Sunday, November 27, 2011

Compotas

Diziam ter tido um passado. Provável ter tido apenas lembranças, e quiçá uma ou outra desilusão, entretanto, espírito dado a sofreres de amores e outras destemperanças, Rafael de Partula exilou-se na freguesia de Montes da Senhora, situada no concelho de Proença-a-Nova. Fixou residência em uma pequena quinta no extremo norte do lugar, quase fora de seu perímetro. Lá, algumas oliveiras e cerejeiras impunham à morada o ideal ar bucólico que ele julgava ser o retiro final buscado a tanto. Até inspirou-se a erguer uma pequena capela em louvor à Nossa Senhora das Cerejas. Um empregado se dedicava a colher os frutos, levá-los ao mercado, cuidar das árvores e manter o sítio livre de ervas daninhas.

Em um verão azul intenso, fragmentos do passado foram até ele, e passou a receber a visita regular de seus filhos. Eles disseram terem-no perdoado, faltava apenas acreditar e querer o perdão: acostumara-se a sofrer em silêncio e só e já não nutria esperanças de reescrever o passado.

Na freguesia havia uma vendedora de compotas. Rafael pouco sabia dela, quase não se falavam, apenas o necessário para adquirir alguns vidros de cerejas ou figos. Já não era jovem, ainda assim deveria ter uns trinta anos a menos do que ele e se não era de todo bonita, não se podia dizer feia, era alegre e tinha negros olhos cheios de feitiços. O perfume da vendedora de compotas despertava sonhos esquecidos em Rafael, mesmo assim não ousava a ir além do bom dia, dois vidros por favor, até logo, passe bem. Já não tinha mais idade, nem disposição par aventurar-se por este tipo de seara. Bastava vê-la duas ou três vezes por semana e, de volta a casa, preparar um dry martini, tomar um Viagra e masturbar-se na banheira, lembrando dos olhos e sentindo o cheiro da vendedoras de compotas de cerejas.

A despensa abarrotava-se de compotas, mas era dia de nova compra.

Bom dia, o que há de novo nas compoteiras?

Ao invés da resposta tradicional ela disparou a mais improvável das perguntas.

Que veia saltada é esta em tua fronte?

Era apenas uma veia saltada como tantas outras em cabeças de velhos mundo afora, esta, entretanto, era a marca de um pacto seu, sua extemporânea marca de Caim e lhe trazia lembranças afogueadas. Surgira a poucos dias, após uma latejância à toa na testa e Rafael desnudou sua insignificância e sua finitude.

É minha.

Ora, se não sei que és tua? Nunca tinha visto, tenho certeza ser nova.

Fez sua compra e saiu, um pouco mais sério do que de costume. Justo ela, ser a primeira, a única, a perceber a existência daquela veia. Outras pessoas estariam igualmente aptas a detectarem a uma intercorrência de dilatação vascular na têmpora esquerda do ancião. Um de seus filhos era médico, sua filha era bióloga, teriam capacidade para tal. Seu empregado, algum vizinho, o açougueiro, o carteiro, padeira. A compoteira enxergou o que ninguém mais havia visto. Rafael sentiu vontade de chorar, se controlou, não queria se tornar um velho chorão, queria preservar uma mínima essência de fibra e não poderia fazer isto na rua. Em casa fez tantos dry martinis quanto seu corpo suportasse. Num instante pupúreo a veia estourou. A vermelhidão misturou-se às cerejas e ao último drinque.


 

LM

Tuesday, November 15, 2011

Diálogos possíveis

Entre pai e filho


 

Eram as primeiras férias desde a ida de Charles Trezinni para o seminário. Tinha 16 anos, cheio de atitudes e idéias revolucionárias tomou resolução de não se fazer padre, tornar-se-ia ateu, comunista e pegaria em armas. Em casa, resolveu ter uma conversa de homem para homem com o pai.

─ Não quero ser padre.

