Sunday, August 10, 2014

O fazedor de nós

N.A.: Contei esta história enquanto desembaraçava os milhares de nós do cabelo da minha filha. Não é lá uma grande história, mas ela parou de reclamar dos puxões da escova e poderá ajudar outros pais, inábeis com as madeixas, a pentearem suas filhinhas.
Em tempo, ao termino da história, o cabelo ficou completamente livre de nós e, modéstia à parte, muito lindo.

O fazedor de nós
Em um vilarejo particularmente agradável, vivia Luana. Ela era uma jovenzinha muito linda e simpática e todos que a conheciam gostavam muito dela. 
Todas as noites, Luana penteava seus longos cabelos, mas isto não impedia de amanhecer com milhares de nozinhos a embaraçar sua cabeleira. Ela acordava com um penteado armado, mais parecendo a juba de um leão. E todas as manhãs levava um tempão passando centenas de vezes a escova em seus cabelos até tirar todos os nós.
Cansada de tanto trabalho com seus cabelos, Luana procurou ajuda. Foi a cabelereiros, que lhe davam cremes. Benzedeiras que lhe davam ervas para chás.  Um boticário lhe deu até uma tesoura.  Nenhuma das receitas de cabelereiros ou benzedeiras funcionou e a tesoura do boticário ainda não era uma opção.
Até que um dia, ela ouviu alguém falar que tantos nós só poderia ser obra de um duende fazedor de nós. Buscou mais informação sobre duendes e descobriu um tipo de armadilha para duendes. Eram umas gaiolinhas feitas com galhos retirados da floresta encantada e era só colocar uma mecha de cabelo dentro da gaiolinha, deixa-la sobre o travesseiro, bem perto do próprio cabelo e dormir. Luana armou logo duas gaiolinhas.
Ao amanhecer, surpresa: havia mesmo um homenzinho resmungão preso em uma das gaiolinhas.
—Então era você! —falou Luana ao prisioneiro.
—Por favor! Tire-me daqui! — Falou suplicante o duende.
—Eu só solto se você prometer que não vai mais fazer nós nos meus cabelos.
—Não posso prometer isto, ele acaba comigo.
—Ele quem? —Quis saber Luana.
—Ele? Eu falei ele? Não, não, devo ter me confundido.
—Eu ouvi muito bem, pode me contar direitinho essa história, senão chamo meu gatinho, ele vai adorar brincar com você.
Luana não tinha um gato, mas o duende não sabia e ficou apavorado com a possibilidade de virar um novelo de lã nas garras de tão perigoso animal.
—Além do mais, eu prometo que se você me contar, não deixarei ninguém fazer mal a você.
Mais aliviado com a promessa de Luana, o pequeno duende contou sua história. Ele recebeu ordens do Lorde Grimm, um poderoso mágico que vivia na Floresta Negra, para todas as noites, fazer quantos nós pudesse nos cabelos de Luana.  Todos no Mundo Mágico temiam Lorde Grimm, ele era muito poderoso e podia se transformar em qualquer coisa. O duende não teve outra escolha. Luana quis saber por que o mago havia dado esta ordem, mas o duende não sabia. Ele só obedecia.
—Pois bem, vamos até a Floresta Negra e eu vou ter uma conversa com esse tal lorde. Ele vai ouvir poucas e boas.
Luana convenceu o duende a leva-la até o castelo do Lorde Grimm, não sem antes reforçar a promessa de que não deixaria ninguém fazer mal a ele.
Chegando ao castelo, Luana, que não tinha medo de nada, foi logo entrando. Os criados correram se esconder e ela ficou só, em um grande salão. Ela chamou, chamou e depois de alguns minutos apareceu um lindo jovem.
—Quero falar com Lorde Grimm, e agora. —Ordenou Luana.
—Pois não, minha querida Luana, sou eu mesmo.
—Ah! Então você sabe quem eu sou e não sou sua querida coisa nenhuma. Quero saber que história é essa de obrigar aquele pobre duende a encher meus cabelos de nós. Graças a essa sua brincadeira de mau gosto, tenho de passar horas escovando meus cabelos todas as manhãs.
—Me desculpe. Prometo que isto não vai mais acontecer. — Ele parecia arrependido e muito triste.
—É bom mesmo! Mas afinal, por que você fazia esta maldade? Quis saber Luana, antes de ir embora.
—Vou lhe contar tudo. Depois irei embora para sempre, irei para as montanhas, onde viverei solitário.
Ele contou que um dia passeava pelo bosque, quando viu Luana penteando seus lindos cabelos. A visão de tão bela jovem encheu seu coração de alegria e ele ficou imediatamente apaixonado. Sabendo que todos o temiam e receoso de que a jovem não quisesse saber de conversa com tão mal falado mago, ele bolou um plano: mandou o duende dar os nós, todas as noites e pela manhã, Lorde Grimm se transformava na escova utilizada por Luana. Assim podia ficar horas e horas acariciando seus cabelos e sentindo seu doce perfume.
Lorde Grimm parecia estar falando com sinceridade. Isto fez Luana esquecer que estava zangada e ficou enternecida com a história.
Bem, ele era um belo rapaz e no final das contas, acabou conquistando o coração de Luana. E isto foi motivo de alegria para todos, pois ela ensinou a ele, que não se deve amedrontar os mais fracos. Lorde Grimm aprendeu a tratar todos com respeito e de temido, passou a ser admirado. Então eles se casaram e viveram felizes para sempre.


