Saturday, June 30, 2012

Salomão Silva, o arcadiano da rua das putas, ou a imitação de Funes

Penso ter sido Funes o primeiro caso relatado e descrito em publicações científicas. Borges soube bem, como sempre, fazer uma descrição poética do passar dos dias deste memorioso, não sem antes, presumo, ter se debruçado sobre os relatos médicos do doutor Aquilino Pontes de Villa Real, onde este estranho aumento da capacidade de retenção de informação do cérebro humano é descrito. Adoto o sábio procedimento do argentino e também evitarei fazer uso da palavra recordo. Antes, penso ter sido assim que aconteceu, ou quase, quando estava passando em frente a uma loja de roupas usadas, nas imediações das ruas de prostituição do centro, quando esbarrei com um sujeito que saia da loja. Era Salomão Silva (fiquei sabendo mais tarde). Desculpei-me pelo encontrão e sem alterar o ar de enfado que já antes enraizara-se em seu rosto, respondeu que isto iria acontecer, não deveria preocupar-me com isto. Pensei em falar qualquer outra coisa, nada ocorreu e calei, ele também, mas não saímos da calçada. Para emitir som e sabendo que não me faria compreender (me estava incomodando ficar ali parado) pronunciei et in Arcadia ego e ele começou a entrecortar frases em línguas outras, suspeito, "auch ich war in Arkadien geboren" e "moi, aussi, je fus pasteur em Arcadie. Desfez-se um pouco do ar de enfado e esboçou um começo de sorriso ao confidenciar-me, sem saber exatamente porque, que estava a enumerar algumas possibilidades de desdobramentos desta frase, inimagináveis para Sir Joshua Reynolds, muito menos para o rei Jorge III. Fiquei um pouco confuso, havia lido sobre Arcadia, no dia anterior, as argumentações de W. Weisbach na Gazette des Beaux-Arts de 1937 e uma passagem da Le vite de' pittori, scultori, et architetti moderni de G. P. Bellori. Este livro é de 1672 e não conheço muitas traduções ou exemplares no Brasil, logo imaginei tratar-se de algum historiador. E ele continuou, empolgado, a citar estudos acerca do tema: Wielhelm Gustaffsön, nas Parafrases inter-relacionais, de 1633; Os evangelhos apócrifos de Judas Iscariot, escrito em 1599 por Estevan Garcya Orlentiano de Toledo. Obras que eu apenas escutara breves referências, quase lendárias e aquele estranho não apenas as citava, como recitava trechos que, com meu parco latim e meu pior ainda alemão, apenas intuia.

    Encheu-me de curiosidade e de ânimo conversar com tão culto senhor, apresentamo-nos e expliquei que estava fazendo um estudo sobre história da arte no medievo e perguntei-lhe qual sua titulação (nós, homens civilizados damos extrema importância aos títulos) e ele limitou-se a dizer que jamais frequentara escolas. Disse-me ser dono daquele brechó, um lugar de coisas do passado, e que falou já ter-me visto passando por ali. Objetei, não recordava (em negativa posso valer-me desta palavra) de ter andado por rua tão mal afamada. Ele ignorou minha resposta e prosseguiu: "A primeira vez foi em 1976, 26 de abril, às 15h33 de mãos dadas com um senhor, (seu pai)", ele descreveu as minhas vestimentas e de meu pai, evitarei entrar nestes pormenores, além de serem irrelevantes, não ousaria a tentar fazê-lo, mas este primeiro resgate do passado avivou minha memória e penso que realmente ocorreu. Comuniquei-lhe que talvez fosse apenas aquela vez, em infância, sem dar-me conta que aquele estranho acabara demonstrar ter mais lembranças minhas do que eu mesmo. Novamente ele ignorou-me e começou a fazer uma lista de outras datas em que passei em frente a sua loja, foram 87 vezes e, num jorro ininterrupto, porém coeso, ele descreveu não só datas, mas minhas roupas, horário, clima, quantas vezes conversei com as putas, se estava só. Falou-me de coisas que queria ter esquecido, ou antes, fingia que nunca aconteceram, mesmo que ainda fizessem parte de meu presente: O que estaria então fazendo em tão má afamada rua? Evitei responder, enquanto isto Salomão Silva falava de mim. Por ter recordações de detalhes ínfimos das minhas 87 passagens em frente da sua loja, ele pode deduzir informações que estavam além do seu campo de visão. O dia da morte de meu pai, do meu casamento, da minha separação, do nascimento dos meus filhos, até falou que algumas roupas minhas já tinham ido parar em sua loja e falou para quem as havia vendido.

