Tuesday, March 26, 2013

O hussardo e o pequinês


A velhota me flagrou saindo do motel. Caminhava com o pequinês. Quem ainda tem pequinês? Nada pior do que ser flagrado pela própria sogra, mas sou da estirpe do hussardos. Muitos canhões trovejarão antes de uma reles megera me arruinar. Plano elaborado, à execução.

            A Val está em casa da tia Mirtes, faz préstimos de boa sobrinha, ajudando na convalescença após cirurgia no coração. Ganho um dia para agir. O sogro na estrada, motorista. Estomago já começa a embrulhar. Até a morte, valoroso príncipe polaco!

            Chego em casa como se nada tivesse acontecido, comecinho da noite, três garrafas de espumante na sacola, geladinhas, bem do tipo que ela gosta, caixa de bombons, fico de shorts, camisa aberta. Pouca demora e ela aparece na cozinha, roupãozinho acolchoado uns quatro números a menos do que o necessário — e quente demais para nossa cidade —, pequinês no colo, olhinho apertado (dos dois) e batendo os pezinhos gorduchos nervosamente dentro das chinelas.

Esquece, esquece, lembra que tem apenas onze anos a mais do que você, bravo hussardo, tomou conhaque, amendoim, gemada pela manhã.

— Bonito hein? Muito bonito o papelão! Seu Leopoldo Blinizesky! A pobrezinha da Valdirene cuidando da tia enferma e o senhor ciscando com umas biscatinhas, como se fosse um gurizote. Não tem vergonha?

— Muita! Muita mesmo, mas é que... Não posso falar! Nada que eu diga justifica o que fiz, mas sei que a senhora sabe...

— Sei que o senhor não passa de um sem vergonha. É isso o que eu sei. O que teria mais para eu saber?

Curiosa, começou a beliscar a isca. E pegou mais um bombonzinho.

— A senhora sabe como a Val é. Não diga que ela também não a trata como um lixo. Eu vejo, todo mundo vê. Você não merece isto, ela é uma ingrata.

— E o que tem o jeito que ela me trata? Ela é meio geniosa mesmo, sempre achando que estou errada...

Hora da primeira garrafa. Duas taças bem cheinhas.         

— Desculpe, mas posso trata-la por você, né? Tão jovem, não combina chamar de sogra.

— Casei muito cedo...

— E com um troglodita, um bronco que não sabe o tesouro que tem em casa. Pai e filha, um tal e qual o outro. Mais uma taça?

— Ai, que assim fico tonta.

— O bombom ajuda, glicose. O licor de dentro é sem álcool. E não faz mal ficar só um pouquinho alegre, até te deixa mais bonita, ilumina teu sorriso.

Bebo no mesmo ritmo. Ela ri com os dentinhos amarelos manchados de chocolate. Ai, príncipes polacos, que me legaram o sangue nobre, estou diante da fera, se não me devora, me atira aos leões.

— Só mais uma tacinha... Seu malandro sem vergonha.

— Uma mulher com M maiúsculo, linda, nem aparenta a idade, parece irmã da Val, prendada, inteligente e olha que o bruto nem a deixou terminar os estudos. Seria uma doutora, ou artista.

— Eu queria ser advogada...

— E seria até mais, juíza. Agora está aí, ignorada pelo marido, espezinhada pela filha. Sabe, não gosto de falar mal deles, são teus parentes e casei com a Val achando que ela era diferente, mas os dois são muito egoístas, só pensam no próprio umbigo. Sei, eu sou um fraco, deveria me impor, exigir ser tratado como marido, ao invés de suportar calado os caprichos e os maus tratos. Um dois, quando vi cai em tentação. E me arrependo do fundo do meu coração, não pela Val, mas por ter cedido a uma biscatinha.  Chegasse ao menos aos seus pés eu já me dava por satisfeito. Não mereço perdão, vou-me embora para sempre, viro andarilho.

— Deixa disso rapaz, quem nunca pecou que atire a primeira pedra.

Abro a terceira garrafa, não vejo mais o pequinês, botou na caminha. Melhor assim, se ele testemunhasse teria de matá-lo. Cinto do roupãozinho afrouxando. Santo Stanisław Szczepanowski, não me abandone, ela deve estar usando uma daquelas calcinhas que mais se parecem cuecas e que ocupam meio varal. O cheiro do Cashmere Bouquet fica mais forte. Que meus antepassados de gloriosos feitos polacos me deem forças. Sou um hussardo.

