Sunday, August 14, 2016

1 -Das tradições
Começou o ano com as mesmas promessas: não lhe era lícito interromper as tradições.
03/01/2016

2 - Da solidão
A chuva encharcava suas noites, menos as roupas no varal e os passos da solidão.
04/01/2016

3 - Da eternidade
Quis confrontar a eternidade: dormiu e quando acordou, só, haviam apagado as luzes.
05/01/2016

4- Das lembranças
Guardou as lembranças nos divertículos, mas as cólicas não sabiam dividir o espaço e reclamaram.

5- Das palavras
Colecionava boas palavras para parecer inteligente. Tinham-no por tolo: as palavras não queriam ser inteligência, queriam ser poesia.

6- Da ilusão
Escreveu mil palavras para fazer a melhor descrição de uma rosa: ficou perfeita, só faltou o aroma.

7-Do labirinto
Perdeu-se no labirinto, quando estava quase desistindo, sonhou que era livre.

8- Do veneno
Privada das presas, a víbora reaprendeu a inocular seu veneno, escondendo-o nas palavras.

9-Do remédio
Crédulo em sua homeopatia, o boticário diluiu o remédio nas palavras. A receita falhou por excesso de palavras.

10-Especulações do fim
Havia o todo e havia o nada, entre eles, os sonhos, o possível e o fim.

11- Do dia
Azulou-se a noite toda para o sol e, ao amanhecer, não aguentou separar-se da lua.
14/1/16

Da noite
12- Soprou um vento da lua que coloriu de prata seus cabelos. Sob o sol, desdenhava o peso do dia.
15/1/16

13- Da morte do artista
Um ponto vermelho mínimo no centro da brancura da tela anunciava a morte do artista: pintou com sua última gota de sangue e comemorou com champanhe.
16/01/16

14- Das profundidades
Quanto mais fundo cavava, mais ouro encontrava e menos lembrava das claridades. 
17/01/16

15 - Da morte nos tempos modernos
Quis morrer. Acovardado, não puxou o gatilho: excluiu seus perfis das redes sociais. Agora é lembrado com nostalgia nos chats.
18/01/16

16- Dos ídolos argentinos
– Quero ser Borges!
– Ficou cego.
– Posso ser Cortázar?
– Teve acromegalia.
– Então serei Pierre Menard mesmo.
19/01/16

17- De Cervantes
Que diria vendo um moinho de vento a roubar toda louca magia para ficar girando sempre no mesmo clichê?
20/01/16

18- De Melville
Quando viu seu livro exposto em casas de artigos para captura de baleias, chamou Bartleby para anunciar: prefiro não fazê-lo.
21/01/16

19-De Joyce
Desavisados acabam presos em um eterno16 de junho de 1904. Salvam-se quando descobrem que não morrerão, se ausentes os pontos e as vírgulas.
22-01-2016

20- Do pacto
Feito o pacto, se amariam aonde o amor não chegava e aonde os contratos não os transformasse.
24/01/16

21- Da eternidade II
Quando se percebeu só, descobriu um dos significados de eternidade, os demais, pretende passar o tempo tentando decifrar.
24/01/16


22- Do fim
Seria a última vez. Esvaziou os bolsos e acalmou as hienas. Seria a últi... e ela entrou, deixando a vida suspensa até a próxima última vez.
25/01/16

23- Do desconhecimento
Planejou o dia todo o passeio noturno, ao entardecer, descobriu que desconhecia a noite.
27/01/16

24- Da dor do poeta
Sentiu a maior das dores, não se julgando bom fingidor, gritou. Não teve socorro: tomaram por fingimento, a dor que deveras sentia, então se sentiu poeta.
27/01/16

25- Dos deuses
Orou, clamou, fez oferendas e sacrifícios: para todos os deuses, ou para aquele que melhor aparecesse na televisão.
28/01/16

26- Dos sonhos
Sonhou que era outro, ao acordar, pensou que era o outro sonhando ser ele, agora tenta se encontrar nos sonhos, enquanto a vida desacorda ao seu redor.

27- Dos sonhos II
Sonhou que era Deus, acordou arrependimento e com uma divina frustração, por não ser Goya.

28- Do que vale a pena compreender
Começou a compreender o texto na terceira leitura e chorou. Não havia mais tempo para leituras.

29- Dos pedidos de socorro
Escrevia compulsivamente variações da mesma dor. Tomavam por insights e seus pedidos de socorro, adornam as estantes das boas salas.