LM

Sunday, June 15, 2014

Um diálogo possível entre amantes

— Quase esqueço da descarga.
— Baixou a tampa?
— Acho...
— Vai lá. Não podemos deixar vestígio, ele é tão bom, morreria se alguma coisa o magoasse.
— Não por menos! Minha patroa também é uma santa.
— Uma anta! Pra te aturar...
— Fala assim não.
— Tal e qual.
— Agora que me usou...
— Tá bom! Você até que é bem gostosinho, um diabinho, mas só na cama. Só assim me interessa.
— Gosto tanto de ti. Sua ingrata.
— Gosta uma ova. E se gosta, desgosta, não sou mulher pra você.
— Mas a gente se dá tão bem.
— Só na cama, já disse. E pára de lenga-lenga, tu tem tua família, eu a minha, não complica o que tá bom.
— Que tal um churrasco lá em casa. Leva ele e as crianças, os pequenos se dão bem, iam brincar um montão.
— Deus me livre! Tá vendo, tu não tem ideia que se aproveite.
— Nem é assim. Pensa, quanto mais naturalmente agirmos, melhor será e vocês já foram lá em casa, a Ana até pergunta quando vamos marcar algo.
— É, talvez. O Jorge também já perguntou por que não fizemos mais nada.
— Então... Assim a gente se vê mais um pouquinho e ainda fazemos um agrado em casa.
— Talvez não esteja tão errado.
— Já vou ligar pra Ana, foi ao mercado. Mando comprar umas chuletas.
— Ué? Não atendeu...
— Vou ligar pro Jorge, ele foi levar o carro pra trocar o óleo.

— Também não atende...

