Thursday, September 08, 2011

Coleções

Ao entrar na quarta década, encontrei somente uma fileira de portas que dão em quartos sem nada dentro, a casa parece ter crescido, aumentado o número de portas enquanto e eu, encolhia. Não casei, nem tive filhos, muito menos cachorros, e isso me conforta: posso justificar a falta dos itens indispensáveis para ser um responsável pai de família com o vazio por de trás das portas. Tenho, em boa quantidade, telefones de putas pagas, de entregadores de cerveja e pizza, além de fornecedores de crédito consignado a pensionistas e aposentados. Sou velho demais para trabalhar, muito jovem para já estar aposentado e fazer-me de louco elevou minha condição a dependente de mamãe. Falecida, herdei dela a pensão que ela herdara de papai, sargento do exército morto ao cair do telhado do quartel quando tentava resgatar uma pipa. Ele era muito gordo para subir em telhados, muito inábil com pipas e sua morte sustentou minha mãe, cujo casamento já havia acabado de fato, mas não de direito, muito antes da queda, e continuará me sustentando enquanto a vida vibrar dentro do meu corpo, ainda que eu jamais tenha trabalhado. Benditas sejam as instituições legais, por não questionarem com quem se deita tua mulher, desde que tragam, assinados os papéis do tempo em que ainda acreditavam no amor e benditas sejam por não deixarem desamparados os órfãos desvalidos de aptidões laboriosas.

Assim, avanço em anos com casa própria — herdada, desta vez, da mãe do meu pai: desgostosa com a morte do filho, a velha não agüentou muito tempo — renda garantida, nenhuma profissão, três faculdades começadas e trancadas logo no primeiro ano, uma coleção de vinis do Frank Sinatra e uma de canetas promocionais, além de uma bicicleta barra forte e um casal de colerinhos. Há também os amigos, fiéis, companheiros incontestes, freqüentadores assíduos do bar do Jacó. Jogamos dominó, general, caxeta e sinuca. Truco foi tentado, mas, barulhento e insano, causou certo desconforto e, a bem da amizade, deixamos de lado. Em dias de chuva, sinto falta de uma companheira inexistente, não mais uma acompanhante profissional. Quase sinto que estou me perdendo e busco algo de sanidade lendo um pouco de Noll ou Maupassant.

Um poeta louco disse que escrevia para se salvar. Não acredito em salvação na escrita, não acredito na salvação acomodada em qualquer lugar e se escrevo é para deixar registrado um capítulo da história da insanidade urbana na modernidade ou para acumular cadernos que poderei queimar na lareira se o próximo inverno for muito rigoroso. Também li anotações de adolescentes, afirmando: “só escrevo para me salvar”. Pro inferno com a salvação pela escrita. Pro inferno com companheiras. Desisti da redenção e apenas tento manter-me vivo, bêbado, com alguma comida nas tripas e enfiado entre um par de coxas: isto é o salvar-me, não a escrita de desabafos sentimentais, ou historinhas manjadas, carregadas de uma poesia de merda. Vou pro bar do Jacó tomar uma cerveja e comer um rollmops. Há mais filosofia em um rollmops do que em toda a academia cheia de metidos a besta se fazendo passar por intelectuais.

LM

3 comments:

  1. Anonymous3:55 AM

    Muito bom... eu me encaixo em alguns desses escritos. Até pensei por um momento que seria sobre minha pessoa. hehehe.

    Dico

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  2. Anonymous7:48 AM

    Um intelectual é um homem que diz uma coisa simples de uma maneira difícil; um artista é um homem que diz uma coisa difícil de uma maneira simples.

    Charles Bukowski. vc é muito bom........

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  3. Anonymous7:51 AM

    Se o homem pode fazer apenas uma pessoa feliz durante toda uma vida, então sua vida foi justificada....Felicidade eu sinto quando leio teus contos e poemas.

    Clema

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