Saturday, January 05, 2013

Gosto de sangue na boca do lobo

 
Entre Natal e Ano Novo um abandono meio que toma conta da cidade, casas com jornais acumulando-se na varanda e um cachorro uivando de fome (sem ter os pedidos ouvidos, obriga-se a comer a ração com cara de serragem já úmida de dias chuvosos e rodeada de lesmas), uns comércios abertos outros fechados e a noite entra em período de trégua, sem as graças enfeitadas sob o luar. Os dias e noites se parecem, sem distinção de se domingo ou terça-feira. Ônibus preguiçosos amarelam a rua de hora em hora e na calçada semi-deserta um lobo solitário, caçador sanguinário, evita os clarumes dos postes. Ele aguça a visão, escuta o ar, fareja e então sente o cheiro indefectível de Cashmere Bouquet. Os sentidos estão alerta, o coração pulsa tenso e ele vai em direção à presa. Inocente sob a luz do último poste, não percebeu o perigo, o lobo já sente o gosto de sangue.
Maldição, esqueceu as palavras, tenta e lembra da mãe puxando o terço. Não, Aves-Marias não. A presa o viu. Passar reto? Ela se vira, está pronta para a fuga. Ave Maria cheia de graça. Ela tem rugas demais, mas é esguia. Bunda com enchimento? A caça arreganha as presas, faltam-lhe os dentes dos caninos para trás. Cara de cavalo, magra, um palmo mais alta do que o lobo solitário, ralos cabelos aloirados. Puta que o pariu, é um travesti.
— Oi gatinho.
— Oi.
— Quer se divertir um pouco? Tenho tudo que tu procura, tanto faz, tu que escolhe amor.
— Como assim tudo?
— Se quiser um cuzinho bem apertadinho e úmido, tá aqui. Agora se quiser ser comido bem gostosinho, tenho uma pica bem dura, não muito grossa, pra não machucar. Tu é tão novinho...
Escuta passos atrás. Não pode se virar, deve ser o resto da manada vindo em defesa da desgarrada. É preciso fugir, não poderá enfrentar a todos. Volta para a penumbra, aperta o passo e vira na próxima esquina. Finalmente um lugar seguro. Entra no Bar e Lanchonete Central e pede uma cerveja, um conhaque e um X-salada-egg no balcão. Disfarça, tira a carteira do bolso e conta o dinheiro para ter certeza de que vai poder pagar a conta. Não vai poder pedir outra cerveja, a garrafa já está quase no fim, é melhor deixar o restinho pra quando vier o X.  
Alguém senta na banqueta ao lado. É a, ou o cara de cavalo.
— Oi gatinho, saiu tão apressadinho. Paga um lanche?
— Só tenho grana pro meu.
— Tu é tão novinho, tão bonitinho, perdido na noite. A tia Rose cuida de tu. Deixa que eu pago pra tu, amorzinho.
Ela pediu outra cerveja, bem gelada, ele deixou de lado o restinho da sua garrafa e tomou de uma só vez um copo, desceu bem, toma rápido e sem fazer cara para mostrar que é durão.
Setenta e sete por cento dos ataques de lobos em caçadas resultam em fracasso. Já foram três esta noite. O lobo toma mais um copo de cerveja, sente o gosto do sangue.  
 

LM   

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