Sunday, May 27, 2012

História de uma criança sem nome, sem passado, sem futuro

A mãe andava pelas ruas do centro, entre clientes e fornecedores. Do pai, soube que há alguns anos estava preso n'alguma penitenciária do interior, mais nada. Vivia como dava com a avó, um dia comendo pouco, no outro quase nada. Quando começaram a despontar dois protomamilos percebeu que também poderia ganhar algum dinheiro com seu corpo franzino. Os primeiros clientes foram alguns moleques da rua, mas eles não pagaram, deram apenas umas pedras de crack. Um homem em um carrão a levou para o motel. Queria que ela chupasse e engolisse, ela o mordeu. Apanhou, foi violentada de todas as formas e não recebeu pelo serviço. Foi a primeira surra das ruas, tinha doze anos. Aos dezesseis assaltava, matava, roubava, mas não cedia mais seu corpo. Foi presa aos dezessete, depois de vingar-se daquele mesmo sujeito que a violentou aos doze. Ele era um cidadão de bem, pai de família, respeitado homem de negócios, temente a Deus. Os telejornais bradavam por justiça, chamavam-na de monstro, assassina fria. Ainda legalmente menor, os representantes da sociedade, da família, clamavam na televisão por mudanças na lei. Era inconcebível pensar que aquela criatura repulsiva, que ousara a ferir de morte um cidadão de bem, pudesse ganhar a inocência assim que completasse a maioridade. No outro dia, aliviados, os formadores de opinião noticiavam a morte da assassina, ela se havia enforcado com o sutiã na cela da detenção. Ele teve uma belíssima missa de sétimo dia na catedral, ela foi enterrada como indigente.

LM

Farfallândia

N.A.: Desde quando expliquei para Luana que tinha um blog e o que era, ela me cobra para eu postar suas histórias, de preferência com a personagem principal com o seu nome. Tentei explicar que mesmo usando nomes de pessoas que conhecemos, a partir do momento em que vai para uma história, passa a ser o personagem e não mais a pessoa. Ela não quis saber dessas coisas, então, eis mais um pequeno conto de ventos e outras fantasias, com minha personagem favorita.

  
 

Em Farfallândia viviam as mais belas borboletas, cheias de cores, tantas que um pintor, daqueles dados a ataques de tragicidade, seria capaz de cortar um braço para ter em sua paleta tamanha quantidade de variantes cromáticas. Apesar da infinidade de tons desfilando em asas ligeiras, cada borboleta tinha apenas uma cor, nada de misturas, mas eram tantas as cores que não seria nenhuma surpresa descobrir não haver repetição, cada borboletinha com sua tonalidade própria.

A vida seguia em seu curso normal naquela vila multicolorida quando, até que em uma noite especial, em que a lua tanto encheu-se de brilho para exibir o maior luar já visto, nasceu uma borboletinha diferente, com asas completamente brancas. Nunca isto havia acontecido em Farfallândia então, vendo aquela criaturinha com asas brancas como uma pálida lua cheia, seus pais deram-lhe o nome de Luana.

A enluarada borboletinha cresceu alegre e amada, ela era muito simpática, carinhosa e, graças a sua cor singular, todos na vila a conheciam. Então chegou o a época de ir para escola. Luana estava ansiosa para poder conhecer novos amiguinhos, mas no primeiro dia de aula ela percebeu que não seria assim tão fácil quanto imaginava. As outras borboletinhas, que nunca tinham visto borboleta com asas sem o tradicional colorido, começaram a rir e fazer perguntas que Luana não sabia responder.

— Cadê sua cor?

— Você vai ficar colorida como a gente?

— Isso dói?

— Você pode voar?

As pequenas borboletas não sabiam que apesar da coloração diferente, Luana era uma borboleta igual a qualquer outra e podia fazer as mesmas coisas que as outras borboletas de sua idade. Isto deixou Luana muito triste e ela resolveu ir embora de Farfallândia. Tinha ouvido histórias sobre um mestre das cores, um artista muito habilidoso que morava no outro lado do bosque e decidiu procurá-lo. Não sabia ainda como este mestre das cores poderia ajudá-la, mas estava resolvida e partiu.

Não foi muito difícil encontrar a casa do mestre das cores, ele morava em uma cabana cercada por flores de todas as cores, ao lado da casinha, corria um riacho que desaguava em uma cascatinha. Os respingos levantados pela queda d´água se encontravam com os raios do sol e formavam um arco-íris permanente. Tudo ali era colorido, parecia ter sido cuidadosamente decorado por um meticuloso artista. O lugar era tão bonito que Luana nem teve medo e foi logo chamando pelo dono da casa.