─ Vai ser o que eu quiser. E não me venha com idéias, tem de ir aonde o dinheiro está.

─ Mas pai, e nossos valores, ideais?

─ Deixa isso pros outros. Eles que se lasquem, defenda o teu nariz.

─ É que não me identifico mais com a Igreja, virei comunista e graças a Deus, agora sou ateu.

─ Tanto melhor, assim não vai ficar me enchendo o saco para me arrepender dos pecados e também nunca disse para virar crente, disse para tornar-se padre.


 


 

Entre marido e mulher


 

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Ai meu amorzinho.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Ai meu benzinho.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Querido, acho bom amanhã ver a grade dessa cama, parece que tem alguma coisa quebrada,

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Por Deus e todos os santos, querida, que hora para pensar na grade da cama.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Me desculpe meu amor, mas é que só agora lembrei, já queria ter te falado antes.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Como assim antes? Quando é que você notou?

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.

─ Ora querido, essas coisas estragam.

Nhéc, nhéc, nhéc, nhéc.


 

Sunday, November 13, 2011

O distrato

─ Sou parcela do Além



Força que cria o Mal e também faz o Bem!



Mefistófoles, em Fausto de Goethe.






Muitos e mais ilustres autores já trataram de temas infernais ou diabólicos tendo alguns, descrito com minúcias o sítio de perdição ou as relações tumultuadas entre os homens e o Demônio; acho desnecessário, além de ser uma heresia, citá-los. Existiram ainda estudiosos que tentaram, através de bem elaboradas teorias, definir os aspectos destas entidades que tanto medo inspiram nos crentes e, ao mesmo tempo, tanto os atrai. O respeitado Dr Laughton defende em sua obra, Locuções Satânicas, a possibilidade de existir um inferno metafísico, habitado por seres, cujas existências, seriam possíveis de serem explicadas através de teorias da Física Quântica, e que projeções espectrais de nossa consciência (ou de nosso subconsciente), poderiam sentir todos os tormentos deste inferno, mesmo após a morte do corpo. Considerando apenas os trabalhos tidos como sérios, poderíamos mencionar outras teorias de eminentes estudiosos, mas o fato relacionado a estas questões que mais me impressionou, não foi um estudo acadêmico, mas o estranho desaparecimento de um advogado, o Dr Gaston Abranches Carreeiro.



Alguns céticos atribuíram este desaparecimento ao fato do Dr Carreeiro estar envolvido com conhecidos narcotraficantes, tendo sido eliminado por conhecer demais as operações destes criminosos. Bastante plausível esta hipótese, entretanto alguns fatos inexplicáveis ainda pairam sobre esta história.



No verão de 1973, para cumprir as exigências do curso de Direito, iniciei um período de estágio não remunerado na famosa banca do Dr Carreeiro. Entre os clientes habituais do escritório, havia muitos políticos importantes, grandes industriais, além de ricos empresários, apontados à boca miúda, como sendo Barões da Droga. Devido a tão seleta clientela, chamou minha atenção o fato de um completo desconhecido, com modos educados, apesar de acanhado e com um aspecto humilde, marcar um harário com o Doutor, que não cobrava menos de quinhentos cruzeiros por uma simples consulta. Cobrava valores altos justamente para não precisar atender clientes menos importantes, invariavelmente encaminhados para os estagiários. Assim, quando algum destes clientes concordava em pagar pelo atendimento exclusivo do Dr Carreiro, ele o recebia acompanhado por um advogado iniciante ou um estagiário destinado a ser o verdadeiro condutor do processo, cabendo ao Doutor apenas assinar as argumentações e quando estritamente necessário, comparecer a alguma audiência, não deixando de cobrar até os minutos.



