Thursday, November 29, 2012

Cala a boca e faça esse teu servicinho mal feito


Quis contar esta história usando o mínimo possível as palavras. Não me dou bem com elas, são traiçoeiras e quando penso que estou dizendo aquilo que quero dizer, elas simplesmente mudam de sentido e dizem exatamente o contrário, ou pior,  pois contrário indica a existência de apenas duas versões e as palavras parecem ter muito mais do que só duas versões. Viram, nem comecei a contar minha história e já gastei meio parágrafo dizendo nadas, entupindo as leitoras com um punhado de palavras. Vou tentar ser direto, vamos à história.

                Quando conheci Cleide, não prestei muita atenção. Tinha problemas demais para prestar atenção em todas as garotas que eram contratadas na fábrica. Eu era encarregado do setor de almoxarifado, serviço tranquilo, entregar umas peças e ferramentas a quem solicitasse, anotar nas fichas e passar a maior parte do dia fazendo de conta que estava muito ocupado. Não era um serviço tão ruim, mesmo assim era um saco e pagavam uma miséria. Como ia dizendo, a Cleide era mais uma das garotas da fábrica, todas de brim azul, sapatão, capacete, óculos de proteção, luvas, avental, ou seja, não dava para distinguir muito bem quais eram as gostosas. Uma ou outra eu pensava “Essa eu pegava”. O resto era a mesma coisa que beijar o Nicolau do esmeril.

                Uma vez andei saindo com uma das operárias, a Marli, até que era ajeitada, mas não deu muito certo, começou a pegar no meu pé, arranjava qualquer motivo pra ir ao almoxarifado. Ela achava que eu tinha um grande cargo porque não precisava ir para a fundição e virou a me pedir dinheiro. Dizia que era emprestado, mas nunca falava em pagar. Fiz as contas depois de um mês e descobri que era mais barato dar uma passada na zona uma ou duas vezes por semana. Assim eu ia me ferrar e, ou eu saia, ou dava um jeito de conseguir que a mandassem embora. O Lourival do setor pessoal me devia um favorzinho. Fomos a uma farra e ele bebeu demais. Foi trabalhar ainda de ressaca e, achando que tava abafando, quebrou o vidro do alarme de incêndio e apertou o botão. Para livrar a cara dele assumi inventando um acidente enquanto eu movimentava uma gaiola cheia de pacotes de peças e ferramentas, entre um setor e outro. A história colou e o Lourival ficou me devendo uma pedra. E a Marli foi pro espaço.

 

Continua...

 
LM

Friday, November 23, 2012

Profissões


Quando você procura desesperadamente um assunto para escrever e não encontra e acaba caindo na maldita armadilha de escrever sobre a falta do que escrever, desista, você não é um escritor, está apenas fazendo cena para parecer mais inteligente ou interessante do que realmente é. Normalmente quem mais faz isto são aqueles escritores mais fajutos, que se dizem verdadeiros talentos. Para estes iluminados, o assunto vem direto do céu, com todo o resto: assunto, enredo, palavras, tudo. O escolhido pelos deuses da literatura só precisa colocar no computador o recado dos céus. Quando os deuses saem para um passeio ou estão simplesmente cagando, nosso pobre escritor não sabe sobre o que escrever e fica enchendo o saco de sua meia dúzia de leitores com um monte de merda do tipo: “Hoje nada me ocorria, lembrei-me da noite anterior, cuja fronha do travesseiro cheirava a alfazema...” Ele não sabe o que é alfazema e o travesseiro deve ter uma morrinha de baba acumulada, bem distante de qualquer odor floral.

Eu sempre tenho algum assunto que poderia usar para escrever algo, o problema é que nem sempre as palavras aparecem decentemente. Digito alguma coisa e leio apenas um monte de porcaria com um assunto que poderia render uma boa história. Outro dia resolvi contar a história de um sujeito que perdeu uma das mãos trocando o pneu do carro, mas ficou tão ruim que minha vontade foi de que minha cabeça estivesse sob o carro do sujeito da mão decepada. Fica evidente o quão limitado sou como escritor, mas me consolo lembrando de um bando que consegue não encontrar nenhum assunto quando se tem um milhão de assuntos por dia para serem usados.

Manuel de Barros escreveu que qualquer coisa é matéria prima para poesia e se ele falou, quem sou eu para discordar. Um exemplo disto foi quando estava escrevendo estas considerações. Um cara tocou o interfone, fui ver, era um maluco pedido uns trocados para comprar comida. O cara estava quase se recuperando de um porre e precisava mais combustível para queimar. Seu corpo já não era mais um corpo, apenas uma fornalha tocada a álcool. Pedi para ele esperar um pouco, eu ia ver se achava algumas moedas, antes preguntei o que ele fazia quando não estava nas ruas. “Era escritor, e dos bons, mas um dia estava sem assunto e meu editor não quis esperar e me mandou à merda.” Não acreditei muito naquela história e até desconfio que alguém deu uma garrafa para aquele miserável bater na minha porta e falar aquilo. Sempre tem alguém querendo rir ás custas da gente.