LM

Sunday, May 11, 2014

José Francisco Traini, o reescritor dos clássicos

Miguel de Cervantes escreveu uma carta a Alonso Fernández  de Avellaneda, o obscuro escritor da outra segunda parte do Ingenioso Hidalgo Dom Quijote de La Mancha, mas a Providência fez com que a missiva se perdesse entre Madri  e Tarragona. Segundo a Cosmografia de Joannes Turpini (inquestionável escritor da lendária Historia de vita Caroli Magni et Rolandi), a carta teria sido desviada do seu destino por um dos tantos desafetos de Cervantes, ex soldados ou mesmo literatos do calibre de Lope de Vega, obscurecidos pelo Cavaleiro da Triste Figura, para ser usada contra ele, pois trazia vilipêndios e ameaças à vida do impostor de Tordesilhas. Continuando com sua trajetória marcada por inusual sucessão de ironias, a carta endereçada a Avellaneda acabou por parar nas mão de um incrédulo  Pierre Menard. Incrédulo por não crer na autenticidade do documento encontrado dentro de uma réplica do Codex Regius islandês, comprada de um livreiro em Paris.
Menard, ao que tudo indica, guardou a carta, tida como falsa, por vinte anos, até o dia em que leu nos  Prologos Con Un Prologo de Prologos, de Borges,  o texto Miguel de Cervantes, Novelas Exemplares  e percebeu que a aparente ausência dos traços da escrita de Cervantes no manuscrito, poderiam ser explicados pela dupla personalidade construída entre a espada do soldado e a pena do escritor. A carta havia sido escrita pelo soldado. A partir daquele instante, Menard começou a conceber sua obra, inacabada, impossível até. Menard abandonou sua vida para viver a de Cervantes, ser Cervantes, escrever, não semelhante, mas idêntico, como ele escreveu, sem, no entanto, fazer uma mera cópia. Impossível, assim como é impossível ser original tendo lido, Homero, Shakespeare, Dante e Szép Ernö.
Estes parágrafos sobre a carta de Cervantes e a empreitada utópica de Menard, ambos conhecidos da maioria dos leitores de literatura latina, servem como prólogo para alguns fatos dignos de nota da história do bibliotecário José Francisco Traini, a quem travei conhecimento por conta de certas pesquisas acadêmicas que desenvolvi há alguns anos.
 Traini, como o manchego, afundou-se na leitura de apenas um tipo de livro. Exercia sua profissão em uma biblioteca, não como as outras, mas uma especializada em resumos de obras literárias, oferecidos aos estudantes de cursinhos preparatórios para vestibulares e concursos. Lia tudo quanto podia da biblioteca e após tanta leitura resumida, fez fé de serem aquelas diminutas obras, como sendo as versões inteiras e pôs-se a imaginar como poderiam ser se completadas fossem, caso seus autores não fossem tão preguiçosos. Não saberia precisar como se deu, mas o único livro completo que lera, foi a versão tarragonesa do Quixote.  Lida a versão compacta da história do Cavaleiro da Triste Figura e o outro Quixote, que não de Cervantes, Traini, tal qual Menard, pôs-se em intento de reescrever o Quixote, mas em sua imaginação, o que Cervantes não teria escrito.
Pouco versado em espanhol antigo, menos ainda em longas narrativas, mesmo assim Traini concluiu sua primeira obra, intitulada Os detalhes do Dom Quijote que Cervantes não escreveu.  Desnecessário falar que Traini não obteve o mesmo resultado obtido por Menard, muito menos ter emulado a de Cervantes mesmo assim, não obstante às críticas pouco lisonjeiras, a obra trainesca obteve boa aceitação do público, incentivando-o a nova obra, A divina comédia que Dante pensou que, igualmente à publicação anterior, alcançou certa projeção comercial.
Estudei algumas das publicações de Traini e, para escrever um capítulo de minha tese de Pós Graduação em História da Literatura, entrevistei o autor e percebi o equivoco que os leitores deste engenhoso escrevedor de livros já escritos andaram e andam a cometer: eles tomam por obra complementar, como se um resumo estendido, ou coisa que o valha, a obra que Traini imagina ser a obra que os indolentes autores não escreveram. Aconteceu até de, aprofundando minha pesquisa, encontrar um leitor que comparou as reescritas de José Francisco Traini ao Ulisses de Joyce: “São versões traduzidas para nossa linguagem, nossas referências culturais, ultrapassando uma transversalidade temporal, para se assentarem como invectivas à modorra tradicionalista.” Asseverou o entusiasmado leitor.
Apresentei a Traini uma cópia da carte de Cervantes a Avellaneda, bem como de exemplares das obras (não dos resumos) e tentei demostrar como o que ele estava fazendo era um auto-engano que acabara por iludir muitos (senão todos) dos seus leitores. Senti-me o próprio cura tentando demostrar a Dom Quixote como a cavalaria andante não passava de basófia e juro como não pude deixar de associar aquele bibliotecário cinquentão, rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto e, possivelmente por obra da minha imaginação, madrugador e amigo da caça, ao próprio fidalgo Quijada, ou Quesada. Invoquei os mais ponderados argumentos, citei diversos autores e filósofos e ele apenas escutava-me, passivo. Por fim tomou a palavra.
“Caro estudante, estimo muito que me tenha tomado por objeto de estudo em um de seus mui qualificados capítulos da sua, certamente, magistral exegese da nossa literatura, entretanto devo lhe questionar: o que prova esta carta? O que acrescenta às minhas obras estes tomos de grossos volumes? Se já foram escritos, como o senhor o diz, há centenas de anos, escritos estão, e minhas obras, já saídas do prelo, igualmente, acabadas estão. Não quero desmerecer suas pesquisas, mas quem lê minha obra estará lendo um Dom Quixote errado? Qual é o Ulisses certo? E o inferno, qual arde mais, o meu ou o de Dante? A ordem cronológica é o que basta para qualificar uma obra? A que primeiro foi feita será invariavelmente a certa, ou melhor? E se fossem encontrados manuscritos datados de dois mil anos, dando conta de uma história, se não igual, ao menos semelhante a do Dom Quixote? Esta seria a versão correta? E por fim, caro estudante, quem é mais impostor: quem finge escrever a realidade, ou quem finge acreditar na ficção?”

