Sunday, November 07, 2010

Diário de viagens para Nova Orleans

Todas as vezes que estive em Nova Orleans, pude desfrutar dos sons de melancias se partindo no asfalto quente. Não pense que se trata de alguma bizarrice dos negros do Delta do Mississippi. O som açucarado mergulha o visitante na atmosfera entremeada de densidades palpáveis, especialmente por sensações táteis, de algumas regiões nem sempre utilizadas do cérebro. Nova Orleans não cabe em melancias intactas.
O calor parece ter uma relação especial com a cidade. Eleva os vapores dos pântanos, do asfalto e dos suores, adensa a atmosfera. Caso não ocorresse a desorientação dos sentidos, o visitante poderia verificar essa cumplicidade do calor com a cidade. Em Nova Orleans os cinco (ou seis) sentidos ultrapassam suas atribuições originais e alternam suas funções. Em Nova Orleans as pessoas têm mais do que cinco (ou seis) sentidos.
A oscilação histórica da posse das planícies litorâneas do Mississippi fez se alternaram espanhóis, franceses e ingleses no domínio das terras e das gentes. Aos negros coube a escravidão nas plantações de algodão. Esta mistura temperou a cidade com sons de histórias antigas, de sabores agridoces e melodias assíncronas. Lá o tempo também tem uma cadência especial. Quando estive lá, vi como os olhos amarelos dos negros ditavam o ritmo da passagem das horas. Também vi mãos negras escondendo a brancura das palmas, pois as cores não lhes eram todas permitidas, apenas o branco do algodão, o preto da cozinha, o amarelo dos olhos e o azul da alma. Surgiu uma alma blue.
O Blues, das canções carregadas com tristezas atávicas e melodias intensas, pode não ter nascido exatamente em Nova Orleans (há muitos nascedouros possíveis, da África ao Mississippi), mas seu solo aquecido e úmido soube fazer brotar musicalidades nativas, como Jack Dupree, ou compartilhar ritmos com os vizinhos do Delta, B.B. King, Robert Johnson e Charlie Patton. Todas as vezes que vou para lá, vejo negras minhas mãos e sinto azul minha alma.
Em Nola, o visitante sempre perde algum pequeno objeto, do tipo uma lasca de unha, um dente de pente, um botão. Perdi todos estes objetos lá e para recuperá-los, é preciso voltar e procura-los. É assim, para resgatar alguns pequenos fragmentos que sempre retorno, mesmo sem jamais ter ido fisicamente. Para Nova Orleans, podemos ir sempre que escutamos a inconfundível balada do Blues, ou sentimos odores de melancias se partindo no asfalto quente.


Luiz Mendes

1 comment:

  1. Essa saiu das aulas provocativas do Jacques. Lembro que ele leu seu texto e destacou essa imagem das melancias no asfalto quente.

    E esse sr. Charles Trezinni? Alguma ligação com Arturo Bandini? hahaha

    Valeu!

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