— Olá! Senhor mestre pintor! Senhor mestre das cores! Gritou Luana

— Pois não. Em que posso ajudá-la? Respondeu o mestre, que não era um mestre, mas uma mestra, saindo de dentro da casinha.

— Oi! Meu nome é Luana, meu nome é assim porque nasci em uma noite de lua cheia e minhas asas são brancas como o luar e eu venho de Farfallândia.

— Olá! Eu sou Tarsila do Arco-íris, meu nome é assim por causa do arco-íris perto de minha casa.

As duas logo começaram a conversar e perceberam que seriam boas amigas e Luana até esqueceu o motivo de sua viagem, até que Tarsila perguntou.

— Mas o que você faz por aqui, tão longe de seus amigos?

Luana contou como estava triste por não ter cores tão vibrantes em suas asas como as outras borboletas e queria saber se Tarsila poderia ajudar a colorir suas asas. A mestra das cores deu uma grande gargalhada.

— Não seja tola minha amiguinha! Você já se olhou no espelho? Suas asas são as mais luminosas e brilhantes que já vi, como se fosse o próprio brilho do luar e elas são brancas porque têm todas as cores misturadas.

— Como assim? Todas as cores? Quis saber Luana.

— Vou te explicar. Falou a mestra. Nossos olhos não conseguem enxergar direito as cores, e o que vemos é o reflexo da luz. Isto é meio complicado, mas é mais ou menos assim e quando misturamos a luz de todas as cores sabe que cor temos?

— Uma cor multicolorida? Falou Luana.

— Não. Temos a cor branca. Então minha amiguinha, suas asas refletem todas as cores das asas das outras borboletas e é por isso que ela fica branca quando olhamos. Seu colorido único traz as cores de todas as outras borboletas e eu nunca vi asas tão brilhantes quanto as suas.

—Puxa vida, então eu não preciso ter vergonha de minha palidez.

—Nunca e se os outros riem de você, é porque não sabem direito das coisas. Agora volte para sua família e tenha muito orgulho de suas maravilhosas asas.

Luana voltou para Farfallaândia, mas algo terrível estava prestes a acontecer em sua vila. Um enorme e esfomeado sapo encontrara a vila e se preparava para um delicioso e colorido banquete. Vendo aquilo e vendo suas amiguinhas em desespero, Luana não teve dúvidas e rapidamente bolou um plano. Ela voou em direção ao sapão. Abriu suas enormes e brilhantes asas na frente do guloso, que vendo aquele espetáculo, esqueceu das outras borboletas e saiu pulando em direção aquele intenso brilho. Luana foi voando lentamente em direção a um abismo que existia ali perto, sempre tomando cuidado para manter-se a uma distância segura do sapão. Hipnotizado pelo espetáculo das asas da corajosa borboletinha, ele nem percebeu que pulava para uma grande queda. Depois de ter se esborrachado e quase morrido, o sapo guloso não quis mais saber de atacar borboletas, coloridas ou não.

Em Farfallândia todos receberam Luana com muita festa e pompa e depois daquele dia, ninguém mais riu das suas brancas e brilhantes asas. Dizem até, que algumas borboletas mais invejosas até quiseram se pintar de branco para ficarem parecidas com Luana, mas o máximo que conseguiram foi borrar suas asas.

 
 

LM

Sunday, May 13, 2012

O outro

    Antes de Isidore embarcar para Paris, o senhor Medina, imaginando uma viagem motivada pelo amor, recita alguns trechos dos Les Cahnts de Maldoror para o filho. O rapaz ouve em silêncio.

    − A dama que me espera em Paris apreciará a poesia da nossa gente. − Murmura, mais para si do que para o pai.

    Parado na frente do Hospital da Salpêtrièri, Isidore se sente ridículo por não ter procurado contatar o hotel antes de viajar. Colhe informações com os passantes e descobre ter sido demolido o antigo prédio, para dar lugar a este anexo do histórico Hôpital dês Invalides. Falta pouco tempo para seu aniversário e ainda não reuniu todos os ingredientes nem encontrou um hotel adequado. Olha para o edifício branco e se irrita com sua boa saúde. Nenhuma dor, nada de febre, tosse ou manchas vermelhas. Apenas a habitual palidez aristocrática herdada da mãe.

    Na Escola da Sagrada Família, em Montevidéu, quando aprendeu a conhecer poesia, descobriu de onde viera seu nome. Foi lá também que descobriu com quantos anos e de que maneira morreria. O estudante Isidore Lucien Herrera Medina, além do mesmo nome, nasceu no mesmo dia da morte de Isidore Lucien Ducasse, o Conde de Lautréamont: 24 de novembro de 1870. Naquela época ele percebeu que receber o nome do Conde exercera uma influência que Joaquim, Ernesto ou Ramon não exerceriam. Foi quando começou a se interessar pela escarlartina.