Não alonguei mais minhas argumentações, agradeci a solicitude e voltei para meus estudos. Fui reprovado pela banca na apresentação do meu trabalho final da pós-graduação. 

LM

Sunday, March 23, 2014

O caçador

Estava recostado em sua poltrona de couro vermelha, na mão um copo de Bourbon, gostava de admirar seus troféus de caça enquanto bebia. Cabeças de leão, tigre, elefante, rinoceronte, alce, urso, empalhados crocodilo, condor, águia, sucuri, onça além de muitas armas. Teria pensado em ler alguma coisa, mas o sono o desestimulara, ficaria bebendo mais alguns minutos. Lá fora um temporal, estava contente, também gostava de ficar ouvindo a chuva e o vento fustigando a sólida casa, sentia-se protegido de tudo. As luzes apagaram, era normal quando ventava. Ouviu um som, umas batidas na janela, como se alguém quisesse entrar. Devia ser apenas um galho açoitado pelo vento. As batidas continuaram, lembrou-se do corvo de Poe, do tempo de estudante, quando acreditava em amores e ainda lia poesia, mas era só um galho, nada mais do que um clichê. Um que outro relâmpago ameaçava iluminar a sala, lembrou de quando começou a caçar, de como se sentiu poderoso matando e como era fácil matar, Encheu mais uma vez o copo, outro relâmpago, mas desta vez não iluminou apenas o imobilismo, teve a impressão de ter visto alguns animais se moverem. Quase teve certeza de ter visto o tigre abrir a boca e o elefante erguer a tromba. Não sentia medo, mesmo assim ficou incomodado com a demora em retornar a energia. Acendeu uma vela e enquanto riscava o fósforo pode ver o crocodilo mover a cabeça. A batida na janela recomeçara mais forte, resolveu ver o que era e foi iluminando o caminho com a vela, quando abriu a janela um imenso corvo, de uma negrura vertiginosa, voou para dentro, indo pousar sobre a cabeça do tigre. Era apenas mais um clichê, não se deixaria abalar. Voltou para o conforto da poltrona, conferiu sua faca na bainha e a pistola no coldre e encheu mais um copo. Um velho corvo procurando abrigo, nada de nevermore. Recostou-se pesadamente, os animais voltaram a exibir movimentos, sacou a pistola e atirou, atirou, atirou, não mais como o frio caçador. Os disparos acertaram os animais mortos, a cabeça do alce caiu da parede e o condor teve uma das patas arrancadas, uma mão de macaco cai no seu ombro. Pega a faca e desfere violento golpe que sem ter inimigo a acertar, perfura o próprio braço. Sangra em profusão, procura algo para estancar, levanta e escorrega no chão viscoso. Fica parado um tempo indefinido, tudo não passa de alucinações, tem de manter a calma, o ferimento continua a sangrar e ainda deitado consegue fazer uma atadura com um pedaço de cortina, enrola como pode o braço lacerado e tenta se levantar, não consegue. Pela primeira vez sente o medo verdadeiro, estava vulnerável, ferido, imobilizado, desarmado. Manteria a calma, olhou ao redor e sentiu um arrepio percorrer lhe o corpo, o corvo continuava sobre a cabeça do tigre. Ou era alucinação provocada pela escuridão, pela bebida, a perda de sangue? A alucinação se corporifica, o corvo voa em sua direção e pousa sobre seu peito, era maior do que imaginava, tenta gritar, grita, mas a ave não se move. O corvo perfura com o bico o peito do caçador, até atingir o coração.
               