    Não pude deixar de fazer relação com Funes e tentei mencionar tal fato, Salomão adiantou-se e falou que Funes teve a má sorte de ter sua revelação após sua queda, enquanto ele já nasceu assim e tem recordações a partir do sexto mês de gestação de sua mãe, quando não passava de um feto. Poderia ter ignorado tudo aquilo, taxar como coisa de louco, entretanto sentia serem verdadeiras suas lembranças, especialmente após tantos e tão precisos relatos a meu respeito. Convide-o para sairmos da calçada, sugeri um bar ali perto, era um boteco que nunca fechava as portas e nossa conversa durou o restante do dia e toda a noite. Falou-me de suas lembranças, tantas que não caberiam nem em modernos computadores, descreveu-me todos os estudos sobre a Arcadia que havia lido, mas quando perguntei sobre sua família ele calou. Lembrava de coisas que aconteceram quando ele ainda estava no ventre materno, mas coisas dele, apenas dos outros, não tinha lembranças dele, de como ele era quando criança, ou quando era mais jovem, se amores teve, se casou-se, ou se teve filhos, suas lembranças eram de outras pessoas. Recordava de pessoas que podem ter sido seus parentes, sabe o que fizeram em cada dia, cada minuto, mas não consegue ver-se nestas lembranças e desde um tempo impreciso (eis o único lapso em sua memória) vive só, como uma imensa biblioteca vazia de pessoas.

    Senti um profundo pesar, maior ainda respeito, durante a noite, enquanto ouvia Salomão Silva falar, elaborei planos para usufruir daqueles precisos registros do tempo, ao amanhecer desisti. Percebi que apesar de tão assombrosa quantidade de recordações, ele não sabia exatamente quem era, tampouco sabia organizar suas lembranças de forma a produzir novos conhecimentos, era incapaz de formular um juízo de valor, muito menos de tecer algum comentário que remetesse à abstração, antes apenas citava autores, filósofos, noticias de jornal, transeuntes que falavam sobre determinado tema, mas sua própria opinião estava soterrada sob inimaginável quantidade de informação. Desisti de minhas intenções, especialmente quando percebi que, apesar de não ter memória própria, de viver só, de não poder formular um raciocínio próprio, ele não era infeliz. Às vezes enfadava-se, mais com as lembranças dos outros do que com sua própria condição, parecia não se dar conta da própria existência e não seria eu quem o tiraria de seu sono cheio de sonhos dos outros.

     Nos despedimos, falei que jamais esqueceria nossa conversa (arrependi-me de proferir tamanha blasfêmia na frente de Salomão Silva) ele falou a mesma coisa (com absoluta propriedade). Em casa pus-me a registrar este fabuloso encontro e dei-me conta de estar reproduzindo o mesmo modelo de Salomão Silva, pois escrevia sobre um memorioso, coisa já feita por Borges, achando estar fazendo algo muito importante e quanto mais eu tentasse reescrever para dar ares de assunto novo e autoral, mais eu me frustrava, percebia estar mais ainda tentando imitar o argentino, ou antes, reescrever o Funes, como Menard tentou reescrever o Quixote. Acabei duvidando de minha memória. Teria sonhado tudo aquilo? Salomão Silva não existe fora de meus devaneios? Estava apenas plagiando a ideia de Menard? Eu teria ido àquela rua ontem e mais 87 vezes? Pensei em terminar este relato com a morte de Salomão Silva, mas se ele realmente existisse, teria de matá-lo, tal pensamento fez percorrer um tremor por meu corpo, havia me deixado influenciar demais por acontecimentos confusos de uma noite longa, a mais extensa das noites de minha vida. Resolvi deixar de delírios, colocar as ideias no lugar, iria à loja de Salomão Silva naquele instante. Apavorei-me com a possibilidade: se fosse e ele não existisse, estaria definitivamente louco e não passava de um insignificante imitador de Borges, um macaco fazendo caretas para se parecer com um homem; se ele lá estiver, corro o risco de saber-me apenas mais uma de suas inumeráveis recordações.

 
 

LM

Sunday, June 24, 2012

Não espere de mim nada mais do que a razão, ainda que ela falhe

Ele sempre foi o mais talentoso, o mais elegante, mais inteligente, espirituoso e uma série de adjetivos que escuso reproduzi-los para não parecer que meus atos tiveram como motivação a inveja. Não, afianço-lhes não se tratar disto, embora todos nos sentíssemos eclipsados. Ouvi, não sem objeções, de vários dos do nosso grupo, desabafos com tons de desilusão por se acharem tão bons, e, talvez, até melhores do que ele, sem, no entanto, terem a chance de poderem brilhar sem serem vistos como um satélite. Inveja? Não de minha parte, agi de acordo com a razão pura.

