Monday, October 17, 2011

Motivos do amanhã


 

Não havia motivos, apenas pequenas saliências nos vãos das idéias e ele percebeu: o amanhã começou mais cedo naquele dia. Tomou o café, — mais forte do que o habitual —, estrangulou um ou dois rinocerontes e saiu. Sair de casa não se classificava entre as coisas mais prazerosas era, antes, um exercício de superação. Não gostava de multidões, de lugares abertos, de sol, vento a balançar-lhe os cabelos, bom dia e afins: preferia a companhia das baratas e dos silenciosos porta-retratos sem fotografias.

Uma vez instalado no seio da sociedade, tratou logo de assumir os trejeitos do personagem mais adequados às rutilâncias do convívio social, da moral e dos bons costumes e adjetivou com qualidades sublimes suas ações cotidianas. Cumprimentou amavelmente a senhora Bastos, devolveu afetuosamente a bola para o menino Eduardo, esquivou-se cavalheiristicamente de olhar para as bem torneadas pernas da datilógrafa Antonia e pediu, educadamente, fogo para acender o cigarro, a um simpático transeunte, que mui gentilmente cedeu-lhe uma fulgurante chama azulada. Era, afinal e ao cabo, um sujeito normal e de bem.

Vomitou escondido do contínuo Aderbal, quatro blocos de concreto, duas braças de capim-serra, e uma travessa de vidro. Auto-flagelar-se era parte do ritual diário de tolerância. Precisava tomar mais café e tolerar sereshumanosquefalavamcoisassemimportânciaotempotodo: Os números da economia indicam um grave retrocesso político-financeiro nas contas da corrupção do poder público envolvido com a conquista do espaço midiático das esferas mais abastadas das classes D, E e F e das classes menos favorecidas pelas chuvas torrenciais que inundam as bolsas dos grotões financistas e das planícies ensolaradas coberta por chalés de verão, hedges funds, corrida eleitoral, não atingiu as metas, o capítulo da novela, vai chover, et cetera e et caterva. Tomou mais café.

Quando a carruagem de Apolo deixava apenas seu rastro crepuscular, o valoroso guerreiro retornou ao seu soturno refúgio, longe dos olhares curiosos de homens e mulheres comuns. Escorria cafeína pelos cabelos e era mais um desempregado. O café não o ajudava mais e sua necessidade imediata era ficar simplesmente bêbado. Talvez assim entendesse porque sua vida não dava certo como a vida das pessoas normais. Bebeu o que encontrou em casa até reduzir seu vocabulário em 98% e imaginou estar sentindo-se só, imaginou estar sofrendo e imaginou sentir dor e saiu. Gostaria que aquela fosse uma noite fria, com uma fina e intermitente chuva a deprimir as pessoas, mas não era. Estava quente e as pessoas nas ruas pareciam especialmente felizes, sem preocupação em dormir cedo. Dezembro é uma merda.

Não sabia o que poderia ser mais patético: sentir-se deprimido às vésperas do Natal ou ver aquela multidão de pessoas felizes e ávidas para comprar qualquer coisa que possa ser carregada para todos verem, como se fosse um atestado de pertença ao reino da felicidade. Andou, ou imaginou ter andado e encontrou na rua uma sacola com panos vermelhos, era uma roupa de Papai Noel, ficaria com ela. Comprou uma cerveja e, num beco, resolveu vestir a roupa, tinha até gorro e barba branca. Tirando o fato de estar cambaleante, era um perfeito bom velhinho.

Preservando sua identidade secreta sob a máscara escarlate, o herói entra em um reduto de vilões, mal-feitores, cafetões e prostitutas, escroques de toda espécie. Eles percebem sua imponente presença e se calam, por uma fração de segundos.

No bar ninguém notou sua presença, não era a única celebridade presente, lá também estavam o Batman, o Diabo e o Homem Invisível, além de mais uns dois Papais Noel. Já era amanhã, em casa os rinocerontes estrangulados já deviam estar começando a feder, o pior é que sempre apareciam mais. Sentiu uma necessidade de pôr algumas fotos nos porta-retratos, talvez amanhã começasse a procurar uma câmera.


 

LM


 

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