LM 

Monday, March 10, 2014

Vigília

Na primeira noite adormeci com a caneta entre os dedos e algumas folhas no peito. Sonhei que escrevia o silêncio. Quando acordei encontrei as folhas em branco.
Na segunda noite, antes de pegar no sono, escrevi no alto de uma das páginas a palavra sonho, adormeci e sonhei que escrevia a minha própria morte. Desperto, vi uma palavra cuja pronuncia ignoro e de significado desconhecido. Estava escrita logo abaixo da palavra sonho. Senti um inexplicável temor por estar diante de uma palavra indecifrável, mas temi ainda mais descobrir seu significado.    
            Na terceira noite, vacilante, peguei a folha das noites anteriores e antes de adormecer tentei listar mentalmente minhas virtudes para, em seguida, coloca-las no papel. Perdi a consciência antes de justificar a primeira virtude. Sonhei minha vida e ao acordar procurei pela folha. Li e falei em voz alta a impronunciável palavra da segunda noite e então, descobri seu significado, mas isto é vedado aos vivos.


LM

Tuesday, February 25, 2014

Homo Sacer

Não ficarás impune
Mesmo que tua culpa
Não seja maior do que
O tempo do orgasmo

Não receberás perdão
Ainda que se autoflagele
Se mutile e se anule e
Se arrependa de ter vivido

Não! A ti não cabe
Consolo, tampouco
Adentrar à casa de Beatriz
A ti, cuja pouca poesia,
Sequer comporta uma Dulcinéia
Resta o exílio nos lugares-comuns e

