Sunday, December 08, 2013

Soyez les bienvenus

O estrangeiro que desejar conhecer Joinville não se decepcionará. Trata-se de uma cidade onde tudo e todos estão em seu lugar, cada morador também sabe qual seu papel dentro da organização social. Além disso, existem inúmeras atrações turísticas e belezas naturais dignas de nota, sem falar no efervescente cenário cultural em constante atividade. Claro, existem alguns pequenos inconvenientes, nada de muito grave, mas que deve ser anotado, para não se criar a falsa expectativa de um lugar absolutamente perfeito.
Primeiro vamos às principais qualidades para, ao cabo, enumerarmos seus poucos inconvenientes.
Uma cidade, todos sabemos, não é feita apenas de praças e monumentos (abundantes em Joinville), mas principalmente por seu povo e isto é o que há de melhor em nossa terra. Como dito no introito, cada qual sabe lugar e seu papel e todos são muito ordeiros e trabalhadores e principalmente, do Bem. Se não vejamos: trata-se de uma cidade próspera, a maior e mais rica de nosso estado, mas ainda assim alguns elementos (poucos) insistem em manterem-se alheios à esta pujança, são moradores de alguns bairros mais afastados. Não obstante à sua falta de iniciativa e esforço para compartilharem da prosperidade citadina, estes indivíduos, ao menos sabem seu lugar e acham por morar uns próximos dos outros, em locais afastados do centro, deixando a cidade mais bonita, sem que o estrangeiro se depare com casas desleixadas e tipos molambentos.
Outro exemplo gritante da ordem do nosso povo diz respeito aos protestos populares. Ao longo da história muitos foram os levantes populares e muitos desses culminaram com o engrandecimento da nação, como no exemplo francês. Aqui não poderia deixar de ser diferente, quando o povo não se sente plenamente representado pelas autoridades que receberam seu voto no sufrágio universal, saem às ruas para exigir seus direitos de cidadão. Isto enriquece a democracia e fortalece a cidadania, mas tudo tem um limite, pois os manifestantes jamais ocupam ruas e praças públicas sem antes pedirem a autorização dos órgãos competentes e o auxílio da polícia. Os órgãos competentes concedem, então, um alvará para a realização da manifestação, que terá hora e local previamente determinados para começar e terminar. Já a polícia, fará a sinalização das ruas, afim de evitar congestionamentos no trânsito e aborrecimento aos motoristas alheios aos protestos. Finda a manifestação, cada um segue ordeiramente para sua casa.
Temos dois luxuosos teatros, erguidos pela iniciativa de nossos governantes, com recursos públicos muito sabiamente empregados: um para eventos esportivos, outro para culturais. Sendo ambos públicos, o acesso do povo é irrestrito, devendo apenas, em dias de espetáculos, o espectador pagar um módico ingresso, para fins de manutenção do local e custear a atração ora apresentada. Assim, com cerca de meio salário mínimo, uma família composta por pai, mãe e um filho, poderão ir à vontade, sempre que tiver uma atração esportiva (o futebol é deveras apreciado), ou uma das tantas peças teatrais que jamais deixam de perfazer o eixo Rio-São Paulo-Joinville. No nosso teatro, ocorre ainda o maior festival de dança do mundo, prestigiado por toda a população que se envolve de maneira exemplar e prestigia cada apresentação. Ninguém, nem mesmo os moradores das zonas mais distantes ficam alheios a este mega-evento cultural. E como de costume, qualquer um pode prestigiar as apresentações, pagando o tradicional módico ingresso.
A natureza também nos favorece e a ela prestamos sempre nossa reverência e respeito. Exemplo disso é a sede do poder local, a prefeitura, erguida às margens do nosso principal rio, o Cachoeira. Todo visitante que for à prefeitura poderá perceber nosso zelo, pois ao longo das margens do rio, além da própria prefeitura, erguem-se monumentos, praças, calçadões, tudo para homenagear aquele que foi o primeiro caminho por onde vieram nossos Ancestrais Europeus.
Também somos muito bem servidos no que tange a alta gastronomia, não devendo nada aso principais centros europeus. Muitas sãos as opções, desde o tradicional churrasco, passando por comida japonesa, italiana, chinesa, grega (nosso arroz à grega é mundialmente famosos), árabe, francesa e internacional. E tudo muito acessível a todos os bolsos. Aquela família que foi ao tetro, após o espetáculo poderá jantar, como se no Velho Continente estivesse, gastando pouco menos de meio salário mínimo, ou seja, poderá enriquecer imensamente o espírito e satisfazer a carne plenamente, sem precisar comprometer seus rendimentos mensais.
Apesar de tantas oportunidades de acesso aos eventos culturais e gastronômicos, muitos ainda mantêm-se arredios em saírem de seus bairros, preferindo manterem-se distantes do centro, o que não é de todo ruim, pois evita que se agrave o já preocupante número de congestionamentos no trânsito.
Preocupado com alguma possibilidade de o povo não participar ativamente dos eventos da cidade, o poder público, para as festas de Natal, montou uma suntuosa decoração com motivos natalinos, em um local estratégico: bem ao lado do terminal urbano de ônibus. Estratégico pois fica em uma ampla e bela praça, e como dissemos, ao lado do terminal de ônibus, além de ser de acesso inteiramente gratuito. Para ver as maravilhas que ali foram instaladas, qualquer família pode pegar o ônibus e, a poucos passos do desembarque poderá ver bonecos de neve, caixas coloridas, Papais Noel, um presépio, tudo ao ar livre. O sol escaldante de dezembro diminui um pouco o afluxo de visitantes durante o dia, mas à noite, as constantes chuvas de verão refrescam o local e permitem maior conforto para a população.
No local encontramos também, uma completa praça de alimentação, composta pelas mais variadas ofertas de guloseimas e petiscos: pipoca, algodão doce, espetinhos, milho cozido, morango com chocolate e muito mais. Como a visitação é gratuita, todos podem saborear sem preocupações monetárias as delícias oferecidas por verdadeiros chefs da cozinha popular.
Vale destacar, ainda sobre a decoração natalina, outro aspecto do local pensado em todos os detalhes. Falamos en passant dos ônibus. Pois bem, como descrito, a praça fica ao lado do terminal urbano, e além dessa estratégica proximidade, temos um serviço de transporte coletivo dos melhores do mundo, além de muito barato. Qualquer um pode ir a qualquer lugar da cidade, sempre com muito conforto e rapidez, pagando apenas uma simbólica passagem. Ou seja, não existe desculpa para que todos participem ativamente dos eventos da cidade. Afinal, permitir que mesmos os moradores das áreas mais afastadas do centro se desloquem para qualquer lugar, não apenas com o vale-transporte oferecido pelos empregadores para que não tenham desculpas para faltas, isto sim é incentivar a democracia e a cidadania. Vive Joinville!
Fiquei de falar dos defeitos de Joinville, mas ainda que precise me esforçar para encontra-los é uma obrigação moral de qualquer pessoa do Bem fazê-lo. Existem na cidade, shoppings centers que não são exatamente uma referência às nossas tradições, pois lembram em demasia os melhores shoppings de São Paulo. Isto, que muitos poderiam louvar, não é favorável à cidade, pois se um estrangeiro que desembarque em nosso grande aeroporto, tomar um táxi até um desses centros de compra, poderá ter a falsa ideia de que Joinville é igual a qualquer outra cidade próspera da Europa e perderá o interesse em conhecer nossas tantas outras maravilhas.
Nem precisaria falar dos já mundialmente conhecidos adjetivos de Joinville, mas farei apenas brevemente: somos a Cidade dos Príncipes, nossa tradição nobiliárquica é notória, exemplo é nosso nome, oriundo do Príncipe de Joinville, que se não fosse a ignóbil esperteza de Luís Napoleão, teria unificado as casas de Orleans e Bourbon  e sido conduzido ao trono da França;  Cidade das Flores, pois além da tradicional Festa das Flores, em cada casa, em cada praça, em cada recanto da cidade, podemos encontrar os mais belos e floridos jardins;  Cidade das Bicicletas, aqui abundam ciclovias seguras e impecáveis e como nos mais avançados centros europeus, nosso culto povo sabe dar valor aos pequenos prazeres da vida, como uma agradável pedalada às margens do Rio Cachoeira; Manchester Catarinense, como a homônima cidade inglesa, é visível a pujança histórica de nossa portentosa indústria, erguida pelas mãos valorosas dos colonizadores Europeus e mantida com inegável progresso pelos seus descendentes.
Eis um pequeno retrato de Joinville: sejam bem vindos estrangeiros, especialmente do Velho Continente, que poderão ver os frutos das sementes plantadas por nossos ancestrais comuns.   

