Saturday, March 31, 2012

Ato de contrição

Entendia tudo perfeitamente, tinha domínio da situação, mesmo sabendo-se omisso. Não era sua culpa, ele apenas fazia seu papel, desempenhava suas funções, nada deixava faltar não lhe mentia, se muito, deixava de informar, era, pois, salvo algum pequeno defeito, coisa mínima, tal qual todo e qualquer outro, apenas. Não, não haveria de dar-lhe motivos, não suportaria a humilhação de vê-la acusando-o, jogando na cara todo tipo de mal falares, antes ser ele a parte ofendida. Resignar-se-ia. Estoico, suportaria a infâmia, a afronta com serena altivez, como um samurai, orgulhoso de seus mortais ferimentos, inabalável em sua crença moral. Mas como faria cair em desgraça? Já não tinha o mesmo viço de quando se conheceram, mas ainda havia traços de uma beleza ancestral, mantinha uma pose digna e não perdera o charme. Até já percebera certos olhares em sua direção. Os filhos longe, encontrou tempo para cuidar de si mesma, se arrumar melhor, para usar maquiagem, ainda tinha atributos para seduzir muitos homens. Mas como faria? Só assim poderia perdoa-la, mostrar a grandeza de seu amor, falaria como foi o culpado por não ouvir-lhe os clamores, por não ter prestado atenção em suas carências e ela, humilhada pela compaixão e pelo amor que perdoa, não poderia mais criticar seus pequenos defeitos e caprichos. Enfim poderia trocar a toalha de banho dia sim dia não, usar camisas que precisem ser passadas a ferro, receber seus amigos em casa, almoçarem ao meio dia em ponto (mesmo aos domingos), ficar até mais tarde nas reuniões da associação sem ter de ouvir um injusto sermão. Quando a lista de coisas que queria e poderia fazer começou a aumentar e a incluir desejos e fantasias que achava já terem sidos extintos, receou ter feito uma terrível descoberta: após 22 anos de casamento, se haviam tornado dois estranhos sob o mesmo teto. Seu plano perdeu o sentido. Mesmo que ela se deitasse com outro, teriam de tornar a se conhecer. Ficou com medo de, de fato, não ter tanto sangue frio, o melhor a fazer era procurá-la, conversar, convidá-la para saírem. Com oito passos estaria no quarto dela. Ela estava deitada sobre a cama, nua como há muito não a via, olhar fixo no teto, braços abertos, tudo imensamente vermelho, como em um sonho. Ele perdeu-se em divagações, se respeitaria a vontade dela, se deveria falar algo, se ela ouviria algo, se não deveria fazer o mesmo, se deveria deixá-la só pela última vez, se poderia vender a casa e comprar um pequeno apartamento, se chamava alguém, se deveria fazer amor com ela, se deveria voltar e apagar a luz da sala, se abriria uma cerveja, se... Não sabe se falou ou pensou ter falado em perdoá-la ou pedir perdão. Por um instante longo demais para ser real, enquanto via pulsos terminando o jorro, escolheu uma das alternativas de suas divagações. Era o que deveria ser feito naquele momento, mais nada.

LM

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