Este desconhecido de aparência humilde tendo solicitado uma audiência com o Dr Carreeiro, fora aconselhado pela recepcionista a ser atendido por outro advogado, com a agenda menos ocupada e com honorários mais de acordo com pequenas causas, além de que, o Doutor só teria um horário livre em uma semana. A questão financeira não pareceu ser um obstáculo, pois revelou estar disposto a pagar em dobro para que pudesse ser atendido no mesmo dia e, diante da firme resolução em pagar, ele foi conduzido ao escritório do Dr Carreeiro, após mais de quatro horas de espera. Eu fui escalado para ser seu assistente.



O cliente era um industrial chamado João Walter Gomes e apesar de seu aspecto desleixado, seus modos eram de uma pessoa com certo refinamento; falava com clareza e sua fala destoava do aspecto simplório, mesmo com o evidente estado de inquietação e medo estampado em seu semblante.



─ Muito bem meu senhor, o que o traz até meu escritório?



─ Doutor, antes de explicar as minúcias do meu caso quero informá-lo do meu firme propósito em aceitar todas suas exigências, inclusive quanto aos honorários, contanto que o senhor aceite e conduza pessoalmente este processo.



─ Mas sem saber do que se trata, não posso dar nenhum parecer.



─ Pois bem, quero cancelar um contrato, um contrato muito peculiar.



Estendeu na direção do Doutor, um envelope grande, bastante surrado onde havia um documento manuscrito em tinta escura, marrom talvez. Não pude ler o contrato, estava com o Doutor, mas descobri seu conteúdo após o seu esbravejamento.



─ O senhor está achando que eu não tenho mais nada para fazer? Isto aqui é uma firma séria e respeitada, pouco dada a brincadeiras, portanto se era só isto que o senhor tinha para me mostrar, considere encerrada a consulta.



Bastante irritado por estar perdendo seu precioso tempo, o Dr Carreeiro atirou o documento sobre a mesa e continuou.



─ Contrato de venda da alma ao Diabo! Era só o que me faltava! Faça-me o favor!



─ Tenho ciência da importância de seu tempo, mas, mesmo que o senhor não aceite meu caso, eu já paguei por uma consulta, portanto queira por gentileza escutar o que tenho a lhe falar e depois o senhor estará livre para tecer suas considerações e aceitar ou não este caso.



Ele proferiu estas palavras em um tom de voz baixo, porém firme, encarando diretamente os olhos do Doutor que não teve outra saída que não fosse, pelo menos, escutar aquela lengalenga.



─ Procurarei ser breve e sucinto. Há cerca de cinco anos, minha empresa, uma fabrica de garrafas e artefatos de vidro, começou a apresentar resultados negativos em seus balancetes, mas indiferente aos rumos da empresa, continuei mantendo o mesmo padrão de vida, com freqüentes viagens para a Europa, safáris pela África, festas monumentais freqüentadas e comentadas pela fina flor de nossa sociedade, enfim, mantive-me alheio aos problemas da fábrica até o dia que um dos diretores informou que estávamos à beira da falência. Interrompi todas as minhas atividades sociais e passei a me dedicar exclusivamente ao processo de recuperação da empresa. Telefonei para ministros, generais, empresários, banqueiros, tudo em vão. Até que o inevitável aconteceu. Tivemos a falência decretada e, meus bens particulares, seqüestrados pela justiça. Após este fato vários acontecimentos foram se sucedendo, como em um efeito dominó; tive as portas da sociedade fechadas para eu e minha família, nossos amigos debandaram, minha amante me trocou pelo síndico da massa falida, dívidas que estavam sendo pagas ao longo dos anos foram imediatamente executadas, enfim, de uma hora para outra, eu estava na miséria, não podendo sequer, manter meus filhos na escola, o que foi a gota d´água para minha esposa, que me abandonou levando as crianças. Não tendo mais ninguém a quem recorrer e num momento de insânia, inspirado em Fausto, tencionei invocar o Diabo e fazer um pacto. Recorri ao livro de nigromancia, In Saecula Saeculorum In Albis, e recitei algumas palavras malditas, mas como não fui atendido, recorri a outra maneira de fazer o pacto, descrita no livro e, com meu próprio sangue, redigi este contrato no qual apus minha assinatura. Para meu espanto, no outro dia, já ignorando aquelas besteiras de Satanás, ao pegar o Contrato para destruí-lo, percebi ao lado de minha assinatura a rubrica: LCF. Imaginei estar vendo coisas e me sentindo cada vez mais insano, tomei a decisão de pôr um fim em minha vida miserável. Encontrei um lugar que nos traz água à boca para um afogamento e quando me preparava para atirar-me às águas do rio, um homem me chama e pergunta sobre meu intento. Soluçante, contei-lhe minhas desgraças e meu propósito. Era um missionário espanhol chamado Carlos Herrera. Ele me acalmou, consolou, falou palavras confortantes e me convidou para ir até a casa do mais poderoso dos lideres, a casa de Deus.