LM

08/12/2013

Sunday, December 01, 2013

Pequena história canina

Não teve o som de palavras, simplesmente enfiou um tapa na minha cara. Fechei com violência minha mão: com um soco quebro aquele nariz esnobe. Algumas pessoas distribuindo folhetos de religião nos olhavam. Se desse o soco, chamariam a polícia, melhor resolver isso depois.
— Sua puta louca! — Falei entre os dentes, enérgico sem gritar. Os crentes nos vigiavam.
— Você é um cachorro! Um cachorro vadio e sarnento que só me procura quando quer dar um trepada.
— Cachorros vadios só vão atrás de cadelas no cio.
Outro tapa. Desviei, se levasse mais um não iria dar a mínima para os crentes. Se aproximavam, disfarçadamente.
— Se tentar me bater mais uma vez, juro pela virgindade de Nossa Senhora que eu te arrebento aqui mesmo.
— Não fique blasfemando, você nem acredita...
— E você acredita muito mesmo! Só esquece um pouquinho quando tá gemendo e uivando que nem uma cadelinha...
— Cachorro filho da puta! Seu merda!
Xingamentos. Sinal de que estava ficando com tesão.
— Deixa de besteira. Vamos sair daqui antes que aqueles crentes tentem nos converter.
— Você! Eu já frequento a igreja.
— Eu sei, sei que faz tudo direitinho, como manda padre, pastor, bispo, missionário.  É boa esposa, excelente mãe. Só de vez em quando se dá ao direito de aproveitar um quarto de hora, sem fazer mal pra ninguém, só uma relaxada e uma transa bem gostosa com teu cachorro. Uma cerveja. De vez em quando, Deus nem percebe, nem liga.
— Não fala assim de Deus, sabe que acredito.
Perto da praça tinha um hotelzinho, o de sempre. Melhor longe dos olhares santos.
— Vem cá minha cadelinha gostosa.
— Ui! Cachorro filho da puta. Tarado! Vai me deixar de quatro, dar tapas na bunda da tua cadelinha? Ela tá precisando de uma lição. Uma lição bem dura.
— Vou fazer tudo que minha cadelinha gostosa quiser...
— Todo cachorro tem sua cadela.


LM 

Sunday, September 01, 2013

Guia de Patologias

Da série Guia de Patologias
Por Chareles Trezinni
Repórter e correspondente especial da Revista Medical Care and Health 

