Sunday, October 02, 2011

Orphia

As pessoas nascidas em Orphia podem ser consideradas imortais. Elas morrem, mas algum tempo depois de deixarem esta vida, nascem novamente e o que é mais impressionante, jamais esquecem suas existências anteriores. Não me perguntem como isto acontece, ou porque só em Orphia ocorre este fenômeno, nem os moradores de lá têm estas respostas, apenas relato minha experiência, que pode ser facilmente comprovada por qualquer um, basta passar uma temporada naquela cidade e tirar suas conclusões.

Morei entre os orphianos por quatro anos e, como eles têm a certeza do retorno, não cuidam-se como nós, tampouco temem a morte e isto provoca um alto índice de mortalidade, especialmente pelo suicídio. Eu, da minha parte, teria medo de meter uma bala em meus miolos, ou de atirar-me no rio Ciriano, que corta a cidade. Claro, aqueles a ocuparem altos postos na hierarquia social ou econômica não fazem tanta questão de partirem, especialmente porque não se tem controle algum sobre como retornará. Pode voltar com outro sexo, em outra família, um fortão peso-pesado pode tornar-se um tísico amarelo de 47 kg, rico voltar pobre, bonito tornar-se feio, com outra cor da pele. Sabe-se apenas isto: quem morre renasce e preservará todas as lembranças das vidas anteriores, só não se tem memória da estada no outro lado. Desta forma não se sabe se é melhor manter-se morto ou retornar, nem se há como escolher.

Nos primeiros meses de minha estada em Orphia confesso ter sentido uma ponta de inveja de seus moradores. Poder ter quantas chances quisesse na vida, desistir de uma vida para tentar a sorte em outra, ou manter-se vivo por mais tempo quando encontrasse uma existência que valesse a pena, continuar tantos projetos quantos quisesse, que de outra forma não poderiam ser tocados adiante. Conheci alguns casos assim, um escritor cuja obra, ainda inacabada, já contava com 2701 volumes, um cientista que já havia retomado a mesma experiência 32 vezes e um apaixonado, que tentava conquistar a mesma pessoa por 9 vidas. Este último me confessou pouco se importar como sua paixão retornava, pois era um amor transcendental, metafísico, só não havia ainda convencido a outra parte, mas tudo bem, tinha todo o tempo do mundo.

Outros, mais avarentos, e não eram poucos, enterravam seus tesouros para recuperá-los quando de suas voltas. Por isso o solo de Orphia é todo escavado, esburacado: sempre tinha um vivo, e também não eram poucos, tentando encontrar algum tesouro alheio escondido.

Jurar alguém de morte é uma coisa sem sentido lá e os criminosos também não são condenados à morte, mas à prisão perpétua e nos casos mais graves, a pena extrapola mais do que uma vida. O difícil é encontrar o criminoso em sua nova reencarnação. Nenhuma marca física permanece e se isto ocorre, é por puro acaso, assim, a não ser que a pessoa fale quem foi e prove, fornecendo detalhes precisos, ninguém pode ser reconhecido. Quando descobri isto voltei a conversar com o apaixonado e perguntei como ele poderia reconhecer sua paixão: "Enxergo com o coração", respondeu-me. Lembrei-me da raposa do Pequeno Príncipe e, como a raposa podia fazer isto, aceitei com possível a explicação do apaixonado.

Com o passar dos meses comecei a por em dúvida as vantagens deste eterno retorno. Poucos são os satisfeitos com sua condição. É um sujeito que gostava mais da família anterior do que da atual e sai em busca de seus antigos parentes, considerada por ele sua verdadeira família; casais tentando se reencontrar – mas como fazer isto, se nem sempre retornam com sexos adequados ao seu relacionamento anterior, nem renascem em períodos próximos, além da dificuldade em saber como encontrar quem procurava? –; poderosos tentando recuperar seu antigo status e suas antigas atribuições e, como já relatei, é muito difícil reconhecer um antigo amigo ou parente, tem-se muitos relatos de pessoas que foram enganadas. Uma mulher (era esta sua forma quando falei com ela) a procura de seu marido, relatou-me que, após intensa busca através de investigações, anúncios em jornais e entrevistas, julgou ter encontrado seu amado. Viveram 10 anos em pura alegria até um dia ser procurada por um menino de 12 anos dizendo ser seu antigo (e verdadeiro) marido. Acabou por descobrir ter sido vítima de uma fraude e seu companheiro atual, na vida anterior fora seu psicólogo e por isto soube descrever tantos detalhes de seu verdadeiro amor. Algum tempo depois de ter-me revelado estes fatos, acabou dispensando os dois, o psicólogo e o menino e suicidou-se para tentar melhor sorte na próxima vida.

Outro fato negativo constatado é o nascimento de um antigo inimigo como filho ou irmão do desafeto. Isto provocou muitas mortes em família e mais suicídios. Como podem perceber e como acabei concluindo, as coisas em Orphia não poderiam andar tão bem quanto um observador apressado pudesse imaginar e com o alto índice de insatisfação com a atual condição, com as inúmeras desavenças jamais esquecidas, ninguém querendo abrir mão de seus privilégios e muitos temendo conceber um inimigo, a taxa de casamentos na cidade é praticamente zero e os nascimentos estão continuamente em queda. Sem a lembrança do período entre a morte e a vida, não temos como afirmar se estas almas não nascidas estariam sendo eliminadas permanentemente, ou se encontram outro destino, o fato é que Orphia está desaparecendo e, a continuar neste ritmo, não resistirá mais 40 anos para cair, definitivamente, no esquecimento eterno.

LM


 


 

1 comment:

  1. Anonymous3:16 PM

    Muito bom, legal mesmo meu irmão...

    Dico.

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