Nas mentiras

LM

Sunday, February 16, 2014

Os improváveis Setenta e Dois Carrascos de Constantinopla



Após o anúncio da vitória definitiva, o general chamou seus oficiais. Naquela noite beberiam e brindariam à coragem de seus exércitos. Os soldados que não estivessem no corpo de sentinelas ganharam folga e se embebedariam nos prostíbulos outrora frequentados pelos inimigos. Amariam as mulheres dos vencidos e beberiam seu vinho até se fartarem.
A última batalha foi a mais longa e mais sangrenta, como não poderia deixar de ser, pois na história destes dois exércitos não caberia uma luta comum, não havia espaço para derrotas ou vitórias negociadas, era morrer ou vencer. Em meio a estripamentos e degolas, o grupo conhecido como os Setenta e Dois Carrascos fazia a substancial desvantagem numérica dos vencidos não ser relevante. Eles lutavam como máquinas, precisos, frios, sem paixão, com eficiência cirúrgica. Não pareciam fazer grande esforço para dizimar companhias inteiras. Não poupavam inimigos feridos, tampouco auxiliavam seus próprios companheiros exangues, apenas lutavam. Em um momento que cronistas menos afeitos às guerras chamariam de calor da batalha, o líder dos carrascos foi interpelado pelo imediato do comandante, este lhe sussurrou algo, em seguida reuniram-se, guardaram suas armas e deixaram a batalha. Os demais soldados vendo a aparente fuga dos seus melhores guerreiros esmoreceram e debandaram como insetos assustados. O resultado da batalha estava decretado e os fugitivos  receberam a morte pelas costas  enquanto  os que ficaram para lutar, ao menos puderam morrer com honra. Ao final, dos quinze mil homens, pouco mais de duzentos foram poupados, para contarem como seu exército foi esmagado. Nenhum vestígio dos setenta e dois carrascos foi encontrado, não se sabe se sobreviveram à fuga e há quem afirme terem rumado para as altas montanhas do leste.
Os poetas cantaram canções, menos para louvar as glórias dos vencedores, mais para escancarar a infâmia dos Setenta e Dois Carrascos. A história se espalhou e a vitória passou a ser minimizada, até mesmo ridicularizada: cantava-se que o general só obteve a vitória, mesmo com um exército duas vezes mais numerosos e melhor equipado, após a deserção dos Carrascos, estes, por sua vez, tiveram seus nomes associados à covardia e vilania, teriam aceitado subornos, suas casas foram marcadas com frases de desprezo e suas famílias tiveram que emigrar para terras distantes onde ninguém os reconhecesse nem evidenciasse sua indignação.  A história destes setenta e dois desertores atravessou mares e há comentadores — entre eles W. Smithson— que atribuem certa influência desta sobre os relatos dos feitos sobre o heroísmo dos Quarenta e Sete Capitães liderados por Oishi Kuranosuké, o conselheiro.
O dia da batalha ficou marcado nas páginas dos cronistas: 02 de março de 1449 e as versões da história ganharam cópias, uma delas, feita pelos copistas do Mosteiro de Vivarium e ornada com ricas iluminuras pode ser conferida ainda hoje no Museu de Bargello. Ali está registrada a narrativa de uma das mais improváveis façanhas militar. Uso o termo improvável no seu mais remoto sentido, de não se poder provar e seguirei as notas de Smithson, que atribuem a queda de Constantinopla aos desdobramentos da batalha ocorrida quatro anos antes.
O imediato do comandante teria dito ao líder dos Carrascos: “O Altíssimo revelou ao profeta que a Terra arderá e gelará quatro vezes antes de a Justiça Divina recair sobre os hereges, poupe o sangue dos infiéis agora e faça-os se afogarem na própria soberba.” Iluminado por Alá, o líder, cuja humildade só não era maior do que sua bravura resignou-se. Apagaria seu nome da história, seria vilipendiado para perpetuar o nome de Maomé, ainda que na pessoa do sultão Maomé II.
Refugiaram-se os Setenta e Dois Carrascos, mitigaram as feridas de suas almas e colocaram o plano Divino em curso. Dividiram-se em doze pequenos grupos e rumaram para coração do império inimigo. Se instalaram em Constantinopla como se fossem mendigos, aleijões, mercadores, poetas e desaparecerem completamente nas poeiras da cidade até o início dos ataques.
Aproveitando a escuridão do eclipse lunar, se reuniram na noite de 24 de maio de 1453, em um estábulo, tendo como testemunhas alguns cavalos e não mais do que dois ou três montes de feno, portanto, improvável, ainda que verídico. Na noite seguinte derrubaram um dos ícones da Virgem Maria no chão, precipitando o segundo sinal de pavor nos bizantinos, o primeiro a natureza, na forma do eclipse, se havia encarregado, assim como o terceiro, na forma de granizo.
Como os ataques do exército turco encontraram mais resistência do que o esperado, os Carrascos puseram-se em ação novamente, mas não poderiam simplesmente desembainhar suas espadas e singra-las como se loucos, agiriam como sempre, como máquinas, frias e precisas. Portaram-se como assassinos, eliminando alvos específicos, capitães, generais, bispos. A muralha já violada pelo canhonaço, o imperador bizantino Constantino XI Paleólogo, tão desestabilizado quanto suas tropas, agia agora como um mero soldado, espada em punho, incitando seus homens a não perderem a coragem e a fé.
Por fim os Carrascos conseguiram abrir o portão da muralha noroeste, precipitando o fim da resistência, neste momento, Constantino XI Paleólogo, enlouquecido ante a derrota, encontra o líder dos Setenta e Dois Carrascos, cujo nome jamais saberemos. Este desferiu seus infalíveis golpes no imperador derrotado, antes porém de tirar sua vida, aproximou-se e diretamente em seu ouvido lhe disse: “Eu perdi meu nome, minha família, minha honra ante os homens para poder estar aqui neste momento e atravessar a espada de Alá no coração do inimigo do Islã, trouxe comigo setenta e um dos mais valorosos soldados, vagamos como indigentes, passamos frio e fome, quebramos sua santa e abrimos seus portões. Daqui, eu e meus homens desapareceremos para o mundo e para a história, falo isto para lhe mostrar como as glórias deste mundo são vãs e efêmeras e para lhe propor:  Se aceitar Alá eu o pouparei.”