Não me preocupo em encontrar curas, ao cabo, são ou enfermo, questão de tempo apenas, o fim é o mesmo. Desta forma, não alimentem esperanças de que as patologias aqui descritas serão seguidas de anúncios de curas.  Meu objetivo é a doença e em Campina Nalverdense, onde passei uma temporada escrevendo um tratado de filosofia que será publicado em breve pela editora Companhia das Letras, descobri as mais impressionantes doenças. Em Guam, a possível causa do daltonismo seria a farinha extraída a partir da cicadácea lá existente, mas em Campina Nalverdense, que nada tem de insular, as causas das bizarras afecções em suas gentes ainda é um grande mistério. Eis alguns exemplos:
Dermatite urticárica centralizada. É uma coceira insuportável exatamente no meio das costas dos pacientes. Isto obriga os indivíduos portadores deste mal a se contorcerem e coçarem-se com a unha do polegar. Se a doença em si não é tão absurda, o mais incrível é que 98,9% dos pacientes com dermatite urticárica central desenvolvem uma segunda patologia, o líquen plano ungeal apenas na unha dos polegares superiores. Coçar-se vira tarefa impossível e, não dispondo de algum utensílio apropriado, alguns indivíduos afetados por fortes crises de coceira, rolam pelo chão, esfregam-se nas colunas (desde que quadradas) ou, em casos extremos, precipitam-se do íngreme desfiladeiro Garganta do Diabo, acidente geológico dos mais impressionantes e grande atração turística da cidade.
Rinorréia mucopurulenta epistaxente. A rinorréia normalmente é um sintoma secundário de alguma outra enfermidade, entretanto nos casos dos nalverdenses, não se detectou nenhuma rinite ou outra doença primária. Outro fator de estranhamento, é que o muco produzido, acrescido do sangue da espistaxe, seca muito rapidamente, ainda dentro das narinas, fazendo com que os pacientes produzam uma quantidade absurdamente anormal daquilo que, no dito popular é conhecido como tatu, com a ressalva que nestes casos, a produção seja de dentro para fora. Há relatos de um motorista de ônibus, de 50 anos, que teria produzido 600 gramas de tatus em um único dia.  Assim como no caso anterior, uma doença secundária afeta 96,7% dos portadores de RME, a phalangite metacarpal de extrema, onde os dedos das mãos incham sobremaneira, impossibilitando os enfermos de escarafuncharem suas narinas com os dedos. Nas ruas da cidade é possível encontrar ambulantes vendendo um extrator intra-nasal, um aparato em forma de pinça, próprio para a extração dos tatus. Uma dona de casa, acometida por uma forte crise e sem auxílio de uma destas pinças, cortou o nariz com um a tesoura.
De todas as raras doenças de campina Nalverdense , a que tem causado mais estragos, tanto físicos, quanto psicológicos, é a hipertricose genital congênita, ou simplesmente HGC, cujo principal sintoma é o crescimento desmesurado dos pelos pubianos. O excesso de pelos naquela região traz muitos inconvenientes ao paciente, como sudorese, irritação da pele e da própria genitália, o que, se não for devidamente combatido, pode provocar a exalação de odores indesejados, além do aparecimento de certas parasitoses. Há que se imaginar ser possível simplesmente aparar os a indesejada massa capilar, entretanto, como nos exemplos anteriores, uma segunda patologia  acomete os portadores de HGC, o tremor essencial clássico bilateral simétrico seletivo, ou Tecbiss. Aparenetemente os pacientes com Tecbiss não apresentam disfunções neurológicas nem apresentam os tremores o tempo todo, —daí o termo seletivo no nome da doença— apenas quando aproximam as mão dos pelos pubianos ou adjacências. Esta característica incomum faz com que os pacientes portadores de HGC, quando tentam aparar os excessos de pelos, tenham crises de Tecbiss e, na maioria dos casos, acabam mutilando-se severamente. Estudos observaram que os pacientes têm os tremores aliviados com o consumo de álcool, mas isto não diminui o índice de mutilações, pelo contrário. Há relatos de mulheres que extirparam o clitóris e os lábios vaginais, sem falar das inúmeras emasculações.

Sunday, July 21, 2013

Uma história sobre heróis e tumbas

Naqueles tempos ainda se falava em dragões, embora de maneira incrédula, menos para Ezdreot, ele acreditava na existência destes seres fabulosos e ansiava por poder travar a derradeira batalha, em por fim na guerra entre homens e bestas. Ao modo do manchego, mesmo sem saber da sua existência, Ezdreot armou-se à farta e partiu para o que acreditava ser seu destino. Vagava por campos e desertos bradando a maça, sibilando a espada, arremessando a lança: treinava corpo e mente enquanto buscava seu oponente.
            Os cronistas relatam que sua busca durou sete anos e quatro meses, quando chegou ao patamar do monte Andur. Ao avistar a eterna fumaça a escapar do cume da montanha, o herói não teve dúvida, aquele gigante era o maior de todos os dragões. Subiu o quanto pode as costa escarpada e sem demora tratou de desferir os mais potentes golpes no dorso do terrível gigante adormecido.
            O monte Andur realmente estava adormecido, sua última erupção havia ocorrido há duzentos anos e, com o passar dos anos, camponeses se fixaram nas suas proximidades para aproveitarem a vitalidade do solo vulcânico no cultivo de certas plantas. A cada nova colheita, mais confiantes ficavam e mais camponeses se estabeleciam, até que a vila de Ogmynt já contava com centenas de moradores. Mais ao norte, na parte ocidental do monte Andur, um revolto mar de águas geladas sustinha a vila com pescados e algas.
            A rotina de Ogmynt foi abalada quando o primeiro campônio encontrou o herói a desferir violentos golpes contra a montanha, enquanto praguejava e jogava maldições contra seu oponente. Primeiro o susto, depois a curiosidade, por último o riso. Logo o herói passou a ser alvo de visitas, era uma espécie de recreação para o ogmyntenses organizarem pequenas excursões para assistirem à batalha entre um maluco e um vulcão adormecido. Ao cabo de um tempo a novidade tornou-se repetitiva e enfadonha e o interesse dos camponeses arrefeceu-se, mesmo assim Ezdreot continuou sua luta. Passaram-se dias, semanas, meses, anos e quando suas armas já não passavam de cotocos inúteis, ele improvisou lascas de pedras, galhos e qualquer coisa que pudesse ferir o gigante. Alguns moradores da vila se compadeceram de tamanha insanidade e levavam água restos de comida e pão seco para o incansável herói e assim se passaram vinte e seis anos.
            Os anos da inútil batalha produziram um sulco ao longo da encosta do monte. Olhando-se da vila Ogmynt era possível perceber um corte diagonal descendo pelo costado da montanha até os rochedos próximos à rebentação do mar. Era admirável como apenas um homem tivesse produzido aquele rasgo na paisagem do vulcão, embora a admiração se desse mais por conta da loucura do guerreiro do que pela grandiosidade do trabalho. Os anos também desgastaram nosso herói, que mal consegui segurar suas armas, a visão falhava e suas pernas tremulavam ante o peso do esquálido corpo. Quando deu o último golpe que seu braço poderia aguentar, ele percebeu que não encontraria a glória, que não seria chamado de herói, nem teria seus feitos cantado por bardos. Um lampejo de lucides o fez ver que nada mais havia feito nos últimos trinta e três anos do que consumir-se em um trabalho inútil. Então ele deitou no chão duro e teve vontade de chorar.
            Um dia, porém, a natureza iria destinar um capítulo especial à história daquelas pessoas e o vulcão despertou. Aos estrondosos trovões sucederam milhares de pedras incandescentes sendo arremessadas com tremenda violência. Uma negra fumaça fez o sol desaparecer, contam os historiadores, por vários meses e o que todos mais temiam aconteceu: um rio de lava precipitou montanha abaixo. O destino de Ogmynt era infernal. Descendo o rio de lava a uma velocidade assombrosa, não daria tempo para fuga e todos estavam condenados ao suplício do fogo. Mas o improvável aconteceu: a lava encontrou o sulco produzido pelo guerreiro solitário e desviou seu curso, indo direto para o mar. Fogo e água travaram uma assustadora batalha, um virando rochedo, outro vapor e no meio desta guerra de titãs, o herói desapareceu consumido pelas forças da natureza, sem direito sequer a uma tumba.
            Passada a cólera do vulcão e intacta a vila, a não ser pelas cinzas, os habitantes de Ogmynt sabiam que deveriam organizar festivais para honrar a memória de quem salvou suas vidas e suas casas. Agora, todo viajante que por ali passa, pode ler em placas fixadas em monumentos ou ouvir em poemas cantados nas bocas das crianças, a história de heroísmo do povo de Ogmynt, que pressentindo o perigo resolveram desafiar a natureza e mudar a geografia de uma montanha inteira apenas com a força dos valorosos braços de seus filhos e com sua determinação implacável.

