Entre Natal e Ano Novo
um abandono meio que toma conta da cidade, casas com jornais acumulando-se na
varanda e um cachorro uivando de fome (sem ter os pedidos ouvidos, obriga-se a
comer a ração com cara de serragem já úmida de dias chuvosos e rodeada de
lesmas), uns comércios abertos outros fechados e a noite entra em período de
trégua, sem as graças enfeitadas sob o luar. Os dias e noites se parecem, sem
distinção de se domingo ou terça-feira. Ônibus preguiçosos amarelam a rua de
hora em hora e na calçada semi-deserta um lobo solitário, caçador sanguinário,
evita os clarumes dos postes. Ele aguça a visão, escuta o ar, fareja e então
sente o cheiro indefectível de Cashmere Bouquet. Os sentidos estão alerta, o
coração pulsa tenso e ele vai em direção à presa. Inocente sob a luz do último
poste, não percebeu o perigo, o lobo já sente o gosto de sangue.
Maldição, esqueceu
as palavras, tenta e lembra da mãe puxando o terço. Não, Aves-Marias não. A
presa o viu. Passar reto? Ela se vira, está pronta para a fuga. Ave Maria cheia
de graça. Ela tem rugas demais, mas é esguia. Bunda com enchimento? A caça
arreganha as presas, faltam-lhe os dentes dos caninos para trás. Cara de
cavalo, magra, um palmo mais alta do que o lobo solitário, ralos cabelos
aloirados. Puta que o pariu, é um travesti.
— Oi gatinho.
— Oi.
— Quer se divertir
um pouco? Tenho tudo que tu procura, tanto faz, tu que escolhe amor.
— Como assim tudo?
— Se quiser um
cuzinho bem apertadinho e úmido, tá aqui. Agora se quiser ser comido bem
gostosinho, tenho uma pica bem dura, não muito grossa, pra não machucar. Tu é
tão novinho...
Escuta passos
atrás. Não pode se virar, deve ser o resto da manada vindo em defesa da
desgarrada. É preciso fugir, não poderá enfrentar a todos. Volta para a
penumbra, aperta o passo e vira na próxima esquina. Finalmente um lugar seguro.
Entra no Bar e Lanchonete Central e pede uma cerveja, um conhaque e um
X-salada-egg no balcão. Disfarça, tira a carteira do bolso e conta o dinheiro
para ter certeza de que vai poder pagar a conta. Não vai poder pedir outra
cerveja, a garrafa já está quase no fim, é melhor deixar o restinho pra quando
vier o X.
Alguém senta na
banqueta ao lado. É a, ou o cara de cavalo.
— Oi gatinho, saiu
tão apressadinho. Paga um lanche?
— Só tenho grana
pro meu.
— Tu é tão
novinho, tão bonitinho, perdido na noite. A tia Rose cuida de tu. Deixa que eu
pago pra tu, amorzinho.
Ela pediu outra
cerveja, bem gelada, ele deixou de lado o restinho da sua garrafa e tomou de
uma só vez um copo, desceu bem, toma rápido e sem fazer cara para mostrar que é
durão.
Setenta e sete por
cento dos ataques de lobos em caçadas resultam em fracasso. Já foram três esta
noite. O lobo toma mais um copo de cerveja, sente o gosto do sangue.
LM
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