A primeira série de homenagens fúnebres ocorreu alguns dias após a primeira crise. Os médicos não deram muitas esperanças e, diferenças à parte, todos sentíamos um profundo respeito e, ainda, nutríamos bons bocados de nossa velha amizade. Enquanto havia um resquício de lucidez, promovemos declamações leituras dramáticas, exposição de trabalhos seus, retrospectivas, tudo em alucinante corrida contra a morte. Burla feita, à medicina e a indesejada das gentes, quer seja por efeito de tamanha dose de remédios espirituais, quer seja por pura pachorra, ele, ou seu corpo, prolongam sua estada. Toda a emoção das despedidas antecipada reverberou entre nós e até ameaçamos uma reaproximação. Plenamente recuperado, voltamos ao nosso secundário papel enquanto ele brilhava, Fênix, mais do que nunca.

Evito falar em tempo, posto, não me ter dado conta de quanto se passou, talvez um ano, ou pouco mais e nova crise, muito mais arrasadora, sem qualquer esperança. Feita a primeira, faríamos a segunda despedida ao lado de nosso amigo, ainda em vida. Novas leituras, exposições, declamações, encenações, choros, revelações, mais algumas performances e o quadro permanecia inalterado, passando a estável, até recuperar-se, dantescamente emergia de mundos impenetráveis. Falseio ao querer fazer-me preciso, ainda mais se tratando de matéria, justamente, imprecisa, mas houvesse meio de medir, poderia apostar em menos entusiasmo e emoção nas segundas exéquias. Apenas impressão, nada mais.

Fizemos ainda uma terceira despedida. Limitar-me-ei a informar apenas isto.

Se já existia alguma frustração, algum sentimento de injustiça, arrisco até, alguma dose de inveja, repito, não de minha parte, tantas homenagens fúnebres sem cadáver o elevaram a condição de celebridade. Sua fama alcançou alturas incríveis, enquanto nós, mantínhamo-nos presos ao chão, ao labor braçal e bruto dos servos a suster os nobres.

Nada mais havia a ser feito, não poderia deixá-lo envelhecer e minguar, não agora. Haveria de imortaliza-lo e para isto era preciso terminar o que a natureza havia apenas ameaçado. Fui à sua casa, era desnecessário anunciar-me, tinha-me quase como um familiar. Encontrei-o ainda em pijamas, lembrei de uma passagem ocorrida nove dias antes da morte de Kant e pensei em conceder-lhe das Gefühl für Humanität – o senso de humanidade – e permitir-lhe trajar-se de maneira solene como a situação exigia, mas ele não teria mais nove dias.

 
 

LM

Friday, June 08, 2012

Nomes

Não me proponho, com muita frequência, contar a história de nomes próprios, muito menos sendo de parentes. Abro uma exceção, mais por um carinho, dos tempos de criança, reservado a quem escolheu o nome, do que ao personagem batizado. Antes de chegar ao nome, falemos brevemente de meu tio Bartolomeu Mendes. Ele se dizia cantador e violeiro de fina cepa, minhas lembranças não contam a mesma coisa. Não consigo esquecer a maneira furiosa como ele agredia as cordas do violão enquanto maltratava tons e versos. Como gostava muito dele – era o único adulto da família que se dignava a falar e brincar com as crianças -, credito o desafino e a inépcia a algum gole a mais de cachaça ingerido antes das apresentações.

Para meu tio Bartolomeu, as coisas jamais pareciam seguir a normalidade dos demais senhores sisudos de nossa família e quando seu filho, Quininho, nasceu ele ainda tinha dúvidas se o batizaria Cabotino ou Baldaquino. Naquela época não havia exames de ultrassom e não recordo se havia uma opção feminina e talvez seja melhor nem saber. Resolvida, sabe-se lá como, a dúvida, Bartolomeu apresentou ao mundo seu filho Baldaquino Mendes, logo alcunhado de Quininho. Não tivesse sido esta a escolha, certamente teria como apelido Tininho. Não teve perdas ou ganhos.

Quer seja por ignorância, ou por falta de interesse em pesquisar, apenas na graduação fiquei sabendo o significado do nome posto, bem como da opção preterida. Tenho dúvidas se alguém da família saberia. Arrependo-me de não ter procurado os significados antes, poderia ter perguntado ao tio Bartolomeu de onde buscara inspiração. Agora resta apenas a versão de Quninho, de que seu nome é uma homenagem a um importante artista dos estrangeiros.

Feita esta breve hagiografia, um tanto do tio Bartolomeu, outro, etimológica, do nome de meu primo, descobri, não sem surpresa, que os Mendes, enfim, terão seu Cabotino. Recebi o convite, um tanto intempestivo, do casamento de Quininho. Justifica a pressa, o comunicado, no mesmo convite, que um impaciente herdeiro está a caminho. Baldaquino está com bodas marcadas com Arlequina Beviláqua e aguardam, ansiosos, o nascimento de Baldaquino Bartolomeu Cabotino Beviláqua Mendes.


 

LM