Sunday, May 29, 2011

Nada

Assim que terminou o Dia de ficar rico, desligou a tv, fechou as janelas, verificou se a porta estava trancada, fechou o gás e foi escovar os dentes. Sempre o mesmo ritual, sem adiantar nem atrasar, a não ser se o canal alterasse a programação. Sentia-se confortável em ter um ponto de referência para as coisas do dia-a-dia e sempre podia contar com a televisão. Com ela mantinha-se informado, sabia da previsão do tempo, se divertia diante da telinha e, principalmente, sabia a que horas fazer as coisas. Quando terminava o noticiário da manhã era hora de ir ao mercadinho comprar a salada do almoço e assim que terminasse o Manhã da garotada, era hora de almoçar. Para cada atividade do dia sempre tinha um programa que o ajudava decidir se realmente era aquela a melhor hora e ainda por cima podia pegar receitas de pratos diferentes, dicas de moda, saber sobre política e tudo mais que precisasse para ficar sabendo das coisas e poder ter o que conversar com os vizinhos, com o porteiro, com o quitandeiro, com a dona da padaria e com quem mais cruzasse o seu caminho.

Naquela noite deitou-se como sempre fazia, relembrando os programas, pensando em detalhes que haviam passado desapercebidamente até pegar no sono e na manhã seguinte antes mesmo de ir ao banheiro ligou a tv do quarto. Só estática. Mudou de canal e apareceram umas letrinhas verdes que iam pulando uma linha para baixo até chegarem à parte inferior da tela e reaparecerem na parte superior: sem sinal. Foi para a sala, o aparelho ligou, mas também não aparecia nada, em nenhum canal. Olhou para o relógio para certificar-se que não tinha acordado no meio da madrugada, já eram 7 horas. Acendeu e apagou a luz, podia estar com algum problema na rede elétrica, verificou cabo de antena, tomada, conexões, ligou e desligou. Pensou em ligar um rádio, mas lembrou-se que não tinha nenhum. Na padaria sempre tinha uma tv ligada. Era preciso agir rápido e resolveu sair de casa sem mesmo tomar o café da manhã. Abriu a porta e não viu nada. Não havia nada da porta para fora, apenas o vazio. Nem branco, nem preto, apenas o nada, como se fosse o dia anterior ao início da criação. Pensou que talvez fosse ele um deus, ou o Deus e ordenou: Fiat lux! Nada, a luz ignorou-o, assim como todo o resto. Não podia sair assim, não havia nada porta a fora, ou havia apenas o nada. Poderia cair e não mais retornar, ou desmaterializar-se em nada também, melhor era permanecer ali. Fechou a porta, as janelas e cortinas e foi dormir, acordaria e descobriria ter tido apenas um sonho. Dormindo sonhou com formas indescritíveis, ou com coisas sem forma, com vazios e com ausências e acordou. Luzes apagadas, janelas cerradas, podia ser qualquer hora e não se atreveu a olhar no relógio, tinha medo. Medo de levantar da cama, de ligar o aparelho de televisão, de abrir a porta, mas precisava agir. A luz acendeu, mas a tv permaneceu impassível, ligava e nada aparecia além de estática ou de outras formas inúteis. Foi até a porta, abriu e o nada continuava lá. Não foi um sonho.

A todo custo tinha de manter a calma, não perder o raciocínio, se é que já não estava louco. Fez um levantamento detalhado dos mantimentos e estes seriam racionados dali em diante. A água continuava a correr das torneiras, sem saber se isto perduraria, encheu tudo que pudesse reter água. Também a energia elétrica e o gás ainda não haviam sido interrompidos e se continuasse assim poderia contar com uma reserva extra de carne congelada. Achou algumas sementes de pepino e beterraba, desalojou as flores e iniciou um cultivo emergencial de alimentos. Com sorte poderia agüentar por uns três meses, mas se água e a eletricidade continuassem a chegar, poderia viver quase que indefinidamente. Estabeleceu horários, quantidade de alimento diário e toda sorte de regras que um náufrago precisasse seguir para sobreviver até o socorro chegar. Convenceu-se disto: não passava de um simples náufrago.

