Cheio dos
sentimentos confusos, resolvi conversar ao invés de simplesmente calar a boca e
trepar.
—
Às vezes eu acho que você me usa, como se eu fosse só um pinto.
—
E não é? Eu já tenho marido e to bem feliz com ele, claro que tu é só um pinto.
—
Isso não te parece meio frio?
— Quer
uma namoradinha? Acho que escolheu a garota errada.
—
Não, não quero ninguém me enchendo o saco, só acho que a gente deveria
conversar um pouco de vez em quando.
—
Tudo bem. Fala!
—
Como assim?
—
Tu não quer conversar? To te ouvindo.
—
Você é meio fria.
—
Sou prática. Se eu quiser conversar, saio com uma amiga, ou fico em casa, sei
lá. Cala essa boca e me beija!
Nunca consegui me
impor para uma mulher (por isto resolvi viver sozinho) e a obedeci. Beijei-a, mas
naquela noite não a xinguei, nem a apertei, apenas desempenhei mecanicamente
meu papel. Ela era tudo que um homem sonha em uma mulher: bonita, sensual, boa
de cama, não me enchia o saco, queria apenas transar e eu poderia sair com
outras garotas. Apesar de ter elaborado algumas teorias, ainda não descobri
direito porque aquela situação me incomodava. Uma das hipóteses que me vem à
cabeça era eu me sentir amedrontado por ela estar no comando. Era estranho,
nunca falamos do marido dela, dos filhos, era como se ela simplesmente não
desse a mínima para eles. Nunca tive família e talvez isto tenha me afetado,
sei lá.
Depois daquele dia
não saímos mais. Quando ela ia ao almoxarifado, se comportava como se tudo
estivesse perfeitamente normal, pedia a peça ou ferramenta e antes de ir embora
falava como estava meio complicado pra sair e assim que arranjasse um tempo ia
me avisar, pra gente se encontrar. Depois de uns dois ou três meses nessa
conversa mole, eu já não tava nem aí para o serviço e fui mandado embora. Entreguei
umas brocas de tamanho diferente e toda uma linha de blocos de motor virou
sucata.
Após de ter saído da
fábrica nunca mais ouvi falar da Cleide, nem a procurei, fui cuidar da minha
vida. Virei barman, motorista, porteiro de zona, ajudante de pedreiro, mendigo,
obreiro de uma igreja evangélica, frentista e acabei me aposentando depois de
levar um tiro no braço durante um assalto. O tiro limitou os movimentos da
minha mão esquerda e como estava em horário de expediente, o advogado da
empresa deu um jeito de me aposentar por invalidez. Agora sou um inválido
oficial, vivo a custa do Estado e como o salário não dá pra muita coisa, divido
um pequeno apartamento de dois quartos com o Nicolau. Ele ficou viúvo e não
quis ir morar com nenhum dos filhos, ou eles não o quiseram. Maldita velhice.
Tudo isto parece ter
acontecido há séculos e cada vez que conto esta história, esqueço partes
importantes, invento outras, aumento ou diminuo a importância dos
acontecimentos, tanto que já nem lembro direito o que é lembrança ou delírio.
Chego mesmo a duvidar da existência da Cleide e quando pergunto para o Nicolau
se ele lembra de algo, apenas faz um meneio com a cabeça e resmunga algo, sem
dizer nada. Devo estar vendo muita novela, se não morrer de tédio até final do
ano, vou ver se arranjo um jeito de acelerar a natureza.
LM
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