Sunday, March 25, 2012

A Deus, a inocência


Cansados das injustiças, guerras, fome, destruição do planeta e outras tantas mazelas recaindo sobre a raça humana, os mais destacados filósofos, juristas, estadistas, artistas, embaixadores, artesãos, médicos, sociólogos, sacerdotes, antropólogos, industriais e demais próceres da espécie, reuniram-se em assembleia para apontar o culpado por tantas tragédias e em seguida puni-lo. Certos de não ser tarefa das mais fáceis, combinaram que todos os participantes desnudar-se-iam de suas paixões e manteriam o foco apenas na razão, concluíram que a emoção havia motivado de maneira intempestiva muitas iniquidades.  O primeiro a tomar a palavra, um jurista com inclinações filosóficas não perdeu tempo e foi logo apontando seu maior suspeito:
            — Nada mais claro e razoável para mim e, após minha breve argumentação os senhores hão de concordar, de que se há um culpado, é justamente aquele que tem o maior poder, quem de fato pode transformar as coisas e, acima de tudo, quem fez as coisas como são. Se eu construo uma casa e esta desmorona, quem é o culpado? Se faço um refogado e carrego demais no sal, tornando-o intragável, de quem é a culpa? Se educo um filho de maneira libertária, sem disciplina, sem orientá-lo devidamente, apenas ameaçando-o: não faça nada errado (sem explicar porque), senão sentirá a minha ira, de quem é culpa pelo adulto frívolo e individualista que se tornará? Assim, quem senão o criador desta obra imperfeita seria o culpado por tantos males?
            Um clérigo de renome internacional, famoso por sua natureza justa e sua busca pela verdade tomou a palavra.
            — Caros irmãos, é bem tentador por nossos fracassos nas mãos do Pai, seria muito cômodo, traria uma certa liberdade para podermos fazer aquilo que melhor nos aprouvesse, independente de causar muitos males a nosso semelhantes, entretanto lhes pergunto: Que tipo de filho seria eu, se reconhecesse um erro em meu pai e ainda assim continuasse a reproduzir este erro? Uma vez que reconheço um possível erro em meu pai, já não sou mais inocente se repetir tal desvio. Isto não significa ter havido erro na obra divina, posto não ser este nosso lugar, mas apenas uma passagem para a vida eterna. Uma larga lagarta que põe-se a comer sua folha ideal para nutri-la, caso resolva querer voar antes de ser borboleta e perder-se em uma vida desregrada e errática, certamente terá uma vida de lagarta desgraçada, amaldiçoará o céu e a terra por sua infelicidade e purgará os efeitos deletérios de seu desvio de conduta e, ao final, não ganhará os ares, pois nem borboleta será. Mas como investigamos um culpado, creio que devemos pensar não em um personagem, mas em um sistema de trocas.
            Como o assunto sairia da esfera religiosa, um economista e humanista, coisa que nunca se viu,  parceiro do clérigo nas investigações, assumiu o posto de orador.
            — Quando meu colega fala em sistema de trocas, devemos pensar basicamente em como se dão as relações comerciais, onde um determinado bem é comercializado não por seu valor de produção, mas por seu valor simbólico dentro de um sistema aparentemente simples de oferta e procura. A aparente simplicidade deste sistema pode nos induzir ao erro de que os preços são regulados por mecanismos racionais de custos, capacidade do mercado em comprar tais bens e a vontade dos consumidores em adquirirem estes bens, como não é tão simples assim, os donos dos meios de produção estabelecem preços elevados, muito mais elevados do que seria necessário para cobrir os custos de produção e auferirem boas margens de lucros aos envolvidos no processo de produção e comercialização, para seus produtos ou serviços e, se o mercado aceitar tais preços e comprarem, eles ainda sobem mais um pouco os preços para criarem uma sensação de que aquele bem é altamente desejável; aliam a este mecanismo uma intensa campanha midiática, para referendar seus discursos.  Isto torna, o que deveria ser um processo de troca, de um bem ou serviço por uma quantidade de dinheiro (suficiente para ressarcir dignamente os vendedores), em um sistema de acumulação de capital. O advento da revolução industrial apenas mecanizou o processo de acumulação que já existia. Antes os nobres ou senhores de terras acumulavam riquezas à custa do trabalho dos camponeses e agora os financistas acumulam riquezas à custa do trabalho e do consumo dos cidadãos. Assim, o principal culpado por este modelo é, na verdade, o modelo de acumulação de capital.
            A partir deste ponto as discussões começaram a tomar um rumo mais acalorado, cada qual defendendo seu ponto de vista: o artista defendendo que a falta de arte produz nos homens um distanciamento de sua humanidade e que expressando-se pela arte as pessoas poderiam extravazar todas as suas pulsões e desprenderem-se da materialidade destruidora, geradora de matizes conflitantes do eu com sua psique e apenas a transfiguração do lugar comum em arte é que poderá redimir os seres humanos; já o diplomata bradava que aboliu-se o diálogo em detrimento de uma retórica imposicionista, baseada na força e não na igualdade dos sujeitos.
            Lá pelas tantas, concluíram que apesar de ser tentadora a proposta do jurista em apontar Deus como culpado, desistiram da ideia pela impossibilidade de aplicação de punição. Da mesma forma foram desistindo de aplicar a pena capital em outros acusados ao longo dos debates, por as acusações não terem embasamento suficiente, ou por serem muito difíceis de serem compreendidas, ou por requererem um esforço de associação muito grande e foram, pouco a pouco, absolvendo o mercado, o sistema capitalista, o autoritarismo, a democracia, as religiões, o ouro, o machismo, o feminismo, o petróleo, a natureza, os extra-terrestres, o Natal, as olimpíadas, Henry Ford, Gengis Khan, Lenin, Marx, o capitalismo, Maomé, Jesus Cristo (esta acusação foi a mais fácil de derrubar, pois se Jesus, Deus e o Divino Espírito Santo eram, ou são, um só, o que cabe a um cabe ao outro), Buda, Darwin, o vírus da gripe, o sol, o sal da água do mar,  a teroria da relatividade, a lei da gravidade, o povo badari, Lucy (dos australopithecus), Homero, Moisés, Noé, Adão, Eva, o amor, Judas, Lilith, Bahamut, a escrita (e os sumérios, por extensão), o vinho, o sexo até que uma falha no sistema elétrico do prédio onde se reuniam os deixou no escuro. Sem terem mais como se entenderem, decidiu-se, por unanimidade, que os trabalhos deveriam ser interrompidos e recomeçados em outra ocasião, em outro local e com data ainda a ser definida. Como não elegeram quem deveria tomar estas providências, os ilustres e proeminentes baluartes de nossa civilização aguardam nova convocação.

LM

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