Sunday, April 03, 2011

Redecaptado

por Paulo Horn

Naquela quinta-feira, enquanto tentava compreender o porquê de tantos carros estarem nas ruas, lembrou-se de que este dia era um dia atípico apenas para ele. Voltando do velório pensava em como tudo ao seu redor estava morrendo e batia a tristeza. O que mais sentia falta era de sua cabeça. Poucos dias antes da morte prematura da Senhorita Vanessa sua cabeça havia sofrido um mal súbito inexplicável e em poucas horas definhou. Ficara estarrecido com a perda, mas logo depois que a morte secou-lhe o membro e viu de alguma forma bizarra sua cabeça cair e rolar pelo chão, começou a brotar uma nova do espaço vazio.
Nos curtos momentos que antecederam o nascimento da nova cabeça sentiu um grande medo de se tornar o oposto de uma carranca, um corpo sem cabeça pendurado na sala de alguém, ao lado de outras peças exóticas de mau gosto. No entanto sua cabeça foi brotando lentamente e já no dia do velório da Senhorita Vanessa tinha um corpo completo novamente.
Olhou por horas a fio sua nova cabeça no espelho, reconhecendo-se. Não havia nada de diferente da cabeça anterior. Deixou de lado a inspeção para visitar a recém falecida e passando muito protetor solar com medo de que sua cabeça ressecasse e viesse a cair novamente chamou um táxi para levá-lo até a capela mortuária onde se encontrava o corpo. Por todo o caminho teve sensações desconhecidas, como se os últimos 35 anos de sua vida tivessem desaparecido e as sensações adquiridas com o tempo tivessem sido lavadas de seu corpo, rolado para longe junto com sua cabeça.
Ficou impaciente em todo sinal vermelho que pararam no caminho. Sentiu pena de um cachorro magricelo que se abrigava do sol em baixo da mesa de xadrez da praça. Ficou inquieto com a lentidão do taxista e apreensivo se não perderia o enterro. Parecia que havia entrado em um processo de redefinição de si, como se suas entranhas tivessem sido expostas e lavadas, cada desenho rabiscado em sua cabeça tivesse que ser retocado. Desceu quase em frente ao cemitério e caminhou por entre as ruelas cercadas de túmulos, atravessando até a capela. O perfume de flores que tantas vezes lhe fez mal no passado agora acariciava seu rosto. Ficou preocupado, pois com a descoberta de ter perdido uma alergia que lhe acompanhara a vida toda teve certeza que aqueles desenhos feitos na cabeça que secara não necessitavam apenas de uns poucos retoques, de uma passada de tinta mais forte. De alguma forma teria que redesenhar o que perdera.
A Senhorita Vanessa estava cercada de coroas de flores e ao se aproximar sentiu como se fosse a primeira vez que a via. Depois de todos esses anos voltara a se apaixonar por ela e agora ela estava morta. Sentiu-se tonto e seus joelhos fraquejaram. Redescobriu como era chorar aos prantos e soube então o que era esse vazio que tanto se atribui à solidão. Lembrou do esquecimento quando fecharam a tampa do caixão e o rosto da Senhorita Vanessa foi sumindo lentamente. Reconheceu a impotência ao ver o caixão ser depositado na sepultura e a solidão se estendendo pela tarde enquanto todos iam seguindo com suas vidas e ele ficava só no cemitério, perdido com as redescobertas que agora desejava esquecer. Ficou desnorteado.
Perdeu-se no caminho de casa e aumentava cada vez mais a confusão dentro de sua nova cabeça. Queria voltar a ter sua cabeça antiga, queria que esta secasse e ele nunca mais precisasse lembrar tudo que redescobrira. Queria poder esquecer a Senhorita Vanessa e que um dia a amou, mas o vazio não deixava e sua cabeça não dava sinas de que adoeceria novamente. Perdia sua mente à progressão que sua cabeça se tornava mais viva. Voltou para frente do espelho e já não mais se reconhecia. Renegava esse novo ser que aparecia no reflexo. Sua antiga cabeça era uma casca seca jogada no lixo da cozinha. Por três dias seguidos sentiu e mais sentiu, mas não agüentou mais.
Quando redescobriu o desespero cortou sua cabeça com o machado de incêndio do corredor do prédio em que morava. Foi a única vez que redescobriu a decapitação.

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