30- Da morte
Já o haviam esquecido e ele mesmo duvidava das lembranças e da própria identidade. Era hora do corpo também morrer.


Sunday, August 07, 2016

Após 30 anos conseguiu a liberdade. Andou com as lembranças dos pés até o local do crime, a antiga casa virou progresso, ele um velho monologista. Pela primeira vez se perguntou se valeu a pena ter assumido a culpa. Guardou a resposta, agora sua alma estava menor e era hora de encontrar um bom lugar para terminar de morrer.
13/10/15

Inventou um cotidiano onde nada poderia dar errado. Trajetos, rotinas, tarefas, tudo planejado, cronometrado. Seguia sol e lua, nos dias de chuva lia Kant. Sentia a certeza do sucesso do seu invento, até que um vento de julho fez estremecer. Neste instante se distraiu encontrou um par de olhos e uma boca que desinventaram suas certezas.
12/10/15

Ao ler as inscrições “Et in Arcadia Ego” soube que tinha tarefas a fazer. Passaria o terno, lustraria os sapatos e faria a barba. Incomodou-se por estar só e por não saber como inventar lembranças. Fez menção de deixar uma carta, escreveu: Arcadia é uma merda...  A caneta estancou e o branco da folha o consumiu.
11/10/15

A cada noite atirava ao mar uma garrafa com pedido de socorro. Não sabia pedir socorro, então escrevia versos de amor, histórias fantásticas, tratados filosóficos, receitas de cerveja artesanal e crônicas da solidão. Quem encontra as garrafas ignora ser um pedido de socorro, mas lê e em seguida socorre alguém ao seu lado.
10/10/15

Distribuiu cartas, bilhetes e cartões sobre a mesa, esforçava-se em vão, mas não compreendia coisa alguma. Iludia-se, como se fossem todos para ele. Adormeceu sobre os papéis e sonhou que era um bode e que decifrava os segredos. Acordou ansioso, acreditando que poderia ler e viu que as folhas tinham sido devoradas.
09/10/15

Para fugir de sua condenação, transformou-se em um verme. Prescrito o crime e suspensa a pena, retornou à antiga forma, mas desaprendera como andar ereto e agora rastejava. Seus seguidores, desacostumados a pensar, o imitaram, logo quase todos rastejavam e pregavam a morte daqueles que mantinham as cabeças longe da imundice.
08/10/15

Ao dar adeus, na hora do aceno descobriu que havia perdido os membros superiores. Surpresa maior foi não saber quando e como isto ocorreu. Não lembrava a última vez que usou braços e mãos, tampouco recordava o significado das palavras abraço e carinho. Partiu sem despedidas nem apertos no peito.
07/10/15

A casa já não cabia mais nele. Sem olhar para trás, abandonou o passado a procura de algo a ser encontrado. Após muitos anos, a circunferencialidade o fez retornar à cidade. Em sua antiga casa, foi capturado pelas memórias. Ficou ali o tempo que lhe restava e morreu como se partisse pela primeira vez.
07/10/15

Amava-a e tinha de partir, não sem jurar o retorno. Lutou nas cruzadas, sua espada matoumutilou infiéis, demônios e bruxas. Após uma ausência ulissiana, voltou e foi procura-la. Estava mais linda do que nunca e curava as feridas de infiéis e demônios: metamorfoseara-se em bruxa.
05/10/15

Pactuaram morrer juntos. Planejaram o modo e o local, faltava a data. Um imprevisto na família provocou o primeiro adiamento, ir ao auxílio de um amigo doente, mais um. A cada imprescindibilidade, novo adiamento. Diferente das outras pessoas, estavam conformados e convencidos de suas mortes, faltava só a data.

04/10/15 

Saturday, August 06, 2016

A calvície revelou mais do que epiderme, deixou exposto pensamentos, ideias, lembranças, sonhos. Incomodado, tentou ocultar seus segredos, assim pensava só o que os outros poderiam ver. Com o tempo já não sabia quais eram seus verdadeiros pensamentos e quais eram seus disfarces.
03/10/15

Escolheu viver como um tubarão, sempre em movimento. Andar sem parar o obrigava ser leve, nada acumular, levar somente o necessário. Descartava tudo que não fosse essencial: família, amigos, amores, pequenos prazeres. Quando pouco restava ao descarte, começou descartar-se, começando pelas lembranças e pelos abraços.
02/10/15

As respostas encontradas nas estrelas, cartas, listras de um tigre, no sangue virgem não serviam. Então criou um deus de verdades e certezas e sem mais dúvidas, inventou perguntas às muitas respostas. A primeira e a última pergunta, foram ao pó.
01/10/2015