Esta conversa aparentemente sem propósito, parecia ter finalmente atraído a atenção do Doutor.



─ Prossiga senhor Gomes.



─ A proposta do missionário me pareceu bem mais vantajosa do que a de Lúcifer: bastava doar dez por cento de meus bens para a igreja e passasse a contribuir mensalmente com mais dez por cento do que eu viesse a ganhar, com a glória de Jesus. Desta forma, segundo ele, recuperaria meus bens alem de garantir um lugar no Paraíso, algo bem melhor do que banhar-se nas águas do Letes. Passei a participar assiduamente dos cultos, doei, mesmo estando temporariamente indisponíveis, parte de meus bens para a igreja e com a graça de Deus, obtive algumas vitórias judiciais no processo falimentar, como o desbloqueio de grande parte de meu capital particular; em seguida consegui reassumir o controle da fábrica, renegociei dívidas em condições favoráveis e após alguns meses, alcancei minha plena reabilitação, muito mais completa do que a de César Birotteau. Recuperei minha família e minha amante e graças a retomada de meus rendimentos, passei a ser o maior doador da igreja. Estava de volta e agora em grande estilo, ao lado de Jesus. Mas havia aquele contrato e nem sei por que, o mantive guardado todo este tempo, sem revelar a ninguém, nem mesmo ao pastor. De uma hora para outra comecei a pensar a todo o instante nele, não me saia do pensamento. Eu orava, tentava esquecer, ignorava, mas ele estava lá, latente, apenas esperando o momento de reclamar seu pagamento. Encontrei na igreja o conforto necessário para manter a tranqüilidade quanto ao destino de minha alma, que já tinha seu lugar assegurado, não obtendo no entanto a mesma segurança quanto aos meus bens e entrei em uma crise depressiva terrível e me isolei completamente, até que recorri mais uma vez, ao In Saecula Saeculorum In Albis e descobri a possibilidade de obter alguma chance se nomeasse um negociador ou representante. É onde o senhor entra.



─ Mas como poderei eu intimar Lúcifer? Devo mandar a notificação para onde diabos afinal? Isto tudo não passa de uma tremenda maluquice.



─ Eis a minha proposta: Como ainda sou um homem rico, estou disposto a pagar muito bem por este distrato, além de pagar mensalmente seus honorários, a título de manutenção do processo, bastando para isto, que o Doutor elabore todas as argumentações, assine e mantenha arquivado em seu escritório até que surja algum fato novo.



A menção de um lauto pagamento e mais um significativo valor todos os meses, por um período indefinido, a se estender por anos, aguçou o interesse do Dr Carreeiro por aquele caso. Vislumbrava a maneira mais fácil de ganhar dinheiro que se apresentara em toda a sua carreira.



─ Quais argumentos, poderíamos apresentar? E como o senhor pretende efetuar estes pagamentos



─ Argumentaremos que minha recuperação se deve ao ingresso na igreja e não pela intervenção de Satanás e estou disposto a assinar um contrato de serviços advocatícios além de deixar um imóvel de bom valor como garantia para pagamento dos valores acordados.



