Sunday, December 30, 2012

Parte V (Última)

                            Eu queria algo que pudesse perder. Eu a tinha, mas ela não era minha, e eu queria poder perdê-la e para isto acontecer ela deveria ser minha. Essa foi a ideia mais estúpida que já tive em toda minha vida. Não foi exatamente uma ideia, acho mesmo que a coisa foi acontecendo e só agora, depois de alguns anos, consigo enxergar  como de fato aconteceu. Eu era um idiota maior ainda do que sou agora.
                            Cheio dos sentimentos confusos, resolvi conversar ao invés de simplesmente calar a boca e trepar.
— Às vezes eu acho que você me usa, como se eu fosse só um pinto.
— E não é? Eu já tenho marido e to bem feliz com ele, claro que tu é só um pinto.
— Isso não te parece meio frio?
— Quer uma namoradinha? Acho que escolheu a garota errada.
— Não, não quero ninguém me enchendo o saco, só acho que a gente deveria conversar um pouco de vez em quando.
— Tudo bem. Fala!
— Como assim?
— Tu não quer conversar? To te ouvindo.
— Você é meio fria.
— Sou prática. Se eu quiser conversar, saio com uma amiga, ou fico em casa, sei lá. Cala essa boca e me beija!
                            Nunca consegui me impor para uma mulher (por isto resolvi viver sozinho) e a obedeci. Beijei-a, mas naquela noite não a xinguei, nem a apertei, apenas desempenhei mecanicamente meu papel. Ela era tudo que um homem sonha em uma mulher: bonita, sensual, boa de cama, não me enchia o saco, queria apenas transar e eu poderia sair com outras garotas. Apesar de ter elaborado algumas teorias, ainda não descobri direito porque aquela situação me incomodava. Uma das hipóteses que me vem à cabeça era eu me sentir amedrontado por ela estar no comando. Era estranho, nunca falamos do marido dela, dos filhos, era como se ela simplesmente não desse a mínima para eles. Nunca tive família e talvez isto tenha me afetado, sei lá.
                            Depois daquele dia não saímos mais. Quando ela ia ao almoxarifado, se comportava como se tudo estivesse perfeitamente normal, pedia a peça ou ferramenta e antes de ir embora falava como estava meio complicado pra sair e assim que arranjasse um tempo ia me avisar, pra gente se encontrar. Depois de uns dois ou três meses nessa conversa mole, eu já não tava nem aí para o serviço e fui mandado embora. Entreguei umas brocas de tamanho diferente e toda uma linha de blocos de motor virou sucata.
                            Após de ter saído da fábrica nunca mais ouvi falar da Cleide, nem a procurei, fui cuidar da minha vida. Virei barman, motorista, porteiro de zona, ajudante de pedreiro, mendigo, obreiro de uma igreja evangélica, frentista e acabei me aposentando depois de levar um tiro no braço durante um assalto. O tiro limitou os movimentos da minha mão esquerda e como estava em horário de expediente, o advogado da empresa deu um jeito de me aposentar por invalidez. Agora sou um inválido oficial, vivo a custa do Estado e como o salário não dá pra muita coisa, divido um pequeno apartamento de dois quartos com o Nicolau. Ele ficou viúvo e não quis ir morar com nenhum dos filhos, ou eles não o quiseram. Maldita velhice.
                            Tudo isto parece ter acontecido há séculos e cada vez que conto esta história, esqueço partes importantes, invento outras, aumento ou diminuo a importância dos acontecimentos, tanto que já nem lembro direito o que é lembrança ou delírio. Chego mesmo a duvidar da existência da Cleide e quando pergunto para o Nicolau se ele lembra de algo, apenas faz um meneio com a cabeça e resmunga algo, sem dizer nada. Devo estar vendo muita novela, se não morrer de tédio até final do ano, vou ver se arranjo um jeito de acelerar a natureza.
 

LM     

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