Encurralou o animal, o dedo quase gatilho, apertou a mira. No último instante antes do disparo, os olhares se encontraram. Enxergou-se naqueles olhos de medo, viu um passado a esquecer, quando era a caça: foi o motivo final para atirar. Projétil, caça e caçador se fundiram em uma carcaça. No chão, estilhaços do espelho.
30/09/2015

Sem se importar, o vento entrou pela janela e sussurrou-lhe como se fosse negro: “Nunca mais!”. Vasculhou passado, futuro e não se enxergou. Sussurrou-lhe como se fosse carne: “Foi o vento!”. Fechou a janela e viu a própria vida além dos vidros enquanto o vento que entrou, se assentava sobre seus dias.    
29/09/15

A cada passo sentia a abrasividade da vida desgastando-o. Pôs almofadas sob os pés e revestiu as mãos com luvas. Inútil, o vento a roçar-lhe a pele também o esfoliava. Encomendou uma cápsula retangular, do melhor carvalho, forrada com espumas e seda, deitou, selou a tampa e considerou-se salvo.
27/09/15

Zhuang Zi sonhou-se mariposa. Invejando o chinês e desejando-se alado, sonhou-se um abutre. No sonho, o abutre sonha que é Leopold Bloom em um dia sem fim. Quando acordou despencou das alturas abútricas e espatifou-se em mil mariposas. Agora passa o interminável dia tentando juntar os fragmentos de quando era ele.

25/09/15

Thursday, August 04, 2016

Desamado, condenou o corpo à morte por enforcamento. Subiu no cadafalso, pôs a corda ao redor do pescoço e abriu o alçapão. Caiu, sem morrer, nos excrementos sob o patíbulo. A corda deslizou pescoço acima: estava sem a cabeça, que preferiu ficar escondida detrás da cortina do quarto, comtemplando ela pentear os cabelos.
24/09/2015.

O primeiro sinal da vegetalização foi um pequeno broto, quase uma verruga, próximo ao cotovelo. Mais brotos, folhas, seiva, deram certeza. Decidiu fincar raízes longe dos planos irrealizados. Correu sem sucesso, membros enrijeceram e a coifa encontrou os subterrâneos. Ficou plantado a dois passos do que nunca foi.
23/09/15

Quase um anti-Funes, nasceu com o dom do esquecimento, retinha apenas lembranças escolhidas. Torturas, traumas, infâmias, desilusões, sofrimentos descartava, como se nunca tivessem acontecido. Por engano, distração ou vinho, esqueceu como esquecer e agora é assombrado por memórias ausentes.
22/09/15

Ao entrar na casa deparou-se com o invasor. Teve menção de atacar, o temor o paralisou, sentia-se em desvantagem. Acender da luz fez aumentar o terror: o invasor era seu idêntico. Entre a luta mortal e a fuga, escondeu-se no espelho.
21/09/15

Perdido, precisava fazer uma bússola. Não havia agulha então cortou e usou o indicador. Apontou um caminho incompleto, faltava mais e cortou o antebraço, mudou a direção, mas ainda não chegara suficiente longe. Outro braço, uma perna, faltava pouco: cortou o pescoço.
19-09-15

Garimpava há quase 50 anos e cavou tão fundo que já não chegava a luz dos dias. Desaprendeu os usos dos olhos, esqueceu o que procurava, apenas cavava e quando encontrou o maior diamante, praguejou: Coisa dura! Atrapalha meu serviço.
18-09-15

Para não ver e ouvir tantas iniquidades vazou os olhos e furou os ouvidos. Pensamentos pérfidos continuaram a invadir sua mente. Lobotomizou-se. Livre de distrações, sua palavra tornou-se potente: agora é uma plena pessoa de bem. 
17-09-15

Acordou dentro do escuro, tateou e supôs estar em um caixão. Pânico! Antes pensou em revirar os bolsos. Havia um pedaço de luz e um bilhete dele para ele: Você é eu e estamos mortos então, se achar um pedaço de luz, aproveite o dia.
15-09-15

Recebeu a porção e o aviso de última. Quanto tempo ainda teria? Veio a dúvida: rememorar lembranças, ou idealizar futuros. Para fugir do presente e do fim, dormiu buscando no sonho o passado ou o futuro.