Depois de um mês quase começou a se acostumar com a situação, ainda que o medo o assombrasse, poderia ficar naquele estado para sempre. Este misto de acomodação e terror o obrigou a reorganizar os afazeres e as tarefas diárias, era preciso quebrar a rotina para manter o espírito alerta, caso contrário corria o risco de se acomodar demais e perder as forças para continuar a lutar. Não deixou de verificar diariamente o sinal da televisão, o fornecimento de água, de gás e o nada além da porta, mas também passou a fazer outras atividades. Pôs-se a escrever cartas, para velhos amigos que se perderam pela vida, para parentes, para desafetos, para ex-amores, para credores para ele mesmo. Cada nova carta revelava motivos antes imperceptíveis que explicavam porque aquele amigo partiu, quando o amor acabou, como se afastou dos parentes e como se transformou em alguém que ele não reconheceria como sendo ele mesmo se fossem apresentados há alguns anos. Depois de três meses já não se importava mais com a televisão e não se importava mais se retornaria para a sua antiga vida, sabia que ninguém estava sentindo sua falta e sabia que o culpado por isto era ele mesmo. Achou por um momento que pudesse estar morto, apenas isto, caído no chão da cozinha e como ninguém o procurou, nem teve um enterro decente, estava naquele limbo e resolveu sair de uma vez. As pernas não obedeceram e não pode se aproximar da porta. Voltou para a sala e prostrou-se diante do aparelho de televisão a estática mostrou a ele o que ele era: nada. Sabia agora que no dia seguinte poderia ligar a televisão e provavelmente veria seus programas novamente, iria até a porta e veria a rua, as pessoas, os pardais; poderia sair de casa para comprar pão e cumprimentar o porteiro, a mulher da padaria, algum vizinho; poderia até ligar para aquele velho amigo, para os filhos e quem sabe até arranjar um novo amor. Sentiu lágrimas, teve vontade de gritar, desta vez a garganta não o obedeceu. Sabia agora muitas coisas, mas o mais terrível era saber que não faria nada daquilo, que simplesmente ligaria a tv do quarto antes de ir ao banheiro e no mais continuaria com sua vida como sempre foi, talvez por uns dois ou três dias teria algum trabalho diferente pondo as coisas em ordem novamente, para depois encapsular-se em sua vida metódica e fria. Chorou até cair no sono.

