Tuesday, March 13, 2012

A realidade estampada nos jornais segundo Charles Trezinni

Todo cronista com um espaço a ser preenchido periodicamente em alguma publicação já se viu acometido por uma insubordinada crise de falta de assunto. Há quem afirme ser tecnicamente impossível não ter do que falar, mas apenas humano não saber como falar de algo. Diante do branco da tela (ou da folha, para os saudosistas) um escritor oprimido pela falta de ideias é tentado a falar justamente de como não sabe o que falar e divaga sobre insignificâncias do tipo: a fronha do seu travesseiro; um pardal no fio de luz; uma leiteira com leite de ontem; um besouro se debatendo como louco; dois cacos de uma louça quebrada; fragmentos de um cartão de visitas lavado no bolso da camisa; um calendário do ano anterior com datas de compromissos circuladas com esferográfica; problemas de rima em poemas escritos no caderno da escola; a falta que faz a ponta apontada em um lápis e outras ninharias. Um artista talentoso poderia extrair, de qualquer um destes temas, um vigoroso e profundo texto. Penso em James Joyce, Clarice Lispector e Katherine Mansfield, só para citar alguns, embora o primeiro pudesse alongar-se para além de setecentas páginas em seu texto-caminhada.

Na insistência da falta de assunto (mantenhamos este viés) o cronista pode ir para o bar. Nada é mais fácil do que descrever os tipos e as cenas em tal ambiente. Sempre aparecerá um sujeito com a cara de um personagem da Mad falando que os filmes bons são os do Schwarzenegger, do Stallone do Bruce Willis e outros durões, se lembrasse de mais algum nome. Dá para observar outro cara no balcão observando milimetricamente todos que entram e saem do boteco — deve ser um cronista captando instantes suburbanos da realidade quotidiana das almas citadinas para versejar por uma obra costumbrista, forte e retumbante —. Ou o casal de lésbicas tentando imprimir normalidade ante olhares de censura da plateia conservadora. Cada uma destas cenas teriam combustível para render linhas e linhas da mais genuína literatura com observações perspicazes sobre porra nenhuma.

Ainda no bar e já tomado pelos vapores etílicos, o cronista poderia também posar de escritor observador e sensível a captar instantâneos fugazes com as mais sutis variações psicológicas da alma humana e escrever outro tanto de material miasmático. Ao final teria observado de fato algumas coisas, inventado outro tanto, delirado uma porção e estava o texto pronto para ser enviado ao jornal, olhado de relance por um editor que nunca lê nada e aquele punhado de porcaria ganharia os contornos da tinta e, posto que fora publicado, tornar-se-ia a fina flor da realidade nativa, até a próxima edição, quando seria alçada ao seu legítimo lugar: embrulhando peixes ou sendo lambuzada de merda no rabo de algum bêbado.

 
 

LM

1 comment:

  1. Anonymous11:24 AM

    Cara adoro ler o que escreves.

    Carlos

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