LM

Sunday, June 02, 2013

A Leitora


Gastou os últimos tostões com algo a não ser usado, posto que para nada  servia, logo após andou com passos determinados, mirando um lugar a chegar, lugar que existia apenas no futuro. Batia com força os pés na dureza da calçada, como que na esperança de encontrar pontos de menor resistência: queria mesmo era poder liquefazer o concreto e entrar nos íntimos da Terra, mas seus sapatos não eram boas ferramentas, eram antes, bússolas desorientadas. Botou as mãos no bolso e sentiu a resistência do objeto inútil, pensou em por sobre a mesa da sala, ou no umbral da entrada, isto lhe impôs o terror, não tinha umbral em sua porta e sentiu a boca se abrir para uma oração: Credo in umum Deum. Patrem omnipoténtem, Factórem cæli et terræ, Visibílium ómnium et invisibílium...  

— Você me parece ser das criaturas visíveis. Ainda que pálido, quase translúcido. Ou seria embalsamado? Tem andado muito aflito ultimamente, deveria relaxar. Veja, treme como se diante...

            Era ela! Sempre ela. Estava seguindo-o? Há quanto tempo? Apertou o objeto inútil entre os dedos, a força da matéria dura se opondo à flacidez dos seus dedos deu-lhe algo parecido com coragem, uma ilusão de poder sobre a natureza. Afinal ela nunca o abandonara, nunca esquecera dele, esboçou um sorriso que logo se perdeu na frieza dos lábios. Queria apenas beijá-la, mas isto seria perde-la para sempre. Resolveu falar-lhe:

— Sabe, dizem que uma palavra pode se tornar infinita. O imperador da China, possuidor das coisas e das gentes, quis também possuir as palavras, que são a matéria de todas as coisas, e mandou seus sábios escreverem a enciclopédia Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos. Ali descobri minhas essências. Antes pensei ser da classe dos animais fabulosos, entretanto o tempo vivido entre homens e mulheres de pouca lucidez, metamorfoseou-me em um animal que se agitava como louco. Quando a sanidade pareceu imperar, senti-me como se apenas fosse um desenho feito com um finíssimo pincel de pelo de camelo, quase uma fantasia, trouxe-me à realidade o dia em que quebrei o vaso. Estou preso a um livro, somos versículos, ou palavras, ou letras de um livro mágico. Serei infinito enquanto for estas palavras ou letras...

— Anda lendo Bor...

— Eu sei que você sabe do que estou falando, sempre falei apenas para você, sempre escrevi apenas para você e continuarei fazendo. Sabe o que leio, pois sabe o que escrevo. Você é minha única leitora, aquela que me lê até acabarem-se as minhas matérias, aquela que escreve seus comentários em minhas margens, que ficarão marcadas com teus sinais para sempre. Seria eu o mais miserável dos homens se não fosse por ti. Te amo e te odeio, mas não tenho bondades em meu coração, apenas sentimentos humanos e saber que só escrevo para ti não me é penoso, porque sei que sou teu único escritor, você não lê nada além de mim e além do que escrevo. É mais miserável ainda do que eu, presa a este insignificante escriba, este copiador de fantasmas. Tenho pena de você, mais ainda do que poderia ter de mim mesmo e isto me fortalece, saber alguém mais miserável do que eu me torna superior em algo. E afinal, quando me lê, também estou lendo você.

Se olharam por um tempo infinito, ele procurou uma ponta de lágrima brotando nos olhos dela, enquanto segurava o objeto inútil.

— Agora tenho arte. Ainda não sei fazer objetos artísticos, apenas trago a arte para usar nos meus escritos. Não vou pedir desculpas, não sei fazer isto, continuarei apenas escrevendo, para que leia, para que tenha o que ler, enquanto existirem palavras em mim.

— Não se afaste muito, é que de longe você parece mosca.

 

LM

02/06/2013  

Tuesday, March 26, 2013

O hussardo e o pequinês


A velhota me flagrou saindo do motel. Caminhava com o pequinês. Quem ainda tem pequinês? Nada pior do que ser flagrado pela própria sogra, mas sou da estirpe do hussardos. Muitos canhões trovejarão antes de uma reles megera me arruinar. Plano elaborado, à execução.

            A Val está em casa da tia Mirtes, faz préstimos de boa sobrinha, ajudando na convalescença após cirurgia no coração. Ganho um dia para agir. O sogro na estrada, motorista. Estomago já começa a embrulhar. Até a morte, valoroso príncipe polaco!

            Chego em casa como se nada tivesse acontecido, comecinho da noite, três garrafas de espumante na sacola, geladinhas, bem do tipo que ela gosta, caixa de bombons, fico de shorts, camisa aberta. Pouca demora e ela aparece na cozinha, roupãozinho acolchoado uns quatro números a menos do que o necessário — e quente demais para nossa cidade —, pequinês no colo, olhinho apertado (dos dois) e batendo os pezinhos gorduchos nervosamente dentro das chinelas.