14-09-15

Tuesday, August 02, 2016

Ela fotografava os meus pés. Perguntei o motivo: era para fotografar meus caminhos percorridos. Tentei refazê-los mentalmente, percebi que andava em círculos. Sempre em círculos, cada vez menores.
13-09-15

Libertar-se das amarras custou-lhe dois braços, justamente os utilizados para os abraços e para as artes. Sobraram os de serventia ao trabalho, os das lutas e aqueles próprios para os acenos de adeus de toda ordem.
11-09-15

Simulava o silêncio para tagarelar em seu íntimo. Conversas e discursos, só do córtex ao sonho e, pela manhã, uma xicara de café preto, no pão margarina e a língua. Esta era a receita dos dias mal falados.
10-09-15

Sempre trazia no bolso do paletó, umas dez palavras bem escolhidas. Para se defender ou alguma emergência. Naquela manhã, coisa nunca vista, esqueceu-as sobre a cômoda e naquela manhã, conheceu Consuelo. Calou-se, não disse a..., nem respondeu perguntas. Sem defesa, foi devorado e as palavras se empoeiram sobre a cômoda.
09-09-15

Festejavam as pessoas de bem enquanto a besta fera agonizava. Tinham-na subjugada e para maior humilhação, deixariam que as crianças atravessassem seu corpo com as lanças. Alguns meninos e meninas se negaram, foi o alerta para as autoridades reformularem os currículos escolares: eram muito jovens para pensarem e para reabilitá-los, seriam internados para tratamento com choques e drogas

07-09-15

Monday, August 01, 2016

A cavalgada fora a mais longa e muitas as dificuldades. Afinal chegaram, era algo Pasárgada, Shangri-La, Arcádia, a perfeição. Não precisaria mais de todos aqueles pertences de viagem. Levou o cavalo até o lugar apropriado e com um tiro certeiro o corpo caiu no rio para ser levado ao mar, junto com os demais lixos.
04-09-15

Quando o cão morreu, todos da casa correram aos armários, gavetas, potinhos coloridos, embrulhos de sacolas plásticas e tantos invólucros onde pudessem estar as lágrimas da família. Enterraram-no sem prantos: as lágrimas estavam na sacola que o cachorro havia mastigado na semana passada.
03-09-15

sob os pés a terra
lhes foi negada
lançaram-se ao mar
heróis sem navios
tão sádico deus
atirou garrafas n’água
co’a mais dura mensagem:
– Nasceste para isto!
02-09-15

Quando começou chover, sentiu que precisava contar quantos pingos cairiam nas flores. Calcular a área do jardim, precipitação pluviométrica, tempo transcorrido. Avançou pela noite em equações e conjeturas. Ao amanhecer, havia sobre a mesa um haikai com o cheiro da primavera e no chão, uma evaporável poça d’água.
01-09-15

Perguntaram-lhe os nomes dos avós, pensou por alguns instantes e percebeu que não sabia ou não lembrava. Em quanto tempo seu nome também seria esquecido? Sentiu a inexorabilidade do fim. Inconformado (ou seria mais amedrontado?) com a finitude e insatisfeito com as respostas da religião, planejou fazer algo para ser lembrado. Entraria para a história e seu nome não frequentaria apenas uma lápide coberta de limo. No dia marcado, levantou-se da cama e uma insuportável dor no peito anunciou o infarto fulminante. Seu corpo ficou esquecido no chão da cozinha, até a chegada da primavera.
30-08-15

Procurou nos bolsos, embaixo do tapete e no vaso perto da entrada, sem sucesso. Refez o caminho olhando atentamente nas frinchas das calçadas, entre as pedras da rua e sob os escombros de ausentes transeuntes. Era quase noite quando encontrou a chave. Não comemorou, sentou-se no meio-fio, mantendo a cabeça baixa como se ainda vasculhasse o chão: não sabia mais onde estava a porta.
28-08-15

Do plantio, imaginou estar próximo da metade: havia feito 46 buracos bem medidos, com a exata profundidade de sua própria altura. Revirou bolsos, os poucos pertences e se deu conta de estar sem as sementes. Deixou as covas vazias, menos uma.

26-08-15
Aos meus três ou quatro distraídos leitores, lamento tê-los deixados sem novos escritos, mas estive afundado em estudos diversos. Terminei uma especialização em História da Arte e, ato contínuo, comecei o mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade. Penso que a escrita acadêmica, se não fez bem à minha incipiente literatura, mal também não fez.
Retomo as publicações, não de maneira regular, se muito com alguma frequência e, na falta de material novo, republico pequenos textos que postei n'outra rede social. A vantagem de reuni-los aqui, é que não estrarão dispersos no oceânico fluxo das postagens de redes sociais.
Boa leitura.