Percorrendo as páginas de classificados a procura de um emprego, conheci Cecilia Gallerani. Ela oferecia vaga de auxiliar de produção em uma fábrica de artefatos de cimento. Não era o que procurava, mas o nome da contratante ficou reverberando em minha cabeça e não pude mais continuar a busca. Fui ao endereço.
— Precisamos de braços fortes, não me parece muito o seu caso.
— Sou magro, mas sou muito forte. Tentava iludi-la com este artífice. E mais do que forte, sou muito resistente, posso trabalhar por longos períodos sem parar. Mal podia caminhar por uma quadra sem ter de parar umas duas vezes e acho que ela percebeu.
— Mesmo assim, o senhor não se encaixa no perfil de funcionários que procuramos, eu e minha sócia somos muito exigentes e mesmo sabendo de sua vontade em trabalhar, não podemos deixar de analisar todos os requisitos.
— Tudo bem, eu não consigo erguer um saco de cimento mesmo. Este é mesmo seu nome?
— Como assim?
— É um nome famoso e já conheci muitas Cecílias, mas nenhuma Gallerani.
— Então o senhor sabe quem foi Cecília Gallerani?
Esta Cecília era muito feia, quase pensei que fosse um homem, era alta magra, olhos fundos que mal davam para ver de que cor eram, mas realmente tinha mãos delicadas, pareciam não pertencer aquele corpo ossudo e másculo.
— Sei. E acho que suas mãos são muito mais bonitas e delicadas do que a dela. A senhora tem algum animal de estimação.
— Não. Estamos precisando de alguém para o escritório. O senhor tem alguma experiência?
— Uma vez escrevi roteiros de teatro para um grupo de atores amadores. Não encenaram nenhuma das minhas peças. Também já trabalhei em um tele marketing.
— Talvez sirva, quando há um atraso em alguma encomenda, precisamos inventar uma boa história para os clientes e recebemos muitos telefonemas.
Ela mandou que eu voltasse no outro dia para falar com a sócia também. Se eu já me impressionara com o primeiro nome, o segundo foi ainda mais sugestivo, muito embora a dona do segundo nome não fosse exatamente meu modelo ideal para ostentá-lo: Yoni Pertunda. Jamais pude conceber que uma pessoa real pudesse apresentar-se com tal nome, mas de fato a senhora Yoni Pertunda assim o fez e, da minha parte, tive de fazer um odioso esforço para não soltar uma gargalhada, nem para fazer uns dois ou três trocadilhos. Yoni Pertunda, era mesmo este seu nome. Ela era menos sorumbática do que a sócia, entretanto isto não significava grande acréscimo ao conjunto. Baixinha, pouco mais de um metro e meio, uns dez quilos acima do peso tolerável, despontava de seu rosto miúdo um imponente nariz, algo tortuoso. Definitivamente, se colocassem-na em uma daquelas salas que vemos em filmes policiais, para reconhecimento dos suspeitos de um crime, ao lado de outras mulheres, jamais imaginaria aquele ser caricato como detentor do nome Yoni Pertunda. Yoni Pertunda, não canso de repetir.
— Senhor Trezinni, o senhor escreveu peças de teatro?
— Nunca foram apresentadas.
— Mas sabe escrever histórias?
— Sim, escrevo regularmente para um site, ou blog, de um amigo meu, nada profissional, apenas para dar um força para este meu amigo, ele botou na cabeça que quer ser escritor, mas não tem muitas ideias boas. O cara é meio lesado.
— Um site, ou blog. Sabe o endereço?
— Não lembro direito, sei que como ele é meio metido a literato, é nome do cavalo de um alguém famoso, alguma coisa Rocinante. Acho que tem alguma coisa haver com Dante, ou outra antiguidade.
— Rocinante é o cavalo de Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, nada tem a ver com Dante, nem contemporâneos foram, com uma lacuna de pelo menos trezentos anos.
— Então!
