho! Garanto que também vai gostar do meu brinquedinho, também posso dar uma metidinha gostosa, senti que tu é do tipo que não rejeita uma boa sacanagem, não importa de que lado ela venha.

A bicha agora tava querendo me comer, ainda bem que estava protegido em meu curralzinho, a quilômetros do safado.

— Sempre soube que você não era de negar fogo, seu velho sem vergonha, vamos nos divertir muito, mal posso esperar terminar o turno. Vamos dar uma escapadinha no banheiro?

O negócio começou a ficar complicado. Como assim "escapadinha no banheiro?", de onde diabos este tarado tá falando? Estiquei o pescoço por cima da divisória do curralzinho e olhei para os lados. Na outra fileira, lá no fundo, sentava um alemão ossudo de uns dois metros de altura, o rosto cheio de espinhas, ele quase nunca falava com ninguém e como eu também nunca falava com ninguém, pra mim tava bom. Quando olhei na direção do alemão ele tava levantado da cadeira olhando em minha direção, quando percebeu que o enxergara, deu um risinho maroto e uma acenadinha, com a maior mão que já vi. Me encolhi no curralzinho, deslizei pela cadeira e fui, quase gatinhando em direção à saída. Não voltei nem para acertar minhas contas e, para não ser despejado, tive de fazer uns serviços extras para dona Clotilde. Era menos pior do que ter aquele brutamontes espinhento pendurado nas minhas bolas e depois me agarrar com aquelas manoplas e me foder.


 

LM