Sunday, April 08, 2012

A carne da sexta


 

"et non ulla creatura invisibilis em

conspectu eius et omnia autem nuda

aperta sunt oculis anúncio QUEM nobis sermo"

Hebreus 4:13


 

Cresci temendo a sexta-feira santa, não podíamos falar alto, sorrir, brincar ou qualquer coisa que não remetesse a uma circunspecta tristeza e isto tudo enchia-me de temor. Qualquer coisa era motivo para ser condenado ao flagelo do fogo eterno, mais ainda desrespeitar o mais triste de todos os dias. Os pais saiam — e não acho que fossem para igreja, ou fazer qualquer tipo de penitência — e as mães ficavam em casa rezando e chorando de tristeza pela morte de nosso salvador. As crianças, proibidas de fazer qualquer coisa, se reuniam e logo começávamos a nos provocar, até chegar uma das chorosas mães com um cinto ou varinha na mão. Levávamos a maior bronca e algumas varadas, tínhamos de nos comportar como se nosso pai ou irmão mais velho tivesse sido brutalmente torturado e executado para salvar nossas vidas miseráveis. Também era um dia de passar fome, não que isso fosse novidade, mas aquela era uma fome imposta, mesmo se tivesse comida em casa.

Passados mais de quarenta anos daqueles tristes e temidos dias, acordei uma certa manhã, com a maior ressaca de minha vida. Não lembrava como tinha voltado para meu quarto, nem onde passei a noite, lembro apenas de ter sido escalado para trabalhar no feriado da sexta e no domingo e quando olhei para o relógio, quase meio dia, sabia que nem adiantava mais ir para o serviço, era só passar na segunda e acertar as contas. Não tinha me tocado que feriado era aquele, até cair a ficha: era uma sexta-feira santa. Sem grana e sem nenhum lugar para ir, resolvi que era mais do que passada a hora de acertar as contas com aquele dia tão terrível da minha infância e decidi ir para a missa.

Quando entrei na igreja e vi aquelas velhinhas com seus xales pretos cochichando suas rezas, tive medo como se ainda fosse aquele pirralho magricelo e cabeçudo. Tratei de me acomodar logo em um banco e, como os demais, pus-me de joelhos para rezar. Não sabia mais rezar, então tive de improvisar. Misturei Pai Nosso com Ave Maria, Credo com salve Rainha e quando vi que a coisa não ia adiantar, desisti de das orações. Fiquei ainda algum tempo de joelhos, já que não sabia rezar, pelo menos faria alguma penitência, ficaria assim até a missa começar. Mas a porcaria da missa não começava nunca, sentei, meus joelhos ardiam, e perguntei para uma das velhinhas que horas a missa ia começar. Ela me olhou com aqueles olhos de quarenta e tantos anos atrás, jogou-me no inferno e disse que não tem missa na Sexta Feira Santa, apenas um profundo pesar pela morte de Nosso Senhor e um momento de reflexão e de arrependimento pelos nossos pecados.

Sem grana, quase tudo fechado, joelhos doídos, ainda um pouco tonto, estomago começando a roncar, fiquei ali sentado, olhando para o enorme crucifixo do altar. Um casal sentou no banco da frente, deveriam ser os mais jovens ali. Ele com um paletó preto, surrado e ela com um vestido azul escuro, um ou dois números menor do que o número dela. Tinha uma bunda bem grande e a roupa apertada fazia aumentar ainda mais, mesmo assim ainda era uma bunda bem gostosa. Eles se ajoelharam e, para poder olhar mais de perto aquela bunda, me ajoelhei também. Apoiei os cotovelos no encosto do banco da frente segurei minha testa com os dedos entrelaçados. Dava para ficar olhando sem ninguém notar. Não teve jeito, com o olhar fixo nas nádegas da devota, tive uma ereção, mas, sei lá porque, levantei a cabeça e dei de cara com o Cristo do crucifixo me olhando. Eu jurava que antes ele tava de olhos fechados e agora daquele jeito, bem abertos, olhando diretamente para mim. Olhei para os lados e tive a impressão de que todas as velhinhas estavam olhando para mim também. Jesus deve ter falado para elas o que eu estava fazendo, espero que não tenha contado para a bunduda nem para o marido dela. Era hora de sair da igreja. Mas não pude ir muito longe, estava muito fraco e tive de sentar na escada da saída. Minha cabeça doía, meu estomago doía, meus joelhos doíam tudo começou a girar. Fiquei ali um tempo enquanto fiéis taciturnos entravam e saiam da igreja. Neste entra e sai, alguns, tocados pela santidade do dia, resolveram depositar esmolas ao meu lado. Não percebi de imediato, mas logo vi algumas moedas e cédulas se acumulando. Jesus deve ter falado para eles que eu tava com fome, sede e sem grana. A bunduda de vestido azul se abaixou e deixou uma moeda. Tive vontade de segurar sua mão e agradecer, mas não consegui levantar a cabeça, vi apenas sua perna, vestido e depois sua bunda rebolando ao lado do homem de paletó surrado. Tive vontade de voltar a frequentar a igreja para ver se arranjava uma gostosona daquelas, talvez voltasse a considerar isto em outro dia. Fiquei ali até acabar o movimento e uns sacristãos fecharem a igreja. Estava aliviado por estar acabando a sexta feira santa e agradecido por só ter uma por ano. A grana das esmolas deu para comprar alguma comida e bebida para manter-me bêbado durante o final de semana. Apesar da bunduda, não perdi o medo da sexta feira santa.


 

LM

2 comments:

  1. Anonymous6:09 AM

    Meu.... cara tu escreve muito bem messsssmo!!!
    Parabens

    Claudionei

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  2. Anonymous10:00 AM

    Karacas, essa bunduda deve ser muito boa mesmo.
    Podes me passar o endereço dessa igreja?
    E quando vair ser a próxima sexta feira santa?

    Dico

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