Procurei algo pra dar ao sujeito, não tinha dinheiro, só cartão de crédito na carteira, fui ao balcão das bebidas e fiz uma limpa. Catei aquelas bebidas que a gente compra ou ganha, mas nunca bebe: uma garrafa de menta (era verde, mas não tenho certeza se era menta), duas cidras, um vinho doce e uma garrafa de graspa. Coloquei tudo numa sacola e levei até o portão. Quando entreguei o embrulho para ele, dei uma de bom camarada, de coroa legal e falei: “Parceiro, não fale por aí que era escritor, ninguém liga para escritores, diga que era um advogado que não conseguiu livrar da cadeia um cliente seu que você tinha certeza da inocência e o cara acabou sendo assassinado na prisão, daí você se desencantou com o sistema e resolveu abandonar a vida para errar pelo mundo.”

Estava muito satisfeito comigo, com minha boa ação do dia e não esperava muitas respostas, quando o bebum me respondeu: “Cara, essa também é boa, vou usar. Antes eu dizia que era médico e larguei tudo depois que uma criança morreu em minhas mãos, na sala de cirurgia, mas um dia, quando acabei de contar a história, veio uma gritaria do interior da casa, fiquei por ali olhando e o camarada que tava falando comigo veio correndo e me agarrou pelo braço aos berros dizendo que eu ainda era médico e que a sogra dele tava tendo um ataque. Foi a maior merda, me livrei do cara e saí correndo.”

Pelo jeito o bebum deve ter sido mesmo escritor.
 
LM

Sunday, November 11, 2012

Um lugar


Acordou como quem volta da morte, sem lembranças ou esperanças, não havia passado nem futuro e o presente era pálido e impreciso. Pouco sabia de si, sabia apenas do despertar. Sem passado, tentou estabelecer lembranças a partir do momento em que acordara, mas não podia distinguir onde estava, quanto tempo se passara, como era seu rosto, por fim desistiu e contentou-se em permanecer apenas no presente, o futuro seria muito mais penoso de intuir.

Tentou identificar onde poderia estas, havia uma luz difusa, pálida, vinda de todos os lados e conjeturou ser aquele lugar o limbo, haviam elementos suficientes para supor isto.

 

Ouvi-lo, em dor o coração me lança,

Pois muitos conheci de alta valia,

A quem do Limbo a suspensão alcança.

 

E por uma centelha de lembrança almejou a suspensão daquele sítio onde o nada impera, onde o bem e o mal não habitam e nem querem habitar, onde o choro é por algo que se não conhece nem se sabe alcançável. E a mesma centelha de antes o fez tremer: se fosse o limbo, então estaria morto. Mas se estivesse morto, certamente estaria no inferno e ali não poderia ser o inferno, afinal o inferno são os outros. Beliscou-se e sentiu a carne, apalpou-se e sentiu o calor, soprou e sentiu o ar dos pulmões. Eram indícios de ainda estar vivo. Sentiu medo, mesmo assim começou a explorar o local. Tentou estabelecer dimensões de onde estava, mas percebeu a inutilidade disto, porém inquietou-se tentando saber de onde poderia ter tirado tal ideia. Tentou seguir em direção ao centro, temendo imensamente encontrar um poço. Pouco sabia de poços, muito menos porque teme-los, de qualquer modo nada havia onde parecia ser o centro.

Exausto, deitou-se e dormiu. Teve sonhos impróprios, inquietantes e nos sonhos ele próprio agitava-se como louco e, de longe, parecia uma mosca. Pensou em sonhar mais do que um sonho, em sonhar uma realidade possível, longe daquele não-lugar, entretanto este mesmo pensamento já era apenas um sonho e por fim acordou mais exausto do que antes.

Precisava sair, fugir, ir para outro lugar, ninguém viria para salvá-lo. Tomou distância e correu a com toda a energia e arremessou-se contra a parede projetando a cabeça. Por um brevíssimo instante pode escutar os estalos secos do  dos ossos do crânio quebrando e o espatifar dos miolos. Depois tudo voltou ao silêncio.

Ficou desacordado por tanto tempo quanto uma vida e o recobrar da consciência não passava de uma ameaça de despertar, como quando se está em profundo sono prestes a acordar, mas ainda sem forças para fazê-lo. Não conseguia abrir os olhos, tampouco tinha conhecimento se permanecia no local de antes. Também não distinguia nenhum som ou qualquer indício exterior. Conseguiu lembrar-se da pancada na cabeça e pensou que desta vez poderia estar mesmo morto, pois não conseguia mover-se. Mesmo lembrando do incidente, teve dúvidas dos motivos que o levaram a tomar tal atitude. Não sabia se tentava arrebentar a parede ou se estava apenas tentando por fim à vida. Estes pensamentos consumiram um grande tempo, impossível de ser medido, mas longo suficiente até que ele pudesse abrir os olhos e levantar-se novamente. Ainda estava no mesmo local.

    Procurou vestígios do ferimento e não havia sangue pelo chão, nem marcas em sua testa. Tudo estava como antes, continuaria tentando encontrar uma saída inexistente, a entender de onde viera onde estava para onde iria, tentaria sentir-se menos inútil e mais valorizado do que realmente era. Certamente daria novas cabeçadas nas paredes, esqueceria coisas importantes, mas consolar-se-ia ao lembrar de que nada parecia ser importante ali. Iria correr desesperadamente em círculos sem nunca chegar a lugar algum e mesmo assim, para não ter perigo de esquecer o trajeto da desvairada correria, refaria novamente o trajeto, até chegar ao ponto da partida. Latejava-lhe a cabeça e sentia uma leve náusea, afora o mal estar, tudo estava perfeitamente normal.

 

Luiz Mendes

11/11/2012