 

LM

Sunday, March 17, 2013

Os livros de Averróis



Degredado, Averróis (nome ocidental), nascido Abu al-Walid Mohamed ibn Ahmad Mohamed ibn Ruchd, buscou na filosofia aristotélica a força moral para suportar sua desonra. Abatido, humilhado ante a derrota de suas teorias e por se saber insuficientemente longevo para ver sua obra reabilitada, empenhou-se em uma tarefa monumental em tamanho e em mistério. O investigativo Zadig teria registrado em sua relação de bibliotecas fantásticas, trinta e dois tomos, abençoados por Deus e escritos por Averróis, desta obra cujo título desconhecido, comentadores ousaram a denomina-la História Universal da Infâmia —título utilizado sete séculos depois, em uma obra pretenciosa de Borges.

Sabe-se que Averróis teria trabalhado com incomum determinação e mais incomum ainda inventividade nesta obra, embora não se saiba se a teria finalizado. Com do passar dos anos, muitos volumes se perderam ou foram parar em mãos de infiéis, mas quis a Providência que dos trinta e dois volumes descritos por Zadig, dois fossem destinados a Jorge Numbrus. Chegaram em Santiago nos caixotes remetidos de Córdoba, da casa da avó materna de Numbrus, cujas núpcias e, quiçá a própria vida, foram interrompidas ao som dos Cantos da Cabala. Além dos livros, vieram nos caixotes, diários, retratos, relíquias e alguma quantidade de ouro, que Numbros tratou logo de por a salvo de olhares cobiçosos.

Durante quinze anos Numbrus ignorou aqueles alfarrábios, conferindo-lhes, no máximo, a mesma importância dos objetos de gabinetes de curiosidades, até, após o 11 de setembro de 73, ver-se perseguido pelo que ainda não havia escrito e condenado pelo que não sabia que pensava. Entraram em sua casa e buscaram provas, evidências e confiscaram seus pertences, especialmente seus livros, menos os dois volumes: eram antiquados e inofensivos, mas principalmente, ininteligíveis aos verdugos do general. As economias da família, mais o pouco ouro herdado da avó de Córdoba, compraram a liberdade de Jorge Numbros. Restaram-lhe, além da vida, apenas os dois volumes de Averróis.

Conseguiu documentos novos, novo nome e, com a intenção de não afrontar os poderes constituídos, foi para o Brasil ensinar literatura na Universidade Metodista de São Paulo.

Exilado e solitário, Jorge Silva Reyes, nascido Numbrus, após anos tendo ao alcance fácil das suas mão, resolveu, nas terras brasileiras, decifrar e ler os dois volumes herdados da avó de Córdoba, mais para preencher seus intermináveis finais de semana sem companhia e ocupação do que por interesse histórico. Apurou seu titubeante latim, arranjou alguns dicionários e gramáticas daquela língua sagrada e dedicou sua ociosidade à empreitada. Primeiro ficou incrédulo quando identificou o nome de Averróis, depois estremeceu: tinha em suas mão algo maior do que sua compreensão intuía, algo secreto e sagrado. Sentiu-se quase como se estivesse olhando para a face de Deus. Assustado temeu a morte, temeu a cegueira, titubeava a cada nova página decifrada, se enchia de terror e de fascinação. Alguns que o viram por aqueles dias afirmam ter visto apenas loucura.

Quanto mais lia, mais ficava atormentado e emocionado. Escreveu em um caderno de notas que estava decifrando a escrita do deus, mas depois riscou estas palavras e escreveu em seguida que estava lendo o mundo, por fim resolveu retirar-se do convívio dos homens e para aqueles poucos que o viram partir disse: “Vou ler um livro.” e depois completou: “Vou percorrer um labirinto.” Depois disto se isolou e passou oito anos relendo os dois livros. Mortificava-se a cada releitura, maravilhava-se a cada palavra reencontrada, a cada novo percorrer por expressões que julgava já ter dominado e finalmente descobriu o primeiro segredo: a cada releitura os livros se tornavam outros livros, nunca eram os mesmos da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma outra leitura. Na décima segunda leitura, Averróis enumerava dezesseis predicados de Deus, na décima oitava, os dezesseis predicados de Deus são refutados por serem atributos mundanos, impróprios para serem atribuídos ao divino. Na segunda leitura o tempo é circular, para tornar-se linear na oitava, cíclico na décima terceira e fragmentado na vigésima.

