Após o
anúncio da vitória definitiva, o general chamou seus oficiais. Naquela noite
beberiam e brindariam à coragem de seus exércitos. Os soldados que não
estivessem no corpo de sentinelas ganharam folga e se embebedariam nos
prostíbulos outrora frequentados pelos inimigos. Amariam as mulheres dos
vencidos e beberiam seu vinho até se fartarem.
A última
batalha foi a mais longa e mais sangrenta, como não poderia deixar de ser, pois
na história destes dois exércitos não caberia uma luta comum, não havia espaço
para derrotas ou vitórias negociadas, era morrer ou vencer. Em meio a
estripamentos e degolas, o grupo conhecido como os Setenta e Dois Carrascos
fazia a substancial desvantagem numérica dos vencidos não ser relevante. Eles
lutavam como máquinas, precisos, frios, sem paixão, com eficiência cirúrgica.
Não pareciam fazer grande esforço para dizimar companhias inteiras. Não
poupavam inimigos feridos, tampouco auxiliavam seus próprios companheiros exangues,
apenas lutavam. Em um momento que cronistas menos afeitos às guerras chamariam
de calor da batalha, o líder dos carrascos foi interpelado pelo imediato do
comandante, este lhe sussurrou algo, em seguida reuniram-se, guardaram suas
armas e deixaram a batalha. Os demais soldados vendo a aparente fuga dos seus
melhores guerreiros esmoreceram e debandaram como insetos assustados. O
resultado da batalha estava decretado e os fugitivos receberam a morte pelas costas enquanto
os que ficaram para lutar, ao menos puderam morrer com honra. Ao final,
dos quinze mil homens, pouco mais de duzentos foram poupados, para contarem
como seu exército foi esmagado. Nenhum vestígio dos setenta e dois carrascos
foi encontrado, não se sabe se sobreviveram à fuga e há quem afirme terem rumado
para as altas montanhas do leste.
Os poetas
cantaram canções, menos para louvar as glórias dos vencedores, mais para
escancarar a infâmia dos Setenta e Dois Carrascos. A história se espalhou e a
vitória passou a ser minimizada, até mesmo ridicularizada: cantava-se que o
general só obteve a vitória, mesmo com um exército duas vezes mais numerosos e
melhor equipado, após a deserção dos Carrascos, estes, por sua vez, tiveram
seus nomes associados à covardia e vilania, teriam aceitado subornos, suas
casas foram marcadas com frases de desprezo e suas famílias tiveram que emigrar
para terras distantes onde ninguém os reconhecesse nem evidenciasse sua
indignação. A história destes setenta e
dois desertores atravessou mares e há comentadores — entre eles W. Smithson— que
atribuem certa influência desta sobre os relatos dos feitos sobre o heroísmo
dos Quarenta e Sete Capitães liderados por Oishi Kuranosuké, o conselheiro.
O dia da
batalha ficou marcado nas páginas dos cronistas: 02 de março de 1449 e as
versões da história ganharam cópias, uma delas, feita pelos copistas do
Mosteiro de Vivarium e ornada com ricas iluminuras pode ser conferida ainda
hoje no Museu de Bargello. Ali está registrada a narrativa de uma das mais
improváveis façanhas militar. Uso o termo improvável no seu mais remoto
sentido, de não se poder provar e seguirei as notas de Smithson, que atribuem a
queda de Constantinopla aos desdobramentos da batalha ocorrida quatro anos
antes.
O
imediato do comandante teria dito ao líder dos Carrascos: “O Altíssimo revelou
ao profeta que a Terra arderá e gelará quatro vezes antes de a Justiça Divina
recair sobre os hereges, poupe o sangue dos infiéis agora e faça-os se afogarem
na própria soberba.” Iluminado por Alá, o líder, cuja humildade só não era
maior do que sua bravura resignou-se. Apagaria seu nome da história, seria
vilipendiado para perpetuar o nome de Maomé, ainda que na pessoa do sultão
Maomé II.
Refugiaram-se
os Setenta e Dois Carrascos, mitigaram as feridas de suas almas e colocaram o
plano Divino em curso. Dividiram-se em doze pequenos grupos e rumaram para
coração do império inimigo. Se instalaram em Constantinopla como se fossem
mendigos, aleijões, mercadores, poetas e desaparecerem completamente nas
poeiras da cidade até o início dos ataques.
Aproveitando
a escuridão do eclipse lunar, se reuniram na noite de 24 de maio de 1453, em um
estábulo, tendo como testemunhas alguns cavalos e não mais do que dois ou três
montes de feno, portanto, improvável, ainda que verídico. Na noite seguinte
derrubaram um dos ícones da Virgem Maria no chão, precipitando o segundo sinal
de pavor nos bizantinos, o primeiro a natureza, na forma do eclipse, se havia
encarregado, assim como o terceiro, na forma de granizo.
Como os
ataques do exército turco encontraram mais resistência do que o esperado, os
Carrascos puseram-se em ação novamente, mas não poderiam simplesmente
desembainhar suas espadas e singra-las como se loucos, agiriam como sempre,
como máquinas, frias e precisas. Portaram-se como assassinos, eliminando alvos
específicos, capitães, generais, bispos. A muralha já violada pelo canhonaço, o
imperador bizantino Constantino XI Paleólogo, tão desestabilizado quanto suas
tropas, agia agora como um mero soldado, espada em punho, incitando seus homens
a não perderem a coragem e a fé.
Por fim
os Carrascos conseguiram abrir o portão da muralha noroeste, precipitando o fim
da resistência, neste momento, Constantino XI Paleólogo, enlouquecido ante a
derrota, encontra o líder dos Setenta e Dois Carrascos, cujo nome jamais
saberemos. Este desferiu seus infalíveis golpes no imperador derrotado, antes
porém de tirar sua vida, aproximou-se e diretamente em seu ouvido lhe disse:
“Eu perdi meu nome, minha família, minha honra ante os homens para poder estar
aqui neste momento e atravessar a espada de Alá no coração do inimigo do Islã,
trouxe comigo setenta e um dos mais valorosos soldados, vagamos como
indigentes, passamos frio e fome, quebramos sua santa e abrimos seus portões.
Daqui, eu e meus homens desapareceremos para o mundo e para a história, falo
isto para lhe mostrar como as glórias deste mundo são vãs e efêmeras e para lhe
propor: Se aceitar Alá eu o pouparei.”
O
imperador bizantino nunca mais foi visto, historiadores atribuem sua investida,
de espada em punho contra o exército turco a causa do desaparecimento. Também
os Setenta e Dois Carrascos jamais foram vistos, ou se ouviu falar deles.
LM
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