Sunday, August 21, 2011

Cronologia de moscas e sardinhas

Um certo Ulisses, às 15h30 de sua mais longa quinta-feira, muito longe de Ítaca, mais ainda de Dublin, bebia cerveja quente e comia sardinha frita. Sem pressa, comia e bebia e não tinha mais nada a fazer quando acabasse e nenhum lugar para ir, ou que quisesse ir. Apenas comia e bebia. Cerveja quente, faltava potência ao refrigerador do bar, sardinha frita, quando bem fritinha dava para comer até a cabeça, a cauda, a espinha, quando bem fritinha. Torrada, crocante, salgada com cerveja quente.

Aquele homem de barba grisalha e dedos dos pés tortos ligou o rádio com músicas de saudades partidas despedidas desencontros. O locutor tinha saudades de um tempo, quando era ouvido e era levado a sério. Este Ulisses, ouvindo sem levar a sério o locutor e suas músicas, pensou em como uma das suas sardinhas fritas poderia ter deixado sua parceira no mar, uma outra sardinha agora chorando e esta bem frita tendo a cabeça mastigada com cerveja quente.

Pensou por um momento que talvez fosse bom ter alguma coisa para fazer, as sardinhas estavam acabando, a cerveja continuava a vir quente. Não jogaria sinuca, sempre perdia, não queria pagar cerveja que não fosse beber, mesmo quente. Esperar. Não tinha nada a fazer, não tinha odisséia, nem vagaria pela cidade, pequena demais Barra do Sul para isto. Estava sentado de costas para o mar. O mar não o atraia. Às 16h42 percebeu as moscas que já estavam atacando as sardinhas e as carcaças não tão bem fritas desde às 15h49. Uma, duas, cinco, andando nervosamente de um lado para outro, esfregando com entusiasmo as patinhas da frente. Uma caiu na cerveja quente. Morte certa, embriagada ou afogada?

Não encontrou Polifemo, Serraria veio cambaleando cantar as músicas do rádio para Ulisses. Teve Vontade de sair, mas Serraria já estava ao seu lado, pés descalços, sem camisa, o calção velho puído azul claro com listas nos lados era tudo que trazia. Um olho azul e o outro castanho. Enxergava com ambos? Copo de cerveja mais quente agora pela metade e com mosca, deu ao Serraria. As outras moscas não pareceram se importar com a afogada embriagada e continuavam, agora oito, dando pequenos vôos de rápido retorno e andando sobre os escombros das sardinhas. Serraria tomou toda a cerveja e engoliu a mosca. No outro lado da pequena cidade ninguém tecia manto algum e o filho não o viria procurar. O mar não o atraia e Serraria com a mosca no estômago cantava e deixava escapar um borrifo de saliva e cerveja pelo vão da falta de dentes da frente. Ulisses teve de desviar-se do borrifo. Onze moscas foram espantadas quando o prato foi recolhido, um pano sujo xadrez vermelho e branco foi esfregado sobre o balcão. Serraria também foi espantado dali.

Ulisses pediu mais uma cerveja, não conseguiu levantar o braço esquerdo, tentou falar qualquer coisa e a língua estava grossa, enrolou, balbuciou algo desconexo e sentiu uma sombra sobre os olhos. Escutou alguém falar, não compreendeu? Fraqueza. Sentiu latejar forte a cabeça, uma fisgada. Sentiu, ou pensou ter sentido dor, virou-se para o mar, agora o atraia. Começou a cair aos pedaços, primeiro uma perna, depois os braços, o mar ia ficando cada vez mais distante, caiu o tronco e por último o chão veio com força contra o rosto. Lembrou das moscas, da cerveja quente, das sardinhas, não lembrava quem era: às 17h59 era ninguém.

LM

3 comments:

  1. Anonymous2:19 PM

    Como disia Borges "Creio que uma forma de felicidade é a leitura. E isto eu sinto quando leio teus escritos. Adoro.....

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  2. Anonymous2:29 PM

    Muito bom mesmo... sei bem como é essa vida de freqüentador de botecos... quando eu era jovem, bem mais jovem, tinha o hábito de freqüentar esses lugares. É bem real. Só não conheci os botecos da Barra do Sul. hehehe...

    Dico da Clema.

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  3. Anonymous3:01 PM

    Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!

    Beijo de sua fã.

    clemair

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