Esquece, esquece, lembra que tem apenas onze anos a mais do que você, bravo hussardo, tomou conhaque, amendoim, gemada pela manhã.

— Bonito hein? Muito bonito o papelão! Seu Leopoldo Blinizesky! A pobrezinha da Valdirene cuidando da tia enferma e o senhor ciscando com umas biscatinhas, como se fosse um gurizote. Não tem vergonha?

— Muita! Muita mesmo, mas é que... Não posso falar! Nada que eu diga justifica o que fiz, mas sei que a senhora sabe...

— Sei que o senhor não passa de um sem vergonha. É isso o que eu sei. O que teria mais para eu saber?

Curiosa, começou a beliscar a isca. E pegou mais um bombonzinho.

— A senhora sabe como a Val é. Não diga que ela também não a trata como um lixo. Eu vejo, todo mundo vê. Você não merece isto, ela é uma ingrata.

— E o que tem o jeito que ela me trata? Ela é meio geniosa mesmo, sempre achando que estou errada...

Hora da primeira garrafa. Duas taças bem cheinhas.         

— Desculpe, mas posso trata-la por você, né? Tão jovem, não combina chamar de sogra.

— Casei muito cedo...

— E com um troglodita, um bronco que não sabe o tesouro que tem em casa. Pai e filha, um tal e qual o outro. Mais uma taça?

— Ai, que assim fico tonta.

— O bombom ajuda, glicose. O licor de dentro é sem álcool. E não faz mal ficar só um pouquinho alegre, até te deixa mais bonita, ilumina teu sorriso.

Bebo no mesmo ritmo. Ela ri com os dentinhos amarelos manchados de chocolate. Ai, príncipes polacos, que me legaram o sangue nobre, estou diante da fera, se não me devora, me atira aos leões.

— Só mais uma tacinha... Seu malandro sem vergonha.

— Uma mulher com M maiúsculo, linda, nem aparenta a idade, parece irmã da Val, prendada, inteligente e olha que o bruto nem a deixou terminar os estudos. Seria uma doutora, ou artista.

— Eu queria ser advogada...

— E seria até mais, juíza. Agora está aí, ignorada pelo marido, espezinhada pela filha. Sabe, não gosto de falar mal deles, são teus parentes e casei com a Val achando que ela era diferente, mas os dois são muito egoístas, só pensam no próprio umbigo. Sei, eu sou um fraco, deveria me impor, exigir ser tratado como marido, ao invés de suportar calado os caprichos e os maus tratos. Um dois, quando vi cai em tentação. E me arrependo do fundo do meu coração, não pela Val, mas por ter cedido a uma biscatinha.  Chegasse ao menos aos seus pés eu já me dava por satisfeito. Não mereço perdão, vou-me embora para sempre, viro andarilho.

— Deixa disso rapaz, quem nunca pecou que atire a primeira pedra.

Abro a terceira garrafa, não vejo mais o pequinês, botou na caminha. Melhor assim, se ele testemunhasse teria de matá-lo. Cinto do roupãozinho afrouxando. Santo Stanisław Szczepanowski, não me abandone, ela deve estar usando uma daquelas calcinhas que mais se parecem cuecas e que ocupam meio varal. O cheiro do Cashmere Bouquet fica mais forte. Que meus antepassados de gloriosos feitos polacos me deem forças. Sou um hussardo.

 

LM

Sunday, March 17, 2013

Os livros de Averróis



Degredado, Averróis (nome ocidental), nascido Abu al-Walid Mohamed ibn Ahmad Mohamed ibn Ruchd, buscou na filosofia aristotélica a força moral para suportar sua desonra. Abatido, humilhado ante a derrota de suas teorias e por se saber insuficientemente longevo para ver sua obra reabilitada, empenhou-se em uma tarefa monumental em tamanho e em mistério. O investigativo Zadig teria registrado em sua relação de bibliotecas fantásticas, trinta e dois tomos, abençoados por Deus e escritos por Averróis, desta obra cujo título desconhecido, comentadores ousaram a denomina-la História Universal da Infâmia —título utilizado sete séculos depois, em uma obra pretenciosa de Borges.

Sabe-se que Averróis teria trabalhado com incomum determinação e mais incomum ainda inventividade nesta obra, embora não se saiba se a teria finalizado. Com do passar dos anos, muitos volumes se perderam ou foram parar em mãos de infiéis, mas quis a Providência que dos trinta e dois volumes descritos por Zadig, dois fossem destinados a Jorge Numbrus. Chegaram em Santiago nos caixotes remetidos de Córdoba, da casa da avó materna de Numbrus, cujas núpcias e, quiçá a própria vida, foram interrompidas ao som dos Cantos da Cabala. Além dos livros, vieram nos caixotes, diários, retratos, relíquias e alguma quantidade de ouro, que Numbros tratou logo de por a salvo de olhares cobiçosos.

Durante quinze anos Numbrus ignorou aqueles alfarrábios, conferindo-lhes, no máximo, a mesma importância dos objetos de gabinetes de curiosidades, até, após o 11 de setembro de 73, ver-se perseguido pelo que ainda não havia escrito e condenado pelo que não sabia que pensava. Entraram em sua casa e buscaram provas, evidências e confiscaram seus pertences, especialmente seus livros, menos os dois volumes: eram antiquados e inofensivos, mas principalmente, ininteligíveis aos verdugos do general. As economias da família, mais o pouco ouro herdado da avó de Córdoba, compraram a liberdade de Jorge Numbros. Restaram-lhe, além da vida, apenas os dois volumes de Averróis.

Conseguiu documentos novos, novo nome e, com a intenção de não afrontar os poderes constituídos, foi para o Brasil ensinar literatura na Universidade Metodista de São Paulo.

