Gastou os últimos
tostões com algo a não ser usado, posto que para nada servia, logo após andou com passos
determinados, mirando um lugar a chegar, lugar que existia apenas no futuro.
Batia com força os pés na dureza da calçada, como que na esperança de encontrar
pontos de menor resistência: queria mesmo era poder liquefazer o concreto e
entrar nos íntimos da Terra, mas seus sapatos não eram boas ferramentas, eram
antes, bússolas desorientadas. Botou as mãos no bolso e sentiu a resistência do
objeto inútil, pensou em por sobre a mesa da sala, ou no umbral da entrada,
isto lhe impôs o terror, não tinha umbral em sua porta e sentiu a boca se abrir
para uma oração: Credo in umum Deum. Patrem
omnipoténtem, Factórem cæli et terræ, Visibílium ómnium et invisibílium...
— Você me parece
ser das criaturas visíveis. Ainda que pálido, quase translúcido. Ou seria
embalsamado? Tem andado muito aflito ultimamente, deveria relaxar. Veja, treme
como se diante...
Era
ela! Sempre ela. Estava seguindo-o? Há quanto tempo? Apertou o objeto inútil
entre os dedos, a força da matéria dura se opondo à flacidez dos seus dedos deu-lhe
algo parecido com coragem, uma ilusão de poder sobre a natureza. Afinal ela
nunca o abandonara, nunca esquecera dele, esboçou um sorriso que logo se perdeu
na frieza dos lábios. Queria apenas beijá-la, mas isto seria perde-la para
sempre. Resolveu falar-lhe:
— Sabe, dizem que
uma palavra pode se tornar infinita. O imperador da China, possuidor das coisas
e das gentes, quis também possuir as palavras, que são a matéria de todas as
coisas, e mandou seus sábios escreverem a enciclopédia Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos. Ali descobri minhas essências.
Antes pensei ser da classe dos animais fabulosos, entretanto o tempo vivido
entre homens e mulheres de pouca lucidez, metamorfoseou-me em um animal que se agitava
como louco. Quando a sanidade pareceu imperar, senti-me como se apenas fosse um
desenho feito com um finíssimo pincel de pelo de camelo, quase uma fantasia,
trouxe-me à realidade o dia em que quebrei o vaso. Estou preso a um livro,
somos versículos, ou palavras, ou letras de um livro mágico. Serei infinito
enquanto for estas palavras ou letras...
— Anda lendo
Bor...
— Eu sei que você
sabe do que estou falando, sempre falei apenas para você, sempre escrevi apenas
para você e continuarei fazendo. Sabe o que leio, pois sabe o que escrevo. Você
é minha única leitora, aquela que me lê até acabarem-se as minhas matérias,
aquela que escreve seus comentários em minhas margens, que ficarão marcadas com
teus sinais para sempre. Seria eu o mais miserável dos homens se não fosse por
ti. Te amo e te odeio, mas não tenho bondades em meu coração, apenas
sentimentos humanos e saber que só escrevo para ti não me é penoso, porque sei que
sou teu único escritor, você não lê nada além de mim e além do que escrevo. É
mais miserável ainda do que eu, presa a este insignificante escriba, este
copiador de fantasmas. Tenho pena de você, mais ainda do que poderia ter de mim
mesmo e isto me fortalece, saber alguém mais miserável do que eu me torna
superior em algo. E afinal, quando me lê, também estou lendo você.
Se olharam por um
tempo infinito, ele procurou uma ponta de lágrima brotando nos olhos dela, enquanto
segurava o objeto inútil.
— Agora tenho
arte. Ainda não sei fazer objetos artísticos, apenas trago a arte para usar nos
meus escritos. Não vou pedir desculpas, não sei fazer isto, continuarei apenas
escrevendo, para que leia, para que tenha o que ler, enquanto existirem
palavras em mim.
— Não se afaste
muito, é que de longe você parece mosca.
LM
02/06/2013