LM

Sunday, May 15, 2011

O último segredo

O barulho de passos denuncia a aproximação dos guardas. Está chegando ao fim a entrevista e o entrevistador se impacienta. Ele sonda o prisioneiro na tentativa de encontrar alguma brecha na armadura de indiferenças erguida pelo condenado. Não havia a menor necessidade ou disposição para prestar qualquer tipo de serviço a um cúmplice do mesmo sistema que o estava conduzindo à forca.
Como a próxima execução só aconteceria em seis meses e restando pouco tempo para conseguir extrair alguma coisa significativa deste prisioneiro, não seria prudente se exasperar, tentaria aproximar-se com mais cautela. Não podia se arriscar a perder esta oportunidade.
Agora não poderiam mais ficar a sós e se não conseguisse hoje, seria difícil prever a próxima oportunidade. “Estas datas sempre sofrem algum adiamento”. O prisioneiro crispa as mãos. Poderia estar relembrando o crime que o condenou. Seria este o momento ideal para falar alguma coisa. Faltam apenas alguns minutos e o entrevistador, em uma atitude pretensiosa, tenta imaginar o que o outro sente nesta hora. Esforça-se para reproduzir em as aflições alheias, mas percebe que apenas arranha a superfície de uma redoma invisível, utilizada pelo condenado para preservar o mínimo de humanidade que ainda lhe resta. Tão magro ao ponto de os ossos parecem querer perfurar a pele fina, não parece perigoso. Estará arrependido? Improvável. De que adiantaria se arrepender. A cela se transformou no seu mundo e não deve ser tão difícil abandona-lo. A morte se torna mais assustadora quando temos algo a perder. Já não tem muito apego à vida, próprio de quem já não tem nenhum domínio sobre a própria existência. Hora de deitar, de acordar e de comer controladas por estranhos; o que vai comer e quando ir ao banheiro. Vigiado e medido, a vida já não lhe pertence. Nada a esperar senão a morte, esta entidade cheia de enigmas e perguntas sem respostas, cortina leve, possível de atravessar, mas apenas em um sentido. Tão aterrorizante quanto instigadora. Valerá à pena viver desta ou daquela maneira? Vale à pena esperar por outra vida?
—Tem certeza que não quer falar nada? Pode ser uma chance de deixar seu nome gravado na história.
O silêncio carregado de ceticismo respondeu pelo homem sentado de costas para o entrevistador que tentava, em vão, tatear no muro erguido entre ambos.
— Que razão eu teria para ajudá-lo? Você não tem nada que possa me interessar. Ou pode conseguir minha libertação? Acho que não, então fique com suas perguntas e eu fico com minhas respostas, minhas últimas companheiras até o túmulo, além de eu não fazer a menor idéia do que você quer, mas como veio me interrogar, é porque sei algo que te interessa e esta satisfação, de não cooperar com porcos, eu terei antes de morrer.
— Esta sua atitude não passa de uma última tentativa de conferir algum valor para sua morte. Acha que está escondendo uma informação muito preciosa e se sente importante por isto, ainda mais imaginando que está me passando para trás. Posso sair daqui e entrar na próxima cloaca em que esteja enterrado algum outro condenado à morte e, a troco de uma garrafa de água ardente, catalogar espírito e alma do desgraçado. Quando você estiver pendurado pelo pescoço, me enxergará no meio da multidão e poderá ver meu sorriso zombeteiro enquanto comento com alguma velha ao meu lado: “vê aquele verme se contorcendo na ponta da corda, ele tem segredos preciosos para a humanidade e agora, enquanto ele espera quebrar o pescoço, ou ficar sem ar, tais segredos descartáveis escorrem com os dejetos descendo pela perna. Urina, esperma e fezes se misturam reduzindo o último espasmo a uma cena grotesca.” Serão longos estes teus últimos momentos e eu me deliciarei observar esta fisionomia severa e irada ir se transformando na mesma máscara apavorada que se apodera dos condenados e ali saberei tudo o que quero. Mesmo quando você não tiver mais voz, estará me revelando teus segredinhos.
A chave do carcereiro irrompe na fechadura da cela. A hora da execução se aproxima e ao prisioneiro já não existe mais a percepção do transcorrer do tempo. Num instante já se vê com a corda passada pelo pescoço enquanto a multidão raivosa grita a espera de mais um espetáculo. Tudo isso acontece simultaneamente: conversa na cela, em pé no cadafalso, ser conduzido pelos guardas, tudo ao mesmo tempo em que está, há 35 anos, pescando em um riacho perdido na infância ou já velho, brincando com netinhos gorduchos. Uma sucessão de imagens se sobrepõe, mas não são todas imagens da sua vida. Nunca pescou em um aprazível riacho durante sua infância. São imagens atemporais, de passados que não existiram, de possibilidades de futuros pertencentes a um passado incerto. E este presente seria uma lembrança ou uma premonição? Quase sentia ter o poder de escolher os caminhos da sua vida. Caminhos que o levariam a ter lembranças idílicas enquanto é acariciado por uma esposa atenciosa.
Como se tivesse levado um chute nos testículos vislumbra o rosto macerado do entrevistador no meio da multidão, olhando e rindo um riso sarcástico. O estomago fica embrulhado e uma onda de frio percorre seu corpo. Adiantaria alimentar as mesmas ilusões dos outros condenados? Ilusões de arrebentar três vezes a corda e ser aclamado pelo povo como um santo que não pode morrer pelas mãos dos homens; de um indulto, uma clemência em cima da hora. Estas já são ilusões para serem deixadas aos próximos condenados.
Os guardas entram na cela e o entrevistador fala alguma coisa para eles, dando alguma instrução. A hora definitiva chegou.
— Até compreendo o motivo de ter praticado seus crimes. Neste momento sua alma me pertence e mesmo que queira, não pode esconder nada de mim. Agora temos de andar rápido, o cadafalso o espera e o povo está ansioso. Haverá outros mais e não importa quantos precisarão ser enforcados, estarei na cela, e estarei junto à multidão, e serei o grito ensandecido da turba, e serei os olhos do carrasco, serei ainda, o primeiro a carregar os corpos e um dia um de vocês falará. Será a fala dos demais, será uma e serão todas e a verdade me pertencerá. A vida me pertencerá.
— Nada disso tem a menor importância, já não tenho mais medo da morte. Talvez a dor faça meu corpo esboçar alguma reação, mas será apenas um espasmo e não me importo se você descobrirá alguma coisa, pois quando imaginar que descobriu algo, não demorará muito para perceber que não sabe nada. Você será o maior condenado, morrendo várias vezes com os enforcados, até o dia que nem vai perceber a própria morte e tudo terá acabado, como se nunca tivesse existido.
A certeza de chegar ao fim todas as seqüências de passados, presentes e futuros possíveis para sua existência, produziu no condenado uma euforia nervosa. Acabava de descobrir ter sido muitos e nenhum ao mesmo tempo. Então a morte era isto? Enxergar todas as possibilidades possíveis, milhões de combinações e rumos para a própria vida, milhões de vidas e incontáveis experiências. Se, naquele inverno há 15 anos, tivesse atravessado a rua; se tivesse, no natal de 57, virado para a esquerda; na corrida de cavalos tivesse dito sim. “Se” vão preenchendo incontáveis listas de probabilidades que ele já nem sabe mais qual foi a verdadeira, ou se todas foram verdadeiras e agora, no final de tudo, ver estas muitas histórias como a um sonho distante. Foi todos e não foi nenhum, apenas o fim é único, mas não a forma do fim, como se fosse possível chegar até este fim por múltiplos caminhos até atingi-lo. O ponto final e o ponto de partida.
A corda esticou sem quebrar o pescoço. Sinal de mais alguns momentos de espetáculo para a multidão, até que o condenado pare de se contorcer. No meio da massa ruidosa, o entrevistador anota todas as impressões enquanto, de algum ponto da memória, se vê criança, pescando peixinhos dourados em um riacho. A multidão se agita. O condenado se debate freneticamente. A turba, excitada com a cena bizarra, se acotovela e se amontoa, espremendo e sufocando o entrevistador até a queda. No chão lamacento, ele vê peixinhos dourados e algumas verdades, que já não servem para mais nada.

LM