Tuesday, February 25, 2014

Homo Sacer

Não ficarás impune
Mesmo que tua culpa
Não seja maior do que
O tempo do orgasmo

Não receberás perdão
Ainda que se autoflagele
Se mutile e se anule e
Se arrependa de ter vivido

Não! A ti não cabe
Consolo, tampouco
Adentrar à casa de Beatriz
A ti, cuja pouca poesia,
Sequer comporta uma Dulcinéia
Resta o exílio nos lugares-comuns e

Nas mentiras

LM

Sunday, February 16, 2014

Os improváveis Setenta e Dois Carrascos de Constantinopla



Após o anúncio da vitória definitiva, o general chamou seus oficiais. Naquela noite beberiam e brindariam à coragem de seus exércitos. Os soldados que não estivessem no corpo de sentinelas ganharam folga e se embebedariam nos prostíbulos outrora frequentados pelos inimigos. Amariam as mulheres dos vencidos e beberiam seu vinho até se fartarem.
A última batalha foi a mais longa e mais sangrenta, como não poderia deixar de ser, pois na história destes dois exércitos não caberia uma luta comum, não havia espaço para derrotas ou vitórias negociadas, era morrer ou vencer. Em meio a estripamentos e degolas, o grupo conhecido como os Setenta e Dois Carrascos fazia a substancial desvantagem numérica dos vencidos não ser relevante. Eles lutavam como máquinas, precisos, frios, sem paixão, com eficiência cirúrgica. Não pareciam fazer grande esforço para dizimar companhias inteiras. Não poupavam inimigos feridos, tampouco auxiliavam seus próprios companheiros exangues, apenas lutavam. Em um momento que cronistas menos afeitos às guerras chamariam de calor da batalha, o líder dos carrascos foi interpelado pelo imediato do comandante, este lhe sussurrou algo, em seguida reuniram-se, guardaram suas armas e deixaram a batalha. Os demais soldados vendo a aparente fuga dos seus melhores guerreiros esmoreceram e debandaram como insetos assustados. O resultado da batalha estava decretado e os fugitivos  receberam a morte pelas costas  enquanto  os que ficaram para lutar, ao menos puderam morrer com honra. Ao final, dos quinze mil homens, pouco mais de duzentos foram poupados, para contarem como seu exército foi esmagado. Nenhum vestígio dos setenta e dois carrascos foi encontrado, não se sabe se sobreviveram à fuga e há quem afirme terem rumado para as altas montanhas do leste.
Os poetas cantaram canções, menos para louvar as glórias dos vencedores, mais para escancarar a infâmia dos Setenta e Dois Carrascos. A história se espalhou e a vitória passou a ser minimizada, até mesmo ridicularizada: cantava-se que o general só obteve a vitória, mesmo com um exército duas vezes mais numerosos e melhor equipado, após a deserção dos Carrascos, estes, por sua vez, tiveram seus nomes associados à covardia e vilania, teriam aceitado subornos, suas casas foram marcadas com frases de desprezo e suas famílias tiveram que emigrar para terras distantes onde ninguém os reconhecesse nem evidenciasse sua indignação.  A história destes setenta e dois desertores atravessou mares e há comentadores — entre eles W. Smithson— que atribuem certa influência desta sobre os relatos dos feitos sobre o heroísmo dos Quarenta e Sete Capitães liderados por Oishi Kuranosuké, o conselheiro.
O dia da batalha ficou marcado nas páginas dos cronistas: 02 de março de 1449 e as versões da história ganharam cópias, uma delas, feita pelos copistas do Mosteiro de Vivarium e ornada com ricas iluminuras pode ser conferida ainda hoje no Museu de Bargello. Ali está registrada a narrativa de uma das mais improváveis façanhas militar. Uso o termo improvável no seu mais remoto sentido, de não se poder provar e seguirei as notas de Smithson, que atribuem a queda de Constantinopla aos desdobramentos da batalha ocorrida quatro anos antes.
O imediato do comandante teria dito ao líder dos Carrascos: “O Altíssimo revelou ao profeta que a Terra arderá e gelará quatro vezes antes de a Justiça Divina recair sobre os hereges, poupe o sangue dos infiéis agora e faça-os se afogarem na própria soberba.” Iluminado por Alá, o líder, cuja humildade só não era maior do que sua bravura resignou-se. Apagaria seu nome da história, seria vilipendiado para perpetuar o nome de Maomé, ainda que na pessoa do sultão Maomé II.
Refugiaram-se os Setenta e Dois Carrascos, mitigaram as feridas de suas almas e colocaram o plano Divino em curso. Dividiram-se em doze pequenos grupos e rumaram para coração do império inimigo. Se instalaram em Constantinopla como se fossem mendigos, aleijões, mercadores, poetas e desaparecerem completamente nas poeiras da cidade até o início dos ataques.
Aproveitando a escuridão do eclipse lunar, se reuniram na noite de 24 de maio de 1453, em um estábulo, tendo como testemunhas alguns cavalos e não mais do que dois ou três montes de feno, portanto, improvável, ainda que verídico. Na noite seguinte derrubaram um dos ícones da Virgem Maria no chão, precipitando o segundo sinal de pavor nos bizantinos, o primeiro a natureza, na forma do eclipse, se havia encarregado, assim como o terceiro, na forma de granizo.
Como os ataques do exército turco encontraram mais resistência do que o esperado, os Carrascos puseram-se em ação novamente, mas não poderiam simplesmente desembainhar suas espadas e singra-las como se loucos, agiriam como sempre, como máquinas, frias e precisas. Portaram-se como assassinos, eliminando alvos específicos, capitães, generais, bispos. A muralha já violada pelo canhonaço, o imperador bizantino Constantino XI Paleólogo, tão desestabilizado quanto suas tropas, agia agora como um mero soldado, espada em punho, incitando seus homens a não perderem a coragem e a fé.
Por fim os Carrascos conseguiram abrir o portão da muralha noroeste, precipitando o fim da resistência, neste momento, Constantino XI Paleólogo, enlouquecido ante a derrota, encontra o líder dos Setenta e Dois Carrascos, cujo nome jamais saberemos. Este desferiu seus infalíveis golpes no imperador derrotado, antes porém de tirar sua vida, aproximou-se e diretamente em seu ouvido lhe disse: “Eu perdi meu nome, minha família, minha honra ante os homens para poder estar aqui neste momento e atravessar a espada de Alá no coração do inimigo do Islã, trouxe comigo setenta e um dos mais valorosos soldados, vagamos como indigentes, passamos frio e fome, quebramos sua santa e abrimos seus portões. Daqui, eu e meus homens desapareceremos para o mundo e para a história, falo isto para lhe mostrar como as glórias deste mundo são vãs e efêmeras e para lhe propor:  Se aceitar Alá eu o pouparei.”

