Degredado,
Averróis (nome ocidental), nascido Abu al-Walid Mohamed ibn Ahmad Mohamed ibn
Ruchd, buscou na filosofia aristotélica a força moral para suportar sua
desonra. Abatido, humilhado ante a derrota de suas teorias e por se saber
insuficientemente longevo para ver sua obra reabilitada, empenhou-se em uma tarefa
monumental em tamanho e em mistério. O investigativo Zadig teria registrado em
sua relação de bibliotecas fantásticas, trinta e dois tomos, abençoados por
Deus e escritos por Averróis, desta obra cujo título desconhecido, comentadores
ousaram a denomina-la História Universal da Infâmia —título utilizado sete
séculos depois, em uma obra pretenciosa de Borges.
Sabe-se que
Averróis teria trabalhado com incomum determinação e mais incomum ainda
inventividade nesta obra, embora não se saiba se a teria finalizado. Com do
passar dos anos, muitos volumes se perderam ou foram parar em mãos de infiéis,
mas quis a Providência que dos trinta e dois volumes descritos por Zadig, dois
fossem destinados a Jorge Numbrus. Chegaram em Santiago nos caixotes remetidos
de Córdoba, da casa da avó materna de Numbrus, cujas núpcias e, quiçá a própria
vida, foram interrompidas ao som dos Cantos da Cabala. Além dos livros, vieram
nos caixotes, diários, retratos, relíquias e alguma quantidade de ouro, que
Numbros tratou logo de por a salvo de olhares cobiçosos.
Durante quinze
anos Numbrus ignorou aqueles alfarrábios, conferindo-lhes, no máximo, a mesma importância
dos objetos de gabinetes de curiosidades, até, após o 11 de setembro de 73, ver-se
perseguido pelo que ainda não havia escrito e condenado pelo que não sabia que
pensava. Entraram em sua casa e buscaram provas, evidências e confiscaram seus
pertences, especialmente seus livros, menos os dois volumes: eram antiquados e
inofensivos, mas principalmente, ininteligíveis aos verdugos do general. As
economias da família, mais o pouco ouro herdado da avó de Córdoba, compraram a
liberdade de Jorge Numbros. Restaram-lhe, além da vida, apenas os dois volumes
de Averróis.
Conseguiu documentos
novos, novo nome e, com a intenção de não afrontar os poderes constituídos, foi
para o Brasil ensinar literatura na Universidade Metodista de São Paulo.
Exilado e
solitário, Jorge Silva Reyes, nascido Numbrus, após anos tendo ao alcance fácil
das suas mão, resolveu, nas terras brasileiras, decifrar e ler os dois volumes
herdados da avó de Córdoba, mais para preencher seus intermináveis finais de
semana sem companhia e ocupação do que por interesse histórico. Apurou seu titubeante
latim, arranjou alguns dicionários e gramáticas daquela língua sagrada e
dedicou sua ociosidade à empreitada. Primeiro ficou incrédulo quando
identificou o nome de Averróis, depois estremeceu: tinha em suas mão algo maior
do que sua compreensão intuía, algo secreto e sagrado. Sentiu-se quase como se
estivesse olhando para a face de Deus. Assustado temeu a morte, temeu a cegueira,
titubeava a cada nova página decifrada, se enchia de terror e de fascinação.
Alguns que o viram por aqueles dias afirmam ter visto apenas loucura.
Quanto mais lia,
mais ficava atormentado e emocionado. Escreveu em um caderno de notas que
estava decifrando a escrita do deus, mas depois riscou estas palavras e
escreveu em seguida que estava lendo o mundo, por fim resolveu retirar-se do
convívio dos homens e para aqueles poucos que o viram partir disse: “Vou ler um
livro.” e depois completou: “Vou percorrer um labirinto.” Depois disto se
isolou e passou oito anos relendo os dois livros. Mortificava-se a cada
releitura, maravilhava-se a cada palavra reencontrada, a cada novo percorrer
por expressões que julgava já ter dominado e finalmente descobriu o primeiro
segredo: a cada releitura os livros se tornavam outros livros, nunca eram os
mesmos da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma outra leitura. Na décima
segunda leitura, Averróis enumerava dezesseis predicados de Deus, na décima
oitava, os dezesseis predicados de Deus são refutados por serem atributos
mundanos, impróprios para serem atribuídos ao divino. Na segunda leitura o
tempo é circular, para tornar-se linear na oitava, cíclico na décima terceira e
fragmentado na vigésima.