Exilado e solitário, Jorge Silva Reyes, nascido Numbrus, após anos tendo ao alcance fácil das suas mão, resolveu, nas terras brasileiras, decifrar e ler os dois volumes herdados da avó de Córdoba, mais para preencher seus intermináveis finais de semana sem companhia e ocupação do que por interesse histórico. Apurou seu titubeante latim, arranjou alguns dicionários e gramáticas daquela língua sagrada e dedicou sua ociosidade à empreitada. Primeiro ficou incrédulo quando identificou o nome de Averróis, depois estremeceu: tinha em suas mão algo maior do que sua compreensão intuía, algo secreto e sagrado. Sentiu-se quase como se estivesse olhando para a face de Deus. Assustado temeu a morte, temeu a cegueira, titubeava a cada nova página decifrada, se enchia de terror e de fascinação. Alguns que o viram por aqueles dias afirmam ter visto apenas loucura.

Quanto mais lia, mais ficava atormentado e emocionado. Escreveu em um caderno de notas que estava decifrando a escrita do deus, mas depois riscou estas palavras e escreveu em seguida que estava lendo o mundo, por fim resolveu retirar-se do convívio dos homens e para aqueles poucos que o viram partir disse: “Vou ler um livro.” e depois completou: “Vou percorrer um labirinto.” Depois disto se isolou e passou oito anos relendo os dois livros. Mortificava-se a cada releitura, maravilhava-se a cada palavra reencontrada, a cada novo percorrer por expressões que julgava já ter dominado e finalmente descobriu o primeiro segredo: a cada releitura os livros se tornavam outros livros, nunca eram os mesmos da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma outra leitura. Na décima segunda leitura, Averróis enumerava dezesseis predicados de Deus, na décima oitava, os dezesseis predicados de Deus são refutados por serem atributos mundanos, impróprios para serem atribuídos ao divino. Na segunda leitura o tempo é circular, para tornar-se linear na oitava, cíclico na décima terceira e fragmentado na vigésima.

Numbros mal terminava uma leitura e já regressava ao início novamente, descobriu, nas páginas 297 a 325 do tomo primeiro, como foi o nascimento de Cristo, mas nestas mesmas páginas, em leituras posteriores, acompanhou a descrição da dissecação do cadáver de um burro, o cálculo da distância entre Jerusalém e Roma, a partir da observação das estrelas e duas considerações sobre a existência ou não de Deus. Era como se estivesse lendo todos os livros já escritos, não apenas por Averróis, mas todos os escritores, suas teses, antíteses e sínteses e os desdobramentos possíveis daquilo que estava escrito e quando já não sabia mais quantas vezes havia relido os volumes, nas últimas páginas do segundo tomo, encontrou as seguintes palavras:

            Iluminado pelo Altíssimo e seguindo os ensinamentos do Profeta, no ano 1410 da Hégira haverá uma nova revelação. Sob escombros do tempo, além dos vastos mares, toda a história do tempo será contada, todas as verdades dos doutores aparecerão, mas também todas as mentiras; a cura das doenças será ensinada, mas novos males nascerão incuráveis; os mistérios da magia serão decifrados, para serem esmagados pelo saber da ciência e esta ser derrubada pela fé; uma nova era para os infiéis nascerá e morrerá antes de chegar à sua metade; serão dias de incerteza e de clamor e um estrangeiro sem descendentes e sem credo portará as últimas palavras de Alá para os homens e as primeiras dos homens para a morte e este estrangeiro receberá o dom da palavra e ele será o Messias que conduzirá as pessoas de fé ao paraíso.

Este seria o segundo segredo dos livros de Averróis, Numbrus sentiu o peso do mundo em suas costas e chorou. Queria apenas poder viver e morrer como qualquer um, não se sentia preparado para ser o Messias. Pensou em como poderia enganar a Providência e concebeu um estratagema: o predestinado para portar as palavras de Ala era justamente Jorge Numbros, ele não era Jorge Numbrus, era apenas Jorge Silva Reyes, um brasileiro que leciona literatura espanhola e Jorge Numbros não existe, era apenas um personagem fictício, criado para povoar uma narrativa inventada por uma mente confusa, assim como aqueles livros não vieram de nenhuma avó de Córdoba, foram comprados em algum sebo e não são autênticos, são datados de 1201 e Averróis teria morrido em 1198. Jorge Silva Reyes passou um ano inteiro acrescentando detalhes, retirando lembranças, lembrando datas, para provar a inexistência de Jorge Numbros e afirmar apenas a sua existência. Durante o sono, pouco mais do que alguns instantes nos intervalos da eterna vigília, ele sonhava os dois Jorges, o verdadeiro, ele próprio e o falso, Numbros e durante os períodos insone, punha-se a escrever duas obras ao mesmo tempo: uma era a nova versão da História Universal da Infâmia, uma ficção cujo personagem principal era Numbros, onde contava do seu nascimento até sua morte, em 1973. A outra história era na verdade uma autobiografia, reafirmando sua condição de brasileiro, real, um cristão sem qualquer ligação com o Islã.

Após a revelação do segundo segredo, Jorge não releu mais os livros de Averróis e dedicou-se apenas às suas obras e quando já estavam quase conclusas, suas vistas já não divisavam mais os contornos das letras, as mãos tremiam e mal conseguia segurar a pena e neste instante descobriu o terceiro e último segredo do livro de Averróis: ele não era Numbros, tampouco Silva Reyes, era ele próprio Abu al-Walid Mohamed ibn Ahmad Mohamed ibn Ruchd que enquanto aguardava sua morte no exílio, escrevia sua última obra, dois livros, que se diziam trinta e dois, mas que eram todos os livros e nenhum e que estariam em todos os tempos e em tempo algum.

