Sunday, October 16, 2011

Uma noite ainda

O caixão no meio da minúscula sala de estar dificultava a circulação de tanta gente. Eram apenas curiosos, querendo dar a última olhadinha no cadáver. O morto, quando vivo não era muito popular. Os curiosos queriam mesmo ter certeza da morte. Algumas tias cochichavam reminiscências pré-históricas. Lembravam, da infância e das travessuras. Dos namoricos pelos cantos da casa e das confusões com os meninos da rua do açougue e do adolescente belo e indomável. Evitavam falar dos últimos anos. Era o suficiente lembrarem-se apenas dos tempos de inocência e rebeldia inofensiva..

    Eram nove horas da noite. O frio aumentava o desconforto dos velantes. O defunto continuaria a interpor-se nos seus caminhos por mais algum tempo. A morte ainda não lhe apagara todos os rastros e já era possível perceber olhares e intenções diversas para a viúva. Ferdinando era só solicitude.

Anabela parecia ter lágrimas acumuladas há muito tempo, mesmo assim, percebia, impassível, os pequenos movimentos ao seu redor. Continuava seu choro sem motivo. Sentia o vazio e a perda de algo ignorado. Estendido em sua sala, o cadáver de alguém que ela amou um dia. Casaram-se, até que a morte os separou.

Já assumindo o papel de viúva, aturava as pessoas olhando-a com compaixão. Tão solícitas e amáveis, tentando consolá-la com uma generosidade ensaiada: "Mas você tem de comer alguma coisa, precisa se alimentar". A comida a constrangia. Em certas ocasiões, comer lhe parecia algo impensável, como se o animalesco se impusesse ao humano. Não aceitava o instinto de sobrevivência do corpo desdenhando os melindres da alma.

    Como uma águia que estende as asas sobre o ninho, Ferdinando se aproximou.

    — Ele sempre te maltratou e você ainda chora. Amava ele ou amava o sofrer?

— Houve um tempo, antes de nos casarmos, que eu o amei. Amei mais do que tudo na vida. Acho que choro por aquele tempo. Ou talvez pelo homem que ele poderia ter sido. Havia algo de muito bom dentro dele, mas ele pensou que poderia se desviar deste caminho doce e depois retornar. Sempre falava que estava passando por uma fase ruim, mas logo tudo passaria. Nunca acreditei nisto, e ainda assim, sempre dava mais uma chance. — Ela falava com convicção, só não conseguia convencer a si mesma. Duvidava daquele amor e o período doce não passara de amores juvenis, embalados por uma liberdade recém conquistada onde tudo era permitido: amar livremente, viajar em asas ácidas, escancarar todos os poros para absorver tudo da vida. Estas lembranças a frustraram, pois de tudo o que experimentou nada permaneceu. Nem a felicidade, nem a tristeza. Tudo passou. Restava um caminhar letárgico rumo à morte. Então o que a impedia de se entregar novamente às paixões e às experiências, era só pegar uma garrafa de vodka e levar Ferdinando para o quarto, quem sabe convidar também aquele negro, vizinho da Sebastiana, que ronda a mesa de canapés. Não seria a primeira vez ou, se preferisse, Margarida já havia dado mostras de sua queda por mulheres, também não seria a primeira vez. Poderia conseguir um pouco de coca ou um baseado. Tinha consciência da própria beleza e do fascínio que exercia em homens e mulheres. No entanto, apenas chorava ao lado do caixão daquele que a humilhou e a fez descer até os porões mais alagados. "Deveria agarrar o Ferdinando aqui mesmo e foder em cima do caixão." O que a impedia? Respeito aos mortos não era, já assistira muitos serem mortos e há muito já não se incomodava com o fato. "Acho que amanhã vou pr'aquela igreja que uma das tias falou. A merda é ter que dar 10% todo mês. Talvez noutra hora, deixa ver o que sobra do inventário."

    Uma das tias trouxe chá.

— Beba querida, vai te fazer bem. E vista um casaco, a noite será gelada.— Se esforçava, com as mesmas palavras de outros velórios.

— Saiu alguma coisa no jornal? — Perguntou distraída Anabela

    — Uma nota no obituário e uma matéria pequena no pé da página policial.

    Ferdinando se maldizia por não ter tido a idéia de trazer um chá ou oferecer o casaco. Também não trouxera nenhum exemplar do jornal. Outra tia reabastecia a garrafa de café e a bandeja de canapés e cochichava com energia para o negro.

— Pára de comer tudo seu morto da fome. Tu não era amigo do finado e nem da viúva e é o que mais come.

Ele fazia de conta que não era com ele e dava mais uma volta ao redor do caixão.

    Aderbal começava a se irritar com os urubus. Margarida fitava Ferdinando, cada vez mais indignada, cada vez mais enciumada. As tias ofereciam mais chá para Anabela enquanto o negro, vizinho de Sebastiana, rondava a mesa.

Uma mistura de odores impregnava a sala. Fumaça dos cigarros, cravos murchos, suores antigos, cachaça e café, tudo se misturando com os sussurros das rezas aprendidas em outros velórios, ditas em atos coreografados e cheias de soluços disfarçados.

    A terra já estava de escancarada, esperariam amanhecer para se livrarem de uma vez do cadáver. Anabela aspirou com força a fumaça do cigarro, deu uma olhada ao redor e retribuiu com um meio sorriso os pêsames do negro. Permanecia sentada muito próxima ao caixão "Caxãozinho vagabundo, já tem até buraco de bicho."

1 comment:

  1. Anonymous3:13 PM

    É Luiz, todos os velórios são mais ou menos assim mesmo, só muda o ator, quero dizer: o defunto. o Meu nem quero ver. hehehe...

    ReplyDelete