Numbros mal
terminava uma leitura e já regressava ao início novamente, descobriu, nas
páginas 297 a 325 do tomo primeiro, como foi o nascimento de Cristo, mas nestas
mesmas páginas, em leituras posteriores, acompanhou a descrição da dissecação
do cadáver de um burro, o cálculo da distância entre Jerusalém e Roma, a partir
da observação das estrelas e duas considerações sobre a existência ou não de
Deus. Era como se estivesse lendo todos os livros já escritos, não apenas por
Averróis, mas todos os escritores, suas teses, antíteses e sínteses e os
desdobramentos possíveis daquilo que estava escrito e quando já não sabia mais quantas
vezes havia relido os volumes, nas últimas páginas do segundo tomo, encontrou
as seguintes palavras:
Iluminado pelo Altíssimo e seguindo
os ensinamentos do Profeta, no ano 1410 da Hégira haverá uma nova revelação.
Sob escombros do tempo, além dos vastos mares, toda a história do tempo será
contada, todas as verdades dos doutores aparecerão, mas também todas as
mentiras; a cura das doenças será ensinada, mas novos males nascerão
incuráveis; os mistérios da magia serão decifrados, para serem esmagados pelo
saber da ciência e esta ser derrubada pela fé; uma nova era para os infiéis nascerá
e morrerá antes de chegar à sua metade; serão dias de incerteza e de clamor e um
estrangeiro sem descendentes e sem credo portará as últimas palavras de Alá
para os homens e as primeiras dos homens para a morte e este estrangeiro
receberá o dom da palavra e ele será o Messias que conduzirá as pessoas de fé
ao paraíso.
Este seria o
segundo segredo dos livros de Averróis, Numbrus sentiu o peso do mundo em suas
costas e chorou. Queria apenas poder viver e morrer como qualquer um, não se
sentia preparado para ser o Messias. Pensou em como poderia enganar a
Providência e concebeu um estratagema: o predestinado para portar as palavras
de Ala era justamente Jorge Numbros, ele não era Jorge Numbrus, era apenas Jorge
Silva Reyes, um brasileiro que leciona literatura espanhola e Jorge Numbros não
existe, era apenas um personagem fictício, criado para povoar uma narrativa
inventada por uma mente confusa, assim como aqueles livros não vieram de
nenhuma avó de Córdoba, foram comprados em algum sebo e não são autênticos, são
datados de 1201 e Averróis teria morrido em 1198. Jorge Silva Reyes passou um
ano inteiro acrescentando detalhes, retirando lembranças, lembrando datas, para
provar a inexistência de Jorge Numbros e afirmar apenas a sua existência.
Durante o sono, pouco mais do que alguns instantes nos intervalos da eterna
vigília, ele sonhava os dois Jorges, o verdadeiro, ele próprio e o falso,
Numbros e durante os períodos insone, punha-se a escrever duas obras ao mesmo
tempo: uma era a nova versão da História Universal da Infâmia, uma ficção cujo
personagem principal era Numbros, onde contava do seu nascimento até sua morte,
em 1973. A outra história era na verdade uma autobiografia, reafirmando sua
condição de brasileiro, real, um cristão sem qualquer ligação com o Islã.
Após a revelação
do segundo segredo, Jorge não releu mais os livros de Averróis e dedicou-se
apenas às suas obras e quando já estavam quase conclusas, suas vistas já não
divisavam mais os contornos das letras, as mãos tremiam e mal conseguia segurar
a pena e neste instante descobriu o terceiro e último segredo do livro de Averróis:
ele não era Numbros, tampouco Silva Reyes, era ele próprio Abu al-Walid Mohamed
ibn Ahmad Mohamed ibn Ruchd que enquanto aguardava sua morte no exílio, escrevia
sua última obra, dois livros, que se diziam trinta e dois, mas que eram todos
os livros e nenhum e que estariam em todos os tempos e em tempo algum.
LM
17/03/2013
“Uma viva inteligência de nada serve se não estiver ao serviço de um caráter justo; um relógio não é perfeito quando trabalha rápido, mas sim quando trabalha certo.”
ReplyDelete―Luc de Clapiers Vauvenargues