Lembro-me de um conto de Clarice Lispector
sobre um cachorrinho ruivo com uma menina ruiva. Lembro por ter visto um
cachorrinho ruivo hoje, alegre, abrindo voluntariamente a boca para que a
língua pudesse ficar dependurada, ora de um lado, ora do outro. Se há
sentimento nas almas caninas, este cãozinho ruivo estava sentindo-se verdadeiramente
feliz. Coleira verde ao pescoço, pelo curto brilhante, bem nutrido, certo ter
escapado há pouco, eis o motivo da alegria, livre, agora conheceria o mundo e a
barriga ainda estava cheia. Saltava de um lado para o outro, cheirava um
transeunte, ameaçava seguir outro, voltava correndo. Estava pleno.
Apareceu a menina da minha história, não
ruiva como a de Clarice, mas com a morenice herdada das senzalas. A menina
parou e o cãozinho ruivo veio, inteiro faceirice, se abaixava nas patas da
frente, como se ameaçando um bote, empreendia corrida ao redor dela, dava
latidinhos curtos, era feito para ela. A menina não andava só, sua mãe
interrompe sua ida para algum lugar e a chama. Não estou perto suficiente para
ouvir a conversa, mas entendo quando vejo a menina apontar para o cachorrinho e
olhar para os lados. Perdido, sem ninguém por ele, carros passando muito rápido
na rua.
A mãe também olha o entorno, procura
algo, ou alguém, me avista, volto meu olhar para meus afazeres, que não eram
mais importantes do que ler o jornal. As notícias não me interessavam, mesmo
assim afundei-me nas páginas. Fiquei um tempo atrás do minha trincheira, quando
saí via a menina e a mãe caminhando para algum lugar, a pequena ainda parou e
deu uma última olhada para trás. O cãozinho ruivo continuava com sua alegria,
seguia um senhor circunspecto, como se lhe imitasse os passos graves, logo
deixou o senhor circunspecto e cercou um rapaz, provocando-o para uma corrida
ou mesmo para uma luta.
Por um lapso de tempo impreciso, que
poderia ser de uns minutos, ou de uma vida, pensei em como o cãozinho poderia
ser feliz em minha casa, poderia brincar todos os dias com minha filha e aos
sábados ela e a mãe lhe dariam banho de mangueira e se molhariam tanto quanto o
pestinha. Claro, mesmo limpinho, não o deixaria entrar em casa, mas faria uma
bela casinha, com bom telhado a ser colocada sob a goiabeira e lhe daria bons
ossos e até algum pedaço de carne das sobras do churrasco de domingo. Sim, o
danadinho poderia ser muito feliz em minha casa, seríamos todos felizes.
Afundei-me novamente no jornal e só tornei a sair quando se passara tempo
suficiente para alguém ter se apiedado de um bichinho tão simpático e ingênuo,
ao ponto de tê-lo adotado. De fato não o vi.
Pude voltar para minha vida. Fui caminhando
com um certo aperto no peito, coisa boba, era só um cãozinho. O aperto era pela
família que inventara. Quase pensei serem lembranças aqueles sonhos, serem
sentimentos os delírios e serem pessoas fragmentos de solidão. Não há mais
tempo para uma família. Se a tive, esqueceram-me. Continuo a andar e encontro
novamente o cãozinho ruivo, boca mais aberta ainda, língua bem comportada:
estava estendido no meio da rua, envolto em vermelho.
Não vi a menina e sua mãe, nunca mais as
vi, nem as que dariam banho no pestinha aos sábados.
LM