O imperador bizantino nunca mais foi visto, historiadores atribuem sua investida, de espada em punho contra o exército turco a causa do desaparecimento. Também os Setenta e Dois Carrascos jamais foram vistos, ou se ouviu falar deles.

LM

Monday, February 10, 2014

Antônia



Não era habitável! Assim falavam, carregados de certezas, marinheiros e aventureiros, também havia rumores sobre perdas de sanidade mental dos que se aventurassem por aquelas terras. Ao vaticínio de inabitável, impus-me o desafio, não sem receios, de ali me estabelecer. A tarefa de circundar sua costa em busca de um porto receptível foi realizada em não menos do que oito meses. Após escrutar com toda diligência, escolhi uma enseada ao sul da ilha como sendo o local de aspecto mais amigável e acolhedor. Ponderei ser ao sul a porta de entrada dos mais gelados ventos, mas optei pelo frio, em detrimento das constantes tormentas observadas ao norte e dos rochedos a leste e oeste. De qualquer maneira, em qualquer dos lados, o que primeiro podia ser percebido eram as constantes mudanças de humores da ilha, ora com mar calmo e brisa suave a chamar barcos e baleotes, ora com vagas golpeando-se com ventos enlouquecidos. Tão repentino quanto começava, uma tempestade carregada de chuvas se transformava em uma linda e ensolarada tarde.
Por algum capricho, ou para sentir-me em um local familiar, não desembarquei sem antes ter um nome para a ilha: Antônia.  Não ouso a pensar em Antônia sem ser a formação insular, não ouso por em curso lembranças de uma outra Antônia, me basta navegar e desembarcar em inabitável ilha, o nome, assim quiseram ou deuses.
Fui paciente, perseverei calado em sinal de aceitação do meu destino. Com tempos de calmaria se alternado a ventanias, aprendi a enraizar-me, a resistir aos ataques de fúria e a isto sucederam minhas primeiras recompensas. Descobri não haver vestígio algum de humanidade, era o primeiro homem em Antônia, o primeiro a explorar sua geografia exuberante, seus montes e suas profundezas, a mergulhar em águas cheias de vidas e a sobreviver daquilo que ela me oferecia. Descobri fontes arcadianas e provei frutos de nos fazer sonhar, aos poucos ela se revelava e revelava pequenos tesouros e após nove anos já conhecia quase todos seus limites.
Não havia mais nada que valesse a pena ser descoberto, mesmo assim eu insisti em continuar a buscar algo mais, algum detalhe que me havia escapado, algum regato, ou caverna com novas maravilhas. Deparei-me com uma gruta até então ignorada. Não era um caminho novo, já havia estudado aquele bosque, já o havia catalogado, mas jamais percebera a gruta. Estava tão bem assentado em minhas certezas cimentadas pela rotina que me desacostumara das surpresas, imaginava ter compreendido os ciclos das tempestades e as demais inconstâncias do clima. Esta nova gruta era um desafio inesperado e indesejável.
Não foi de imediato que comecei a explorar a gruta, pelo contrário, procurei esquece-la, adiei a incursão por dias, semanas e meses, penso mesmo ter esquecido, ou simulei o esquecimento e continuei minha vida. Ao cabo de muitos meses, distraia-me a colher frutos pelo bosque quando percebi estar em frente a entrada da gruta. Ensejei novo adiamento, inútil. Com poucos passos estava em seu interior.
Conjeturei ser o propósito de Antônia manter segredo, mas logo descartei parcialmente tal pensamento, ela manteve o segredo pelo tempo que quis. Talvez eu não devesse mesmo vasculhar certas passados, mesmo suspeitando ser sua vontade revelar-se quando sentisse vontade. Bastava um vento noroeste mais persistente, ou uma das chuvas de janeiro, para a entrada da gruta ficar exposta.
No interior da gruta encontrei objetos feitos por mãos humanas, habitantes anteriores a mim que deixaram registros de suas passagens. Havia caixas cheias de  utensílios como copos e facas, também havia joias, muitos retratos, cartas e diários que não me atrevi a ler. Por um instante formulei a hipótese de se tratar de algum esconderijo de saqueadores, utilizado para ocultar o produto de seus ataques, mas indo mais para o fundo da gruta descartei tal ideia, os donos daqueles objetos ainda estavam lá, exibindo os dentes em um macabro sorriso. Enfim Antônia me recebia e me dava seu último abraço.