O Dr Carreiro não teve mais dúvidas, no dia seguinte a esta conversa, encarregou-me de acompanhar o cliente até o cartório de imóveis para efetuar a hipoteca e ao cartório de registros e notas, para autenticar o contrato. Neste dia, o senhor Gomes apresentou-se de maneira diversa ao dia anterior, estava bem vestido, barbeado e, principalmente, aparentava uma serenidade própria daquelas pessoas que vivem de bem com a vida, era outra pessoa.



Terminado o estágio, fui trabalhar em um banco e praticamente não tive mais contato com o Doutor, a não ser em encontros fortuitos no fórum. Somente muitos anos depois, li nos jornais sobre seu misterioso desaparecimento. Apesar do caráter puramente lúdico daquele caso de venda da alma, nunca o esqueci, talvez por obra de alguma veia supersticiosa, e esta foi minha primeira lembrança ao ler as manchetes nos jornais. Procurei obter mais informações do caso. Segundo o depoimento de testemunhas, a última pessoa a ser recebida pelo Doutor, antes de sumir, foi um certo Lúcio Fernandez de Dite, personagem desconhecido de todos no escritório e descrito como sendo um cavalheiro muito refinado, que queria tratar de um litígio antigo movido contra ele, por um cliente do Dr Carreeiro, falecido alguns dias antes. Constava ainda nos depoimentos, que nada mais havia sumido do escritório a não ser a pasta do cliente João Walter Gomes. Em nenhum processo, os funcionários da banca encontraram qualquer coisa a respeito deste Lúcio Fernandez. Cada vez mais curioso, fui atrás de informações sobre o senhor João Walter, tendo encontrado, no jornal de uns dias antes, uma nota de falecimento. Investigando as causas da morte, descobri que ele morreu do coração, minutos depois de ter recebido a visita de alguém que se identificou apenas como sendo um velho amigo cujo nome, de acordo com um cartão de visitas encontrado na mão do falecido, era Lúcio Fernandez de Dite.



Já não podia deixar de esclarecer esta história fantástica e procurei encontrar o senhor Lúcio, tarefa bem mais fácil do que poderia supor: ele estava detido em uma delegacia para averiguações, por ser suspeito do desaparecimento do Dr Carreeiro. Valendo-me de minha credencial da OAB, pude solicitar uma visita como se fosse seu defensor e travar uma conversa absurdamente reveladora.



─ Não chamei nenhum advogado. Aliás, não preciso de advogado.



─ Não vim para defendê-lo, apenas fui atraído pelo caso por ter, há muito tempo atrás, conhecido o Dr Carreeiro e também o senhor João Walter Gomes.



Mencionei os dois nomes para ver qual sua reação.



─ Agora estou lembrado. Você é o estagiário que redigiu o distrato do Gomes. Você não passa de uma sombra também.



─ O que o senhor quer dizer com isto?



─ Uma sombra como o Gaston. Fique você sabendo que ele não está desaparecido, ele simplesmente nunca existiu. Não passou de uma projeção espectral do João Walter. Veja a ironia. Ele tentou me enganar, mas acabou procurando ele mesmo para passar o ônus do contrato ao contratar a própria projeção.



─ Não estou entendendo o que o senhor quer dizer.



─ Você acredita que é um ser único e absoluto, mas não passa de um reflexo daquilo que outra pessoa produz. Sua vida boa e confortável não é nada mais que um sonho de algum favelado qualquer, assim como a existência do seu amigo Doutor não passava de um reflexo daquele bobalhão do Gomes, que estava fadado a cair nas minhas garras, não importando o quanto esperneasse.



─ Você quer que eu acredite nestas sandices? Se você fosse quem está querendo insinuar que é, ainda estaria nesta cadeia imunda?



