Sunday, July 21, 2013

Uma história sobre heróis e tumbas

Naqueles tempos ainda se falava em dragões, embora de maneira incrédula, menos para Ezdreot, ele acreditava na existência destes seres fabulosos e ansiava por poder travar a derradeira batalha, em por fim na guerra entre homens e bestas. Ao modo do manchego, mesmo sem saber da sua existência, Ezdreot armou-se à farta e partiu para o que acreditava ser seu destino. Vagava por campos e desertos bradando a maça, sibilando a espada, arremessando a lança: treinava corpo e mente enquanto buscava seu oponente.
            Os cronistas relatam que sua busca durou sete anos e quatro meses, quando chegou ao patamar do monte Andur. Ao avistar a eterna fumaça a escapar do cume da montanha, o herói não teve dúvida, aquele gigante era o maior de todos os dragões. Subiu o quanto pode as costa escarpada e sem demora tratou de desferir os mais potentes golpes no dorso do terrível gigante adormecido.
            O monte Andur realmente estava adormecido, sua última erupção havia ocorrido há duzentos anos e, com o passar dos anos, camponeses se fixaram nas suas proximidades para aproveitarem a vitalidade do solo vulcânico no cultivo de certas plantas. A cada nova colheita, mais confiantes ficavam e mais camponeses se estabeleciam, até que a vila de Ogmynt já contava com centenas de moradores. Mais ao norte, na parte ocidental do monte Andur, um revolto mar de águas geladas sustinha a vila com pescados e algas.
            A rotina de Ogmynt foi abalada quando o primeiro campônio encontrou o herói a desferir violentos golpes contra a montanha, enquanto praguejava e jogava maldições contra seu oponente. Primeiro o susto, depois a curiosidade, por último o riso. Logo o herói passou a ser alvo de visitas, era uma espécie de recreação para o ogmyntenses organizarem pequenas excursões para assistirem à batalha entre um maluco e um vulcão adormecido. Ao cabo de um tempo a novidade tornou-se repetitiva e enfadonha e o interesse dos camponeses arrefeceu-se, mesmo assim Ezdreot continuou sua luta. Passaram-se dias, semanas, meses, anos e quando suas armas já não passavam de cotocos inúteis, ele improvisou lascas de pedras, galhos e qualquer coisa que pudesse ferir o gigante. Alguns moradores da vila se compadeceram de tamanha insanidade e levavam água restos de comida e pão seco para o incansável herói e assim se passaram vinte e seis anos.
            Os anos da inútil batalha produziram um sulco ao longo da encosta do monte. Olhando-se da vila Ogmynt era possível perceber um corte diagonal descendo pelo costado da montanha até os rochedos próximos à rebentação do mar. Era admirável como apenas um homem tivesse produzido aquele rasgo na paisagem do vulcão, embora a admiração se desse mais por conta da loucura do guerreiro do que pela grandiosidade do trabalho. Os anos também desgastaram nosso herói, que mal consegui segurar suas armas, a visão falhava e suas pernas tremulavam ante o peso do esquálido corpo. Quando deu o último golpe que seu braço poderia aguentar, ele percebeu que não encontraria a glória, que não seria chamado de herói, nem teria seus feitos cantado por bardos. Um lampejo de lucides o fez ver que nada mais havia feito nos últimos trinta e três anos do que consumir-se em um trabalho inútil. Então ele deitou no chão duro e teve vontade de chorar.
            Um dia, porém, a natureza iria destinar um capítulo especial à história daquelas pessoas e o vulcão despertou. Aos estrondosos trovões sucederam milhares de pedras incandescentes sendo arremessadas com tremenda violência. Uma negra fumaça fez o sol desaparecer, contam os historiadores, por vários meses e o que todos mais temiam aconteceu: um rio de lava precipitou montanha abaixo. O destino de Ogmynt era infernal. Descendo o rio de lava a uma velocidade assombrosa, não daria tempo para fuga e todos estavam condenados ao suplício do fogo. Mas o improvável aconteceu: a lava encontrou o sulco produzido pelo guerreiro solitário e desviou seu curso, indo direto para o mar. Fogo e água travaram uma assustadora batalha, um virando rochedo, outro vapor e no meio desta guerra de titãs, o herói desapareceu consumido pelas forças da natureza, sem direito sequer a uma tumba.
            Passada a cólera do vulcão e intacta a vila, a não ser pelas cinzas, os habitantes de Ogmynt sabiam que deveriam organizar festivais para honrar a memória de quem salvou suas vidas e suas casas. Agora, todo viajante que por ali passa, pode ler em placas fixadas em monumentos ou ouvir em poemas cantados nas bocas das crianças, a história de heroísmo do povo de Ogmynt, que pressentindo o perigo resolveram desafiar a natureza e mudar a geografia de uma montanha inteira apenas com a força dos valorosos braços de seus filhos e com sua determinação implacável.

LM