LM

Wednesday, January 15, 2014

Um cachorrinho ruivo

Lembro-me de um conto de Clarice Lispector sobre um cachorrinho ruivo com uma menina ruiva. Lembro por ter visto um cachorrinho ruivo hoje, alegre, abrindo voluntariamente a boca para que a língua pudesse ficar dependurada, ora de um lado, ora do outro. Se há sentimento nas almas caninas, este cãozinho ruivo estava sentindo-se verdadeiramente feliz. Coleira verde ao pescoço, pelo curto brilhante, bem nutrido, certo ter escapado há pouco, eis o motivo da alegria, livre, agora conheceria o mundo e a barriga ainda estava cheia. Saltava de um lado para o outro, cheirava um transeunte, ameaçava seguir outro, voltava correndo. Estava pleno.
Apareceu a menina da minha história, não ruiva como a de Clarice, mas com a morenice herdada das senzalas. A menina parou e o cãozinho ruivo veio, inteiro faceirice, se abaixava nas patas da frente, como se ameaçando um bote, empreendia corrida ao redor dela, dava latidinhos curtos, era feito para ela. A menina não andava só, sua mãe interrompe sua ida para algum lugar e a chama. Não estou perto suficiente para ouvir a conversa, mas entendo quando vejo a menina apontar para o cachorrinho e olhar para os lados. Perdido, sem ninguém por ele, carros passando muito rápido na rua.
A mãe também olha o entorno, procura algo, ou alguém, me avista, volto meu olhar para meus afazeres, que não eram mais importantes do que ler o jornal. As notícias não me interessavam, mesmo assim afundei-me nas páginas. Fiquei um tempo atrás do minha trincheira, quando saí via a menina e a mãe caminhando para algum lugar, a pequena ainda parou e deu uma última olhada para trás. O cãozinho ruivo continuava com sua alegria, seguia um senhor circunspecto, como se lhe imitasse os passos graves, logo deixou o senhor circunspecto e cercou um rapaz, provocando-o para uma corrida ou mesmo para uma luta.
Por um lapso de tempo impreciso, que poderia ser de uns minutos, ou de uma vida, pensei em como o cãozinho poderia ser feliz em minha casa, poderia brincar todos os dias com minha filha e aos sábados ela e a mãe lhe dariam banho de mangueira e se molhariam tanto quanto o pestinha. Claro, mesmo limpinho, não o deixaria entrar em casa, mas faria uma bela casinha, com bom telhado a ser colocada sob a goiabeira e lhe daria bons ossos e até algum pedaço de carne das sobras do churrasco de domingo. Sim, o danadinho poderia ser muito feliz em minha casa, seríamos todos felizes. Afundei-me novamente no jornal e só tornei a sair quando se passara tempo suficiente para alguém ter se apiedado de um bichinho tão simpático e ingênuo, ao ponto de tê-lo adotado. De fato não o vi.
Pude voltar para minha vida. Fui caminhando com um certo aperto no peito, coisa boba, era só um cãozinho. O aperto era pela família que inventara. Quase pensei serem lembranças aqueles sonhos, serem sentimentos os delírios e serem pessoas fragmentos de solidão. Não há mais tempo para uma família. Se a tive, esqueceram-me. Continuo a andar e encontro novamente o cãozinho ruivo, boca mais aberta ainda, língua bem comportada: estava estendido no meio da rua, envolto em vermelho.
Não vi a menina e sua mãe, nunca mais as vi, nem as que dariam banho no pestinha aos sábados.


LM