Mesmo com minha gafe histórica, misturando Cervantes com Dante, fui contratado, também não precisaria citar nenhum dos dois autores em nenhuma atividade naquele serviço, eu precisaria apenas preencher notas fiscais de venda, emitir faturas, conferir as notas de entrada de mercadorias, controlar as contas a pagar e, de vez em quando, fazer alguma carta, ou e-mail, para clientes, credores, bancos, repartições, essas coisas de escritório. Também atendia telefone e anotava recados, eu era uma secretária.
Nunca fui de misturar-me muito, e como, além de mim só tinha as duas sócias no escritório, limitava-me a bons dias e até mais, com o pessoal da produção. Mesmo com elas não conversava muito. Se eu era calado, elas pareciam que estavam em eterno estado de mau humor. Acho que como moravam juntas e viviam brigando e como tinham de trabalhar no mesmo local, ficavam se alfinetando e mantendo aquela atitude rabujenta. Para mim estava bom, pelo menos me deixavam sossegado.
Tive certeza de que minha teoria de serem um casal estava correta quando dona Yoni Pertunda (sim, era mesmo este seu nome) aproveitou-se de uma ida ao banco da sócia para vir falar comigo.
— Você só se faz de bobo, não é?
— Tento ficar no meu canto.
— Ela é muito dominadora e muito ciumenta. Imagine que deu pra ter ciúmes de você?
— Não quero nem imaginar. De onde ela tirou estas ideias?
— É que eu tenho elogiado seu trabalho, sua postura discreta, sua cultura, ela me disse como fez referência à mão da Cecília Gallerani, ainda que não soubesse de Rocinante. De toda forma, é possível que eu tenha comentado em casa mais de você do que dos outros funcionários, talvez mais do que o recomendável.
Com certeza, eram um casal, e Yoni Pertunda não poderia fazer outro papel, senão o da fêmea da relação e esta fêmea estava prestes a me dar uma cantada. Olhei mais atentamente para ela, queria ver se era possível encarar. Já acordei com barangas bem estranhas, mas era quando eu bebia, como estava sob um rigoroso tratamento médico, para ver se recuperava meu fígado sem a necessidade de cirurgia, talvez não desse conta do recado. Pensei em fazer papel de viado, mas era capaz de a coisa vazar e algum dos peões da fábrica aparecer aqui querendo me comer. Por que nenhuma gostosinha me procurava para ter essas conversinhas? Eu devia ter algum imã para esquisitices, pelo menos não era nenhum alemãozão (lembrando bem, esta Cecília até que era parecida com um alemão de dois metros que conheci em outro emprego). Engoli em seco e resolvi dar umas apalpadas naquelas banhas. Nos agarramos ali mesmo, tinha de me abaixar para beijar sua boca pequena. Ela foi logo apertando minhas bolas, mas logo se afastou.
— Eu sabia, tu é um tremendo safado. Um pedaço gostoso de safadeza. Faz tempo que não experimento um pintinho nervosinho, não vejo a hora.
Ela deu um endereço para nos encontrarmos depois do expediente. Disse que me levaria para o motel mais bacana da cidade e que eu não me arrependeria. Para Cecília, falaria que ia para a academia e deu uma risadinha marota, dizendo que estava precisando malhar um pouco.
Reassumimos a postura profissional e logo dona Cecília retornou, me olhou como se estivesse pressentindo algo. Fiquei com medo, ela era de dar medo. Finalmente consegui ver seus olhos e não gostei do que vi. E se ela descobrisse e aparecesse? Tenho certeza de que era o tipo de gente que anda armada. Encarar estas duas malucas e sóbrio era arriscado, seria eu o pertundado. Esta yoni não valia o esforço. Não fui ao encontro e não voltei mais ao trabalho. Procuro novo emprego nos classificados, desta vez não irei naqueles que tenham nomes emblemáticos.
LM
kkkkkkkk. adorei.
ReplyDeleteKalamed