 

LM

17/03/2013

Tuesday, February 19, 2013

Diálogo possível entre quem vai e quem leva



— Porque tanto me procura? Se querer, acho fácil, fácil.
            — Nada!  Não faço nem nunca fiz. Um, dois, três. Valha-me Deus!
            — E foram muitas...
            — Mente.
            — Preciso mesmo... Pobre néscio.
            — E já não temos mais nada a tratar. Vou! Passe bem!
            — Cedo. Deixa contar. Lembra em fevereiro de 72, dia 18? Enfiou um grampinho de cabelo na tomada. Te safou a tensão 110, fosse 220... E 30 de março de 73, subiu na casa pra pegar a pandorga, escorregou e quase cai em cima do monte de lenha, lá tinha uma ponta esperando e teu pai nunca soube porque da goteira na sala. Teve também 15 de janeiro de 74, quando resolveu descer o morro da rua do Convento de bicicleta, nem preciso falar mais nada. Depois, em 78, achou o revólver do pai e se achou o próprio Bat Masterson. Em 26 de outubro de 84, comprou a primeira moto, não usava capacete, bebia mais da conta e sempre achava que a motoca não andava nada. Caiu pela primeira vez em 7 de novembro, depois em 29 de dezembro, 6 de janeiro e em 22 de março, nessa a moto se escangalhou e foi para o ferro velho.
            — Coisas de moleque. Quem não fez?
            — E as de adulto? Tenho uma lista com 19 situações de depois dos 30, sem falar no cigarro, bebida demais, exercício de menos, comida porcaria.
            — Ninguém é de ferro. Um ou outro pecadinho, coisa à toa.
            — Não julgo pecados, só busco, levo e entrego, mas você anda a minha procura.
            — Largue mão.
            — Nem era para ser agora, mas...
            — Qual é, tenho umas coisas pra acertar. Sabe, honesto, não quero deixar dívida.
            — Que piada. Já chega, vamos embora!
            — Fodeu! E o que tem do outro lado?
            — Excelente pergunta! Excelente! Pensei que não iria perguntar. Lá você será recepcionado por uma porção de anjos que vão tirar suas lembranças terrenas dando um relaxante banho em uma enorme banheira com água perfumada com pétalas de rosas. Normalmente são lindas anjas, ninfas com asas que te banham e depois elas o levam para conhecer o local. Claro, nem tudo é essa maravilha, você vai ter que falar com o guardião do portão celestial e ele vai decidir se pode ou não entrar. Normalmente ele é bem complacente e até hoje só uns poucos gatos pingados não puderam entrar: Judas, Cássio e Bruto, depois Hitler, Stalin e Nietzsche, além de Giordano Bruno, Sartre e Ulisses, acho que não lembro de mais nenhum. Uma vez aceito, poderá gozar de todos os prazeres que te foram negados nesta vida e passar a eternidade da melhor maneira que te aprouver, junto às anjas e ninfas.
            — Cara, que pira! Vam’bora duma vez!
            — Néscio.
            — Que?
            — É pra já...  

LM

Sunday, January 27, 2013

A mais linda das putas


As pessoas acreditam nas suas verdades, naquilo que imaginam ser a verdade, mas não sabem que a verdade não passa de uma puta, uma linda e sedutora puta, daquela que, a troco de qualquer ninharia, se entrega para o galã fazendo juras de amor eterno e de fidelidade canina. Pobre ingênuo, ela será somente dele até aparecer outro que lhe ofereça qualquer quinquilharia. Mesmo assim o conquistador exulta de prazer e, orgulhoso de sua conquista, se exibe e se vangloria de sua amada para todos e a defende aguerridamente dos outros pretendentes que afirmam serem os legítimos possuidores do amor, do corpo e da alma da volúvel dama.
Enquanto os contendores degladiam-se, insaciável, ela sai procurando novo amor, oferecendo-se para qualquer um que a queira possuir.

 N.A.: Para não me confundirem machista, aqueles que desejarem, poderão inverter os sexos dos personagens. Ficaria como segue abaixo, mas como não sou politicamente correto, a versão verdadeira é a primeira e quem quiser usar a segunda, que vá à merda.

As pessoas acreditam nas suas verdades, naquilo que imaginam ser a verdade, mas não sabem que a verdade não passa de um puto, um lindo e sedutor puto, daquele que, a troco de qualquer ninharia, se entrega para a dama fazendo juras de amor eterno e de fidelidade canina. Pobre ingênua, ele será somente dela até aparecer outra que lhe ofereça qualquer quinquilharia. Mesmo assim a conquistadora exulta de prazer e, orgulhosa de sua conquista, se exibe e se vangloria de seu amado para todas e o defende aguerridamente das outras pretendentes que afirmam serem as legítimas possuidoras do amor, do corpo e da alma do volúvel cavalheiro.
Enquanto as contendoras degladiam-se, insaciável, ele sai procurando novo amor, oferecendo-se para qualquer uma que o queira possuir.
 
LM

Listas sem explicação de coisas nem sempre explicáveis


Vivo com listas, essencialmente. Poderia fazer listas de quase tudo quanto sou e vivo. Algumas já as faço, por obrigação: compras, coisas para fazer durante o dia, locais para ir (do contrário, passo indiferente em frente aos lugares que devo parar), coisas que fiz durante o dia, coisas para fazer no dia seguinte. Algumas destas listas diárias têm sub-listas, divisões esquemáticas para simplificar a ordenação lógica. Nada nelas é importante, mas fazê-las me faz sentir mais importante.
Também faço listas de bens: livros, canetas, utensílios domésticos, roupas, amigos. O item livros dá origem a outras listas, como literatura, prosa, poesia, filosofia, estrangeiros, artes, inúteis; assim como os demais itens dos bens geram suas respectivas divisões lógicas. Se considerar aqueles que ainda me convidam para ir a suas casas, a lista dos amigos torna-se ínfima, aumenta um pouco se acrescentar os que aceitam os convites para virem à minha.
Umas são extensas, com centenas de itens, outras exíguas, contam com apenas um verbete. Eis alguns exemplos: 

Lista mínima de pequenos prazeres:
1.     Toalha de banho lavada e secada ao sol, sem passar (fica áspera).
2.     Uma hora a mais de sono.
3.     Uma hora a menos de serviço.
4.     Cerveja bem gelada à beira da praia às 18h45 em dezembro.
5.     Noites de outono.
6.     Pão francês com ovo frito e café preto às 8h30.
7.     Não trabalhar sábado nem domingo.
8.     Abrir um livro novo e sentir o cheiro das palavras.
9.     Abrir um livro usado e sentir o cheiro das memórias.
10.  Colher uma fruta e comê-la à sombra da árvore. 

Lista de coisas impossíveis, mas sonhadas:
1.     Ficar rico.
2.     Aprender a tocar violão.
3.     Entender as mulheres.
4.     Após uma noite de sonhos inquietantes, acordar metamorfoseado em um cara legal e popular.
5.     Ter uma adega subterrânea com vinhos daqueles que os entendidos dizem ao beber “Tem consistência do primeiro orvalho da primavera da Nova Zelândia e um leve toque de amoras cozidas no vapor de águas do degelo do Aconcágua...”.
6.     Morar em uma biblioteca tipo a de Washington.
7.     Poder viajar para qualquer lugar, a hora que quiser, levando quem eu quiser.

