Sunday, May 11, 2014

José Francisco Traini, o reescritor dos clássicos

Miguel de Cervantes escreveu uma carta a Alonso Fernández  de Avellaneda, o obscuro escritor da outra segunda parte do Ingenioso Hidalgo Dom Quijote de La Mancha, mas a Providência fez com que a missiva se perdesse entre Madri  e Tarragona. Segundo a Cosmografia de Joannes Turpini (inquestionável escritor da lendária Historia de vita Caroli Magni et Rolandi), a carta teria sido desviada do seu destino por um dos tantos desafetos de Cervantes, ex soldados ou mesmo literatos do calibre de Lope de Vega, obscurecidos pelo Cavaleiro da Triste Figura, para ser usada contra ele, pois trazia vilipêndios e ameaças à vida do impostor de Tordesilhas. Continuando com sua trajetória marcada por inusual sucessão de ironias, a carta endereçada a Avellaneda acabou por parar nas mão de um incrédulo  Pierre Menard. Incrédulo por não crer na autenticidade do documento encontrado dentro de uma réplica do Codex Regius islandês, comprada de um livreiro em Paris.
Menard, ao que tudo indica, guardou a carta, tida como falsa, por vinte anos, até o dia em que leu nos  Prologos Con Un Prologo de Prologos, de Borges,  o texto Miguel de Cervantes, Novelas Exemplares  e percebeu que a aparente ausência dos traços da escrita de Cervantes no manuscrito, poderiam ser explicados pela dupla personalidade construída entre a espada do soldado e a pena do escritor. A carta havia sido escrita pelo soldado. A partir daquele instante, Menard começou a conceber sua obra, inacabada, impossível até. Menard abandonou sua vida para viver a de Cervantes, ser Cervantes, escrever, não semelhante, mas idêntico, como ele escreveu, sem, no entanto, fazer uma mera cópia. Impossível, assim como é impossível ser original tendo lido, Homero, Shakespeare, Dante e Szép Ernö.
Estes parágrafos sobre a carta de Cervantes e a empreitada utópica de Menard, ambos conhecidos da maioria dos leitores de literatura latina, servem como prólogo para alguns fatos dignos de nota da história do bibliotecário José Francisco Traini, a quem travei conhecimento por conta de certas pesquisas acadêmicas que desenvolvi há alguns anos.
 Traini, como o manchego, afundou-se na leitura de apenas um tipo de livro. Exercia sua profissão em uma biblioteca, não como as outras, mas uma especializada em resumos de obras literárias, oferecidos aos estudantes de cursinhos preparatórios para vestibulares e concursos. Lia tudo quanto podia da biblioteca e após tanta leitura resumida, fez fé de serem aquelas diminutas obras, como sendo as versões inteiras e pôs-se a imaginar como poderiam ser se completadas fossem, caso seus autores não fossem tão preguiçosos. Não saberia precisar como se deu, mas o único livro completo que lera, foi a versão tarragonesa do Quixote.  Lida a versão compacta da história do Cavaleiro da Triste Figura e o outro Quixote, que não de Cervantes, Traini, tal qual Menard, pôs-se em intento de reescrever o Quixote, mas em sua imaginação, o que Cervantes não teria escrito.
Pouco versado em espanhol antigo, menos ainda em longas narrativas, mesmo assim Traini concluiu sua primeira obra, intitulada Os detalhes do Dom Quijote que Cervantes não escreveu.  Desnecessário falar que Traini não obteve o mesmo resultado obtido por Menard, muito menos ter emulado a de Cervantes mesmo assim, não obstante às críticas pouco lisonjeiras, a obra trainesca obteve boa aceitação do público, incentivando-o a nova obra, A divina comédia que Dante pensou que, igualmente à publicação anterior, alcançou certa projeção comercial.
Estudei algumas das publicações de Traini e, para escrever um capítulo de minha tese de Pós Graduação em História da Literatura, entrevistei o autor e percebi o equivoco que os leitores deste engenhoso escrevedor de livros já escritos andaram e andam a cometer: eles tomam por obra complementar, como se um resumo estendido, ou coisa que o valha, a obra que Traini imagina ser a obra que os indolentes autores não escreveram. Aconteceu até de, aprofundando minha pesquisa, encontrar um leitor que comparou as reescritas de José Francisco Traini ao Ulisses de Joyce: “São versões traduzidas para nossa linguagem, nossas referências culturais, ultrapassando uma transversalidade temporal, para se assentarem como invectivas à modorra tradicionalista.” Asseverou o entusiasmado leitor.
Apresentei a Traini uma cópia da carte de Cervantes a Avellaneda, bem como de exemplares das obras (não dos resumos) e tentei demostrar como o que ele estava fazendo era um auto-engano que acabara por iludir muitos (senão todos) dos seus leitores. Senti-me o próprio cura tentando demostrar a Dom Quixote como a cavalaria andante não passava de basófia e juro como não pude deixar de associar aquele bibliotecário cinquentão, rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto e, possivelmente por obra da minha imaginação, madrugador e amigo da caça, ao próprio fidalgo Quijada, ou Quesada. Invoquei os mais ponderados argumentos, citei diversos autores e filósofos e ele apenas escutava-me, passivo. Por fim tomou a palavra.
“Caro estudante, estimo muito que me tenha tomado por objeto de estudo em um de seus mui qualificados capítulos da sua, certamente, magistral exegese da nossa literatura, entretanto devo lhe questionar: o que prova esta carta? O que acrescenta às minhas obras estes tomos de grossos volumes? Se já foram escritos, como o senhor o diz, há centenas de anos, escritos estão, e minhas obras, já saídas do prelo, igualmente, acabadas estão. Não quero desmerecer suas pesquisas, mas quem lê minha obra estará lendo um Dom Quixote errado? Qual é o Ulisses certo? E o inferno, qual arde mais, o meu ou o de Dante? A ordem cronológica é o que basta para qualificar uma obra? A que primeiro foi feita será invariavelmente a certa, ou melhor? E se fossem encontrados manuscritos datados de dois mil anos, dando conta de uma história, se não igual, ao menos semelhante a do Dom Quixote? Esta seria a versão correta? E por fim, caro estudante, quem é mais impostor: quem finge escrever a realidade, ou quem finge acreditar na ficção?”

Não alonguei mais minhas argumentações, agradeci a solicitude e voltei para meus estudos. Fui reprovado pela banca na apresentação do meu trabalho final da pós-graduação. 

LM