Tuesday, February 19, 2013

Diálogo possível entre quem vai e quem leva



— Porque tanto me procura? Se querer, acho fácil, fácil.
            — Nada!  Não faço nem nunca fiz. Um, dois, três. Valha-me Deus!
            — E foram muitas...
            — Mente.
            — Preciso mesmo... Pobre néscio.
            — E já não temos mais nada a tratar. Vou! Passe bem!
            — Cedo. Deixa contar. Lembra em fevereiro de 72, dia 18? Enfiou um grampinho de cabelo na tomada. Te safou a tensão 110, fosse 220... E 30 de março de 73, subiu na casa pra pegar a pandorga, escorregou e quase cai em cima do monte de lenha, lá tinha uma ponta esperando e teu pai nunca soube porque da goteira na sala. Teve também 15 de janeiro de 74, quando resolveu descer o morro da rua do Convento de bicicleta, nem preciso falar mais nada. Depois, em 78, achou o revólver do pai e se achou o próprio Bat Masterson. Em 26 de outubro de 84, comprou a primeira moto, não usava capacete, bebia mais da conta e sempre achava que a motoca não andava nada. Caiu pela primeira vez em 7 de novembro, depois em 29 de dezembro, 6 de janeiro e em 22 de março, nessa a moto se escangalhou e foi para o ferro velho.
            — Coisas de moleque. Quem não fez?
            — E as de adulto? Tenho uma lista com 19 situações de depois dos 30, sem falar no cigarro, bebida demais, exercício de menos, comida porcaria.
            — Ninguém é de ferro. Um ou outro pecadinho, coisa à toa.
            — Não julgo pecados, só busco, levo e entrego, mas você anda a minha procura.
            — Largue mão.
            — Nem era para ser agora, mas...
            — Qual é, tenho umas coisas pra acertar. Sabe, honesto, não quero deixar dívida.
            — Que piada. Já chega, vamos embora!
            — Fodeu! E o que tem do outro lado?
            — Excelente pergunta! Excelente! Pensei que não iria perguntar. Lá você será recepcionado por uma porção de anjos que vão tirar suas lembranças terrenas dando um relaxante banho em uma enorme banheira com água perfumada com pétalas de rosas. Normalmente são lindas anjas, ninfas com asas que te banham e depois elas o levam para conhecer o local. Claro, nem tudo é essa maravilha, você vai ter que falar com o guardião do portão celestial e ele vai decidir se pode ou não entrar. Normalmente ele é bem complacente e até hoje só uns poucos gatos pingados não puderam entrar: Judas, Cássio e Bruto, depois Hitler, Stalin e Nietzsche, além de Giordano Bruno, Sartre e Ulisses, acho que não lembro de mais nenhum. Uma vez aceito, poderá gozar de todos os prazeres que te foram negados nesta vida e passar a eternidade da melhor maneira que te aprouver, junto às anjas e ninfas.
            — Cara, que pira! Vam’bora duma vez!
            — Néscio.
            — Que?
            — É pra já...  

LM