Miguel
de Cervantes escreveu uma carta a Alonso Fernández de Avellaneda, o obscuro escritor da outra
segunda parte do Ingenioso Hidalgo Dom
Quijote de La Mancha, mas a Providência fez com que a missiva se perdesse
entre Madri e Tarragona. Segundo a
Cosmografia de Joannes Turpini (inquestionável escritor da lendária Historia de vita Caroli Magni et Rolandi),
a carta teria sido desviada do seu destino por um dos tantos desafetos de
Cervantes, ex soldados ou mesmo literatos do calibre de Lope de Vega,
obscurecidos pelo Cavaleiro da Triste Figura, para ser usada contra ele, pois
trazia vilipêndios e ameaças à vida do impostor de Tordesilhas. Continuando com
sua trajetória marcada por inusual sucessão de ironias, a carta endereçada a
Avellaneda acabou por parar nas mão de um incrédulo Pierre Menard. Incrédulo por não crer na
autenticidade do documento encontrado dentro de uma réplica do Codex Regius islandês, comprada de um
livreiro em Paris.
Menard,
ao que tudo indica, guardou a carta, tida como falsa, por vinte anos, até o dia
em que leu nos Prologos Con Un Prologo de Prologos, de Borges, o texto Miguel
de Cervantes, Novelas Exemplares e
percebeu que a aparente ausência dos traços da escrita de Cervantes no
manuscrito, poderiam ser explicados pela dupla personalidade construída entre a
espada do soldado e a pena do escritor. A carta havia sido escrita pelo
soldado. A partir daquele instante, Menard começou a conceber sua obra,
inacabada, impossível até. Menard abandonou sua vida para viver a de Cervantes,
ser Cervantes, escrever, não semelhante, mas idêntico, como ele escreveu, sem,
no entanto, fazer uma mera cópia. Impossível, assim como é impossível ser
original tendo lido, Homero, Shakespeare, Dante e Szép Ernö.
Estes
parágrafos sobre a carta de Cervantes e a empreitada utópica de Menard, ambos
conhecidos da maioria dos leitores de literatura latina, servem como prólogo
para alguns fatos dignos de nota da história do bibliotecário José Francisco
Traini, a quem travei conhecimento por conta de certas pesquisas acadêmicas que
desenvolvi há alguns anos.
Traini, como o manchego, afundou-se na leitura
de apenas um tipo de livro. Exercia sua profissão em uma biblioteca, não como
as outras, mas uma especializada em resumos de obras literárias, oferecidos aos
estudantes de cursinhos preparatórios para vestibulares e concursos. Lia tudo
quanto podia da biblioteca e após tanta leitura resumida, fez fé de serem
aquelas diminutas obras, como sendo as versões inteiras e pôs-se a imaginar
como poderiam ser se completadas fossem, caso seus autores não fossem tão
preguiçosos. Não saberia precisar como se deu, mas o único livro completo que
lera, foi a versão tarragonesa do Quixote. Lida a versão compacta da história do Cavaleiro
da Triste Figura e o outro Quixote, que não de Cervantes, Traini, tal qual
Menard, pôs-se em intento de reescrever o Quixote, mas em sua imaginação, o que
Cervantes não teria escrito.
Pouco
versado em espanhol antigo, menos ainda em longas narrativas, mesmo assim Traini
concluiu sua primeira obra, intitulada Os
detalhes do Dom Quijote que Cervantes não escreveu. Desnecessário falar que Traini não obteve o
mesmo resultado obtido por Menard, muito menos ter emulado a de Cervantes mesmo
assim, não obstante às críticas pouco lisonjeiras, a obra trainesca obteve boa
aceitação do público, incentivando-o a nova obra, A divina comédia que Dante pensou que, igualmente à publicação
anterior, alcançou certa projeção comercial.
Estudei
algumas das publicações de Traini e, para escrever um capítulo de minha tese de
Pós Graduação em História da Literatura, entrevistei o autor e percebi o
equivoco que os leitores deste engenhoso escrevedor de livros já escritos
andaram e andam a cometer: eles tomam por obra complementar, como se um resumo
estendido, ou coisa que o valha, a obra que Traini imagina ser a obra que os
indolentes autores não escreveram. Aconteceu até de, aprofundando minha
pesquisa, encontrar um leitor que comparou as reescritas de José Francisco
Traini ao Ulisses de Joyce: “São versões traduzidas para nossa linguagem,
nossas referências culturais, ultrapassando uma transversalidade temporal, para
se assentarem como invectivas à modorra tradicionalista.” Asseverou o
entusiasmado leitor.
Apresentei
a Traini uma cópia da carte de Cervantes a Avellaneda, bem como de exemplares
das obras (não dos resumos) e tentei demostrar como o que ele estava fazendo
era um auto-engano que acabara por iludir muitos (senão todos) dos seus
leitores. Senti-me o próprio cura tentando demostrar a Dom Quixote como a
cavalaria andante não passava de basófia e juro como não pude deixar de
associar aquele bibliotecário cinquentão, rijo de compleição, seco de carnes,
enxuto de rosto e, possivelmente por obra da minha imaginação, madrugador e
amigo da caça, ao próprio fidalgo Quijada, ou Quesada. Invoquei os mais ponderados
argumentos, citei diversos autores e filósofos e ele apenas escutava-me,
passivo. Por fim tomou a palavra.
“Caro
estudante, estimo muito que me tenha tomado por objeto de estudo em um de seus
mui qualificados capítulos da sua, certamente, magistral exegese da nossa literatura,
entretanto devo lhe questionar: o que prova esta carta? O que acrescenta às
minhas obras estes tomos de grossos volumes? Se já foram escritos, como o
senhor o diz, há centenas de anos, escritos estão, e minhas obras, já saídas do
prelo, igualmente, acabadas estão. Não quero desmerecer suas pesquisas, mas
quem lê minha obra estará lendo um Dom Quixote errado? Qual é o Ulisses certo?
E o inferno, qual arde mais, o meu ou o de Dante? A ordem cronológica é o que
basta para qualificar uma obra? A que primeiro foi feita será invariavelmente a
certa, ou melhor? E se fossem encontrados manuscritos datados de dois mil anos,
dando conta de uma história, se não igual, ao menos semelhante a do Dom
Quixote? Esta seria a versão correta? E por fim, caro estudante, quem é mais
impostor: quem finge escrever a realidade, ou quem finge acreditar na ficção?”
Não
alonguei mais minhas argumentações, agradeci a solicitude e voltei para meus
estudos. Fui reprovado pela banca na apresentação do meu trabalho final da pós-graduação.
LM