─ Que melhor lugar para um diabo, do que este? Enquanto descanso, recruto novos soldados nas celas e novos aliados nas salas dos advogados.



─ Não seja insano e use um clichê menos óbvio..



─ Insana é o que vocês chamam de vida. Você sabe que estou falando a verdade. ─ Tanto é que já vejo em seus olhos, prestes a se apagarem, o medo de se descobrir o subproduto de um desesperado e não restar para você, nada mais do que uma vaga lembrança, um déjà vu no sonho de outrem.



Não tive mais paciência para suportar tantas demências e saí imediatamente da delegacia. Estava aturdido com aquele palavrório todo e minha cabeça doía. Precisava ir para casa o mais rápido possível. Fui direto para o quarto, sentia urgência em descansar. Caí em um sono profundo, pululado por sonhos inquietantes e desconexos, até acordar, muitas horas depois, em um catre de um barraco da favela. Não sei como fui parar naquele lugar miserável e minha cabeça ainda doía muito. Um gosto forte de água-ardente vagabunda amargava minha boca. Estava na hora de ir trabalhar.



Tinha mais um banco para levantar paredes e na mente, lembranças que não eram minhas.



LM

Sunday, November 06, 2011

A Anfisbena e as cerejas

Plínio e Bruneto Latini a descreveram, cada qual a seu modo, se não a viram, intuíram-na e Sir Thomas Browne a negou, mas isto não impediu a Anfisbena de ter existido. Muito menos impediu-a de ter experimentado do fruto proibido. No Tratadus Originalis, de Augustiano Priemeto a clássica descrição do fruto proibido como sendo uma maçã é categoricamente refutada e, em seu lugar o autor coloca a cereja. A troca do fruto deu origem ao mito no qual o veneno da Anfisbena se teria originado de duas cerejas da árvore do bem e do mal colocadas em cada presa. Tendo a Anfisbena duas cabeças, podemos supor ter sido Deus enganado pelo animal que, de forma sutil, escondeu parte de seu corpo. A maldição divina caiu sobre a serpente a Anfisbena, para não chamar a atenção para si, desde então vive esgueirando-se entre sonhos, mitos e realidade. Não há registros conhecidos descrevendo a cereja carregada de veneno, mas a tradição oral vem colocando esta fruta em lugar de destaque em coberturas de bolos e sorvetes, bem como no toque final de drinques e batidas.

Não satisfeita em ludibriar o Criador, a Anfisbena voltou ao local do crime e municiou-se com considerável quantidade de frutos da árvore do Jardim do Éden. Pequenos, tornaram-se carga fácil de ser transportada e este estoque garantiu a perpetuação dos poderes do animal até os dias de hoje. Dizem que quando a Anfisbena se distrai, deixa cair uma cereja e aquele que a encontra e a devora é tomado por alucinações, mas isto ainda não explicaria como ela consegue extrair veneno mortal da fruta. Theodor Kutb Wufniks III nos apresenta o relato de um caçador das Ilhas Salomão, que teria encontrado algumas cerejas em um ninho abandonado de Anfisbena: "Nunca pensei em experimentar este tipo de fruto, sempre tive em bom termo os tantos alertas acerca de seus perigos, mas um átimo de desassossego, experimentei uma. O que parecia ser algo banal e corriqueiro, mostrou-se uma aventura intensa, da primeira ficou um gosto na boca, não sabia se bom ou ruim, e tive de tomar outra. Enquanto se mastiga, não há nada melhor, instantes depois sua cabeça pesa e se arrepende profundamente de ter sucumbido, mas passados alguns dias, volta aquele gosto na boca, nem bom nem ruim e temos de espremer outra entre os dentes." Segundo Wufniks III, o pobre homem perdeu completamente o juízo e partiu, floresta adentro, determinado a exterminar a Anfisbena, ou, segundo os céticos, a tomar-lhe a carga de cerejas.

LM