O imperador bizantino nunca mais foi visto, historiadores atribuem sua investida, de espada em punho contra o exército turco a causa do desaparecimento. Também os Setenta e Dois Carrascos jamais foram vistos, ou se ouviu falar deles.

LM

Monday, February 10, 2014

Antônia



Não era habitável! Assim falavam, carregados de certezas, marinheiros e aventureiros, também havia rumores sobre perdas de sanidade mental dos que se aventurassem por aquelas terras. Ao vaticínio de inabitável, impus-me o desafio, não sem receios, de ali me estabelecer. A tarefa de circundar sua costa em busca de um porto receptível foi realizada em não menos do que oito meses. Após escrutar com toda diligência, escolhi uma enseada ao sul da ilha como sendo o local de aspecto mais amigável e acolhedor. Ponderei ser ao sul a porta de entrada dos mais gelados ventos, mas optei pelo frio, em detrimento das constantes tormentas observadas ao norte e dos rochedos a leste e oeste. De qualquer maneira, em qualquer dos lados, o que primeiro podia ser percebido eram as constantes mudanças de humores da ilha, ora com mar calmo e brisa suave a chamar barcos e baleotes, ora com vagas golpeando-se com ventos enlouquecidos. Tão repentino quanto começava, uma tempestade carregada de chuvas se transformava em uma linda e ensolarada tarde.
Por algum capricho, ou para sentir-me em um local familiar, não desembarquei sem antes ter um nome para a ilha: Antônia.  Não ouso a pensar em Antônia sem ser a formação insular, não ouso por em curso lembranças de uma outra Antônia, me basta navegar e desembarcar em inabitável ilha, o nome, assim quiseram ou deuses.
Fui paciente, perseverei calado em sinal de aceitação do meu destino. Com tempos de calmaria se alternado a ventanias, aprendi a enraizar-me, a resistir aos ataques de fúria e a isto sucederam minhas primeiras recompensas. Descobri não haver vestígio algum de humanidade, era o primeiro homem em Antônia, o primeiro a explorar sua geografia exuberante, seus montes e suas profundezas, a mergulhar em águas cheias de vidas e a sobreviver daquilo que ela me oferecia. Descobri fontes arcadianas e provei frutos de nos fazer sonhar, aos poucos ela se revelava e revelava pequenos tesouros e após nove anos já conhecia quase todos seus limites.
Não havia mais nada que valesse a pena ser descoberto, mesmo assim eu insisti em continuar a buscar algo mais, algum detalhe que me havia escapado, algum regato, ou caverna com novas maravilhas. Deparei-me com uma gruta até então ignorada. Não era um caminho novo, já havia estudado aquele bosque, já o havia catalogado, mas jamais percebera a gruta. Estava tão bem assentado em minhas certezas cimentadas pela rotina que me desacostumara das surpresas, imaginava ter compreendido os ciclos das tempestades e as demais inconstâncias do clima. Esta nova gruta era um desafio inesperado e indesejável.
Não foi de imediato que comecei a explorar a gruta, pelo contrário, procurei esquece-la, adiei a incursão por dias, semanas e meses, penso mesmo ter esquecido, ou simulei o esquecimento e continuei minha vida. Ao cabo de muitos meses, distraia-me a colher frutos pelo bosque quando percebi estar em frente a entrada da gruta. Ensejei novo adiamento, inútil. Com poucos passos estava em seu interior.
Conjeturei ser o propósito de Antônia manter segredo, mas logo descartei parcialmente tal pensamento, ela manteve o segredo pelo tempo que quis. Talvez eu não devesse mesmo vasculhar certas passados, mesmo suspeitando ser sua vontade revelar-se quando sentisse vontade. Bastava um vento noroeste mais persistente, ou uma das chuvas de janeiro, para a entrada da gruta ficar exposta.
No interior da gruta encontrei objetos feitos por mãos humanas, habitantes anteriores a mim que deixaram registros de suas passagens. Havia caixas cheias de  utensílios como copos e facas, também havia joias, muitos retratos, cartas e diários que não me atrevi a ler. Por um instante formulei a hipótese de se tratar de algum esconderijo de saqueadores, utilizado para ocultar o produto de seus ataques, mas indo mais para o fundo da gruta descartei tal ideia, os donos daqueles objetos ainda estavam lá, exibindo os dentes em um macabro sorriso. Enfim Antônia me recebia e me dava seu último abraço.

LM