Sunday, June 02, 2013

A Leitora


Gastou os últimos tostões com algo a não ser usado, posto que para nada  servia, logo após andou com passos determinados, mirando um lugar a chegar, lugar que existia apenas no futuro. Batia com força os pés na dureza da calçada, como que na esperança de encontrar pontos de menor resistência: queria mesmo era poder liquefazer o concreto e entrar nos íntimos da Terra, mas seus sapatos não eram boas ferramentas, eram antes, bússolas desorientadas. Botou as mãos no bolso e sentiu a resistência do objeto inútil, pensou em por sobre a mesa da sala, ou no umbral da entrada, isto lhe impôs o terror, não tinha umbral em sua porta e sentiu a boca se abrir para uma oração: Credo in umum Deum. Patrem omnipoténtem, Factórem cæli et terræ, Visibílium ómnium et invisibílium...  

— Você me parece ser das criaturas visíveis. Ainda que pálido, quase translúcido. Ou seria embalsamado? Tem andado muito aflito ultimamente, deveria relaxar. Veja, treme como se diante...

            Era ela! Sempre ela. Estava seguindo-o? Há quanto tempo? Apertou o objeto inútil entre os dedos, a força da matéria dura se opondo à flacidez dos seus dedos deu-lhe algo parecido com coragem, uma ilusão de poder sobre a natureza. Afinal ela nunca o abandonara, nunca esquecera dele, esboçou um sorriso que logo se perdeu na frieza dos lábios. Queria apenas beijá-la, mas isto seria perde-la para sempre. Resolveu falar-lhe:

— Sabe, dizem que uma palavra pode se tornar infinita. O imperador da China, possuidor das coisas e das gentes, quis também possuir as palavras, que são a matéria de todas as coisas, e mandou seus sábios escreverem a enciclopédia Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos. Ali descobri minhas essências. Antes pensei ser da classe dos animais fabulosos, entretanto o tempo vivido entre homens e mulheres de pouca lucidez, metamorfoseou-me em um animal que se agitava como louco. Quando a sanidade pareceu imperar, senti-me como se apenas fosse um desenho feito com um finíssimo pincel de pelo de camelo, quase uma fantasia, trouxe-me à realidade o dia em que quebrei o vaso. Estou preso a um livro, somos versículos, ou palavras, ou letras de um livro mágico. Serei infinito enquanto for estas palavras ou letras...

— Anda lendo Bor...

— Eu sei que você sabe do que estou falando, sempre falei apenas para você, sempre escrevi apenas para você e continuarei fazendo. Sabe o que leio, pois sabe o que escrevo. Você é minha única leitora, aquela que me lê até acabarem-se as minhas matérias, aquela que escreve seus comentários em minhas margens, que ficarão marcadas com teus sinais para sempre. Seria eu o mais miserável dos homens se não fosse por ti. Te amo e te odeio, mas não tenho bondades em meu coração, apenas sentimentos humanos e saber que só escrevo para ti não me é penoso, porque sei que sou teu único escritor, você não lê nada além de mim e além do que escrevo. É mais miserável ainda do que eu, presa a este insignificante escriba, este copiador de fantasmas. Tenho pena de você, mais ainda do que poderia ter de mim mesmo e isto me fortalece, saber alguém mais miserável do que eu me torna superior em algo. E afinal, quando me lê, também estou lendo você.

Se olharam por um tempo infinito, ele procurou uma ponta de lágrima brotando nos olhos dela, enquanto segurava o objeto inútil.

— Agora tenho arte. Ainda não sei fazer objetos artísticos, apenas trago a arte para usar nos meus escritos. Não vou pedir desculpas, não sei fazer isto, continuarei apenas escrevendo, para que leia, para que tenha o que ler, enquanto existirem palavras em mim.

— Não se afaste muito, é que de longe você parece mosca.

 

LM

02/06/2013