Sunday, August 05, 2012

Sob os tetos de bons cidadãos

Já está há muito tempo naquela casa, seus pulmões já não aguentam mais o pó de cupim nevando do forro de madeira dia-e-noite-noite-e-dia até não ter mais nem casa para cair na sua cabeça. Está ali desde sempre, talvez até mais: antes de Edite, seus pais encheram a casa com sonhos para o futuro e tiveram três filhos. Os irmãos, assim que engrossaram as penugens do queixo, partiram e só retornaram para enterrar o pai. Edite ficou e de recompensa, recebeu como dote de casamento, a casa. Dentro dela, a mãe doente. Não teriam filhos enquanto a imobilidade daquele corpo se confundisse com os móveis herdados. Móveis carregados com cheiros antigos que, se disfarçando, foram ficando.

    Sem a mãe, Edite sentiu toda a felicidade por vir, a casa se encheria de filhos e alegria. Bastava aspirar os cheiros dos novos tempos, de uma nova vida. Foi quando aspirou pela primeira vez o pó de cupim.

    O passar do tempo pouco mudou a casa, apenas envelheceu-a mais e deu a Edite anos para serem passados da mesma maneira, sempre, assim como a mãe. Procurava refúgios e gostava de ficar sentada na varanda, contando os poucos carros que passavam na rua. Classificava-os mentalmente por cores e, quando reconhecia, por marca. Ou quantos vinham da esquerda e quantos da direita. Oculta por samambaias penduradas que quase tocavam a cerca da varanda, sentia-se protegida, anônima. Nessas horas não dava importância para a insistente chuvinha de pó de cupim que cobria a casa, especialmente ali, no seu esconderijo quase na rua.

    A casa fora construída quando ainda não havia a rua, apenas um carreirinho. Ele foi se alargando, alargando, até o dia, quando Edite ainda nem era nascida, que os funcionários da prefeitura pregaram uma placa na própria parede da casa: R. Serapião Ventura. Agora, com a rua pavimentada, quase não havia espaço entre a casa e a calçada. Assim, camuflada entre samambaias penduradas e hibiscos que ladeavam o muro revestido de limo, Edite se sentia fluida entre as plantas, tão próxima de quem passava pela calçada e sem ser percebida. Poderia flutuar acima do assoalho, sobre as antigas camadas de cera que se sobrepunham no brilho escurecido da madeira, até a porta da saída, cujo verde da pintura resistia apenas na lembrança.

    Em certas ocasiões, planejava meticulosamente como mudaria sua vida. Havia poucos carros para classificar e naquela tarde, não só planejou como se sentiu com disposição suficiente para executar. Sabia a que horas a vizinha saia, que horas voltava, os horários de Silas, dos filhos voltarem da escola, do vizinho e o mais importante, imaginara detalhadamente as conversas e respostas das pessoas que encontraria pela rua. Precisava apenas tirar o pó de cupim dos ombros e sair.

    Ao amanhecer, a casa se apresentava ainda mais decadente. As primeiras luzes da manhã projetavam sombras irregulares e os contrastes realçavam a feiura pré-histórica da construção. Não era apenas um problema da idade, a arquitetura também não ajudava. Na garagem era onde a tacanhez da casa mais se manifestava, era onde Edite, enfrentando uma invasão de formigas, se perdia em caminhos familiares.

    Domingo de manhã seria o dia mais improvável para aquela faxina. Balde de água, esfregão, sabão, as crianças seguindo as trilhas das carregadeiras e o sol, ignorando suas nuvens particulares, entrava sossegadamente pela janela escancarada. Não se preocupava em disfarçar as marcas nos braços e no pescoço. Os meninos ainda não sabem o que são tipo de marca, apenas o sol que espiava pelas frestas da manhã.

    O mesmo sol matinal começava a irritar Silas, bêbado em um beco do centro da cidade e também iluminava a casa vizinha, deixando à mostra, através das finas cortinas, o marido levando café da manhã na cama para a companheira. Era uma casa irritante, daquelas bem construídas com paredes sólidas, teto de laje que não derruba pó de cupim. Era pintada com um amarelo vibrante, como se seus moradores quisessem exteriorizar toda a felicidade que ali reinava. Na frente, um jardim impecável, como o restante da casa, exibia o colorido de flores da estação substituídas ao menor sinal de perda de viço. Mal conhecia seus habitantes e não queria, não gostava da felicidade deles.

    Água, sabão, esfrega bem. Nenhum sinal externo vindo da casa ao lado. Varre. Crianças saiam da sujeira! Estes sapatos eram do Silas. Quis ter um galão de gasolina naquela hora. Crianças, para fora!

    Sentiu pó de cupim caindo nela. Olhou para cima, como quem procura alguma coisa importante perdida, e fixou o olhar no caibro exposto. Certificou-se de que as crianças se entretinham. Olhou mais uma vez para a casa vizinha e fechou a janela. Pensou que se o domingo terminar, segunda vai procurar um emprego.

    Não tinha gasolina, pegou um galão saiu, no caminho até o posto pensou que álcool pudesse ser menos fedido, enquanto andava pensava em empregar o combustível da maneira mais dramática. Poderia por fogo na casa, imolar-se em praça pública ou provocar uma explosão no shopping. Encheu o galão e foi ao caixa pagar.    

    — Olá vizinha. O que faz por aqui?

    Ela se virou para ver quem falava e se era com ela. Era o morador da casa amarela, olhando-a com ar amistoso de bons vizinhos. Edite se sentiu constrangida de ser vista naquela situação. O que ele poderia pensar?

    — Quer uma carona? Convidou o vizinho enquanto pagava a gasolina do carro. — Estou indo para casa.

    — Eu vim comprar cigarro. E deixou o galão com álcool no posto.

    No carro, Edite que até então estava conversando com monossílabos e meneares de cabeça, pensou em perguntar algo que os pudesse aproximar, algo como: "você é feliz mesmo ou é só um disfarce aquela sua casa babaca?".

    — A gente mora há tanto tempo... eu não sei o nome do senhor...

— Não me chame de senhor, não são assim tão velho, mas sou um apaixonado por cinema. Respondeu inusitadamente.

    O carro já havia passado a entrada da rua Serapião Ventura. E para se justificar, da resposta ou do caminho errado, continuou: — Já assisti umas vinte vezes O último tango em Paris, não teremos nomes, nem lugar certo para ir, e oraremos pela família.

    —Lembrei que estou sem margarina em casa. Disse ao acaso Edite. Foi a única coisa que lembrou e para ela aquela conversa não fazia mesmo sentido nunca ouvira falar daquele filme, não sabia dançar tango, não conhecia Paris e não sabia rezar.

    — Já que o senhor — fazendo uma pausa para se corrigir — quer dizer, você passou, poderia me deixar no mercadinho?

— Quando saí de casa percebi que não havia ninguém na casa de vocês...

— Os meninos estão na casa do primo e o meu marido foi embora.

— Então vamos comprar manteiga.


 

LM


 

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