    Isidore custa a aceitar a idéia de não ocupar um quarto no hotel da Faubourg-Montmartre, número 7. Sem outra alternativa, se instala num hotel na Place St.-Sulpice com a Garnicière para fazer as últimas anotações nos seus Cantos. O quarto bem aquecido não tem as mesmas paredes desbotadas, como o Conde tanto apreciava.

    Reunidos os ingredientes, prepara a mistura de metileno, anfetamina, plantas alucinógenas e vinho. Mergulha nos abismos dos lençóis de seda até despertar preguiçosamente. Isidore procura por Deus ou pelo Diabo. Desorientado, lembra do mal-estar generalizado se espalhando pelas entranhas. Reconhece o quarto do hotel, seus manuscritos sobre a mesa e suas roupas espalhadas. Imaginou não deixar memória de si, mas ainda está no hotel. Já é dia 25. Ele continuará vivendo e morrerá como qualquer um, menos como o outro Isidore.


 

LM


 

Os nãos de um dia, ou de uma vida

Não há vagas

Não vendemos fiado

Não aceitamos cheques

Não pise na grama

Não me provoque

Não jogue lixo no chão

Não fale com o motorista

Não fume

Não de comida aos animais

Não mude de assunto

Não ultrapasse na faixa contínua

Não bata a porta

Não aceitamos devolução

Não aceitamos reclamações posteriores

Não suje as ruas

Não tomarás Seu santo nome em vão

Não entre sem camisa

Não diga que eu não avisei

Não entre, cão bravo

Não pense que está sendo fácil para mim

Não fazemos troca

Não matarás

Não é o que você está pensando

Não adulterarás

Não compreendo

Não cobiçarás a mulher do próximo

Não havia mais nada a fazer


 

e os sims se negam.

Sunday, May 06, 2012

Körlük

A partir de Orphia, seguindo o poente em direção às montanhas do leste, o viajante encontra um grande deserto cortado pelo esquecido rio Çevir. Acompanhando o rio até quase o meio do deserto, está a cidade de Körlük. Diz-se de Körlük que lá todos os adultos são cegos sem, no entanto, haver uma explicação científica para tal peculiaridade, apenas sabe-se que esta patologia não afeta as crianças. Estas nascem perfeitas, gozando da mais absoluta saúde e assim permanecem até a adolescência, quando começam a perder a visão gradativamente, para entrarem na idade adulta, sem enxergarem mais nada.

Muitos tratamentos foram tentados e muitas experiências foram feitas, todas infrutíferas. Outra dificuldade às pesquisas é o fato de os cientistas não terem certeza absoluta dos diagnósticos oftálmicos, pois há a suspeita de que a endemia não se manifeste de maneira igual em todos os indivíduos. Desta forma existe uma divisão em três grandes grupos, sendo um formado por pessoas que teriam plena capacidade visual, mas por motivos insondáveis, comportam-se como se nada enxergassem. São os que enxergam, mas fingem que não veem e, muitas vezes, até parece que não querem mesmo ver nada diante de si. O segundo grupo é composto por pessoas desprovidas completamente da capacidade visual e, para posarem como seres normais, falseiam sua incapacidade e simulam que enxergam tudo perfeitamente. Eles não veem nada, mas insistem em afirmar o contrário, se portando como se realmente enxergassem e isto produz leituras equivocadas da realidade ao redor destas pessoas. Já o terceiro grupo é formado tanto por pessoas dotadas do sentido da visão quanto os desprovidos desta faculdade, o que os une é sua vontade, por assim dizer, de enxergar mais do que realmente existe. Tais pessoas afirmam que veem aquilo que jamais existiu, juram terem enxergado coisas fabulosas, enfim, querem enxergar mais do que a realidade e acabam não vendo nem o que se passa sob seus narizes.

Algumas famílias, percebendo que as crianças não eram acometidas pelas distorções na visão, começaram a emigrar para outras cidades, outras, impossibilitadas de seguirem todos, mandaram apenas seus filhos pequenos para serem criados em terras distantes. Tais artifícios parecem terem sucesso limitado, pois é certo que estas crianças tem preservada sua visão ao se afastarem de sua cidade natal, mas parece que ao retornarem para Körlük, em alguns meses os distúrbios começam a se manifestar e os regressos passam a apresentar os mesmos distúrbios dos demais körlükienses adultos. Com ou sem artifícios, em Körlük, apenas as crianças enxergam.


 

LM