 Mulheres que gostaria de ter transado, mas jamais encostei sequer um dedo (e provavelmente nem se lembram mais de mim):
1.     Lourdes Maria. Era filha de uma vizinha quando eu tinha 10 anos, ela devia ter uns 14 ou 15. Nunca vi criatura mais linda. Foi a musa das minha primeiras masturbações. Ela mudou-se e nunca mais a vi. Ouvi rumores de que havia entrado para o ramo da prostituição.

2.     Eliane. Estudou comigo na sétima e oitava séries. Não era a garota mais bonita da turma, mas a única que falava comigo. Divina. Da turma, apenas ela fez faculdade, hoje é médica e mora no Canadá.

3.     Cátia. Foi minha vizinha no prédio para onde me mudei quando fui morar sozinho, aos 27 anos. Um pouco acima do peso, mas muito simpática, tinha um traseiro realmente notável, era esposa do síndico e corria o boato que dava para todos os moradores do prédio. Dispensável dizer que menos para mim.

4.      Arlineusa. O nome não é dos melhores, mas era encantadora. Trabalhava no bandejão onde eu almoçava quando trabalhei na Bosch. Sempre colocava um pedaço a mais de carne no meu prato. Nunca pude falar com ela, a fila me empurrava e só soube seu nome olhando o crachá. Um vez tentei espera-la na saída do restaurante, mas não a reconheci no meio das outras meninas que saiam no mesmo horário, sem o guarda-pó e touca brancos, não sabia da cor dos cabelos e não portavam os crachás. Deveria ter chamado pelo nome, não teriam duas, mais uma vez emudeci.  Não tive mais notícias dela.
Poderia acrescentar mais algumas garotas, como ainda não perdi as esperanças, ainda não cabem, por hora, nesta lista.
 

Lista de doenças das quais já fui acometido:
1.     Caxumba.
2.     Sarampo.
3.     Catapora.
4.     Icterícia, mas quando criança, falavam amarelão mesmo.
5.     Pedra no rim.
6.     Dor de ouvido.
7.     Dor de dente.
8.     Inflamação da vesícula.
9.     Diarreia.
10.  Febre amarela (odeio esta cor).
11.  Gonorreia.
12.  Virose (acho que todos os tipos).
13.  Pneumonia.
14.  Gripe (pelo menos umas 52 vezes).
15.  Unha encravada.
16.  Todo o tipo de dor de cabeça.
17.  Dor de cotovelo.
18.  Depressão.
19.  Surto psicótico.
20.  Transtorno obsessivo compulsivo.
21.  Transtorno bipolar.
22.  Leptospirose. 

Temo não resistir ao item 23 desta lista.

 LM

Saturday, January 05, 2013

Gosto de sangue na boca do lobo

 
Entre Natal e Ano Novo um abandono meio que toma conta da cidade, casas com jornais acumulando-se na varanda e um cachorro uivando de fome (sem ter os pedidos ouvidos, obriga-se a comer a ração com cara de serragem já úmida de dias chuvosos e rodeada de lesmas), uns comércios abertos outros fechados e a noite entra em período de trégua, sem as graças enfeitadas sob o luar. Os dias e noites se parecem, sem distinção de se domingo ou terça-feira. Ônibus preguiçosos amarelam a rua de hora em hora e na calçada semi-deserta um lobo solitário, caçador sanguinário, evita os clarumes dos postes. Ele aguça a visão, escuta o ar, fareja e então sente o cheiro indefectível de Cashmere Bouquet. Os sentidos estão alerta, o coração pulsa tenso e ele vai em direção à presa. Inocente sob a luz do último poste, não percebeu o perigo, o lobo já sente o gosto de sangue.
Maldição, esqueceu as palavras, tenta e lembra da mãe puxando o terço. Não, Aves-Marias não. A presa o viu. Passar reto? Ela se vira, está pronta para a fuga. Ave Maria cheia de graça. Ela tem rugas demais, mas é esguia. Bunda com enchimento? A caça arreganha as presas, faltam-lhe os dentes dos caninos para trás. Cara de cavalo, magra, um palmo mais alta do que o lobo solitário, ralos cabelos aloirados. Puta que o pariu, é um travesti.
— Oi gatinho.
— Oi.
— Quer se divertir um pouco? Tenho tudo que tu procura, tanto faz, tu que escolhe amor.
— Como assim tudo?
— Se quiser um cuzinho bem apertadinho e úmido, tá aqui. Agora se quiser ser comido bem gostosinho, tenho uma pica bem dura, não muito grossa, pra não machucar. Tu é tão novinho...
Escuta passos atrás. Não pode se virar, deve ser o resto da manada vindo em defesa da desgarrada. É preciso fugir, não poderá enfrentar a todos. Volta para a penumbra, aperta o passo e vira na próxima esquina. Finalmente um lugar seguro. Entra no Bar e Lanchonete Central e pede uma cerveja, um conhaque e um X-salada-egg no balcão. Disfarça, tira a carteira do bolso e conta o dinheiro para ter certeza de que vai poder pagar a conta. Não vai poder pedir outra cerveja, a garrafa já está quase no fim, é melhor deixar o restinho pra quando vier o X.  
Alguém senta na banqueta ao lado. É a, ou o cara de cavalo.
— Oi gatinho, saiu tão apressadinho. Paga um lanche?
— Só tenho grana pro meu.
— Tu é tão novinho, tão bonitinho, perdido na noite. A tia Rose cuida de tu. Deixa que eu pago pra tu, amorzinho.
Ela pediu outra cerveja, bem gelada, ele deixou de lado o restinho da sua garrafa e tomou de uma só vez um copo, desceu bem, toma rápido e sem fazer cara para mostrar que é durão.
Setenta e sete por cento dos ataques de lobos em caçadas resultam em fracasso. Já foram três esta noite. O lobo toma mais um copo de cerveja, sente o gosto do sangue.  
 

LM