Numbros mal terminava uma leitura e já regressava ao início novamente, descobriu, nas páginas 297 a 325 do tomo primeiro, como foi o nascimento de Cristo, mas nestas mesmas páginas, em leituras posteriores, acompanhou a descrição da dissecação do cadáver de um burro, o cálculo da distância entre Jerusalém e Roma, a partir da observação das estrelas e duas considerações sobre a existência ou não de Deus. Era como se estivesse lendo todos os livros já escritos, não apenas por Averróis, mas todos os escritores, suas teses, antíteses e sínteses e os desdobramentos possíveis daquilo que estava escrito e quando já não sabia mais quantas vezes havia relido os volumes, nas últimas páginas do segundo tomo, encontrou as seguintes palavras:

            Iluminado pelo Altíssimo e seguindo os ensinamentos do Profeta, no ano 1410 da Hégira haverá uma nova revelação. Sob escombros do tempo, além dos vastos mares, toda a história do tempo será contada, todas as verdades dos doutores aparecerão, mas também todas as mentiras; a cura das doenças será ensinada, mas novos males nascerão incuráveis; os mistérios da magia serão decifrados, para serem esmagados pelo saber da ciência e esta ser derrubada pela fé; uma nova era para os infiéis nascerá e morrerá antes de chegar à sua metade; serão dias de incerteza e de clamor e um estrangeiro sem descendentes e sem credo portará as últimas palavras de Alá para os homens e as primeiras dos homens para a morte e este estrangeiro receberá o dom da palavra e ele será o Messias que conduzirá as pessoas de fé ao paraíso.

Este seria o segundo segredo dos livros de Averróis, Numbrus sentiu o peso do mundo em suas costas e chorou. Queria apenas poder viver e morrer como qualquer um, não se sentia preparado para ser o Messias. Pensou em como poderia enganar a Providência e concebeu um estratagema: o predestinado para portar as palavras de Ala era justamente Jorge Numbros, ele não era Jorge Numbrus, era apenas Jorge Silva Reyes, um brasileiro que leciona literatura espanhola e Jorge Numbros não existe, era apenas um personagem fictício, criado para povoar uma narrativa inventada por uma mente confusa, assim como aqueles livros não vieram de nenhuma avó de Córdoba, foram comprados em algum sebo e não são autênticos, são datados de 1201 e Averróis teria morrido em 1198. Jorge Silva Reyes passou um ano inteiro acrescentando detalhes, retirando lembranças, lembrando datas, para provar a inexistência de Jorge Numbros e afirmar apenas a sua existência. Durante o sono, pouco mais do que alguns instantes nos intervalos da eterna vigília, ele sonhava os dois Jorges, o verdadeiro, ele próprio e o falso, Numbros e durante os períodos insone, punha-se a escrever duas obras ao mesmo tempo: uma era a nova versão da História Universal da Infâmia, uma ficção cujo personagem principal era Numbros, onde contava do seu nascimento até sua morte, em 1973. A outra história era na verdade uma autobiografia, reafirmando sua condição de brasileiro, real, um cristão sem qualquer ligação com o Islã.

Após a revelação do segundo segredo, Jorge não releu mais os livros de Averróis e dedicou-se apenas às suas obras e quando já estavam quase conclusas, suas vistas já não divisavam mais os contornos das letras, as mãos tremiam e mal conseguia segurar a pena e neste instante descobriu o terceiro e último segredo do livro de Averróis: ele não era Numbros, tampouco Silva Reyes, era ele próprio Abu al-Walid Mohamed ibn Ahmad Mohamed ibn Ruchd que enquanto aguardava sua morte no exílio, escrevia sua última obra, dois livros, que se diziam trinta e dois, mas que eram todos os livros e nenhum e que estariam em todos os tempos e em tempo algum.

 

LM

17/03/2013