Tuesday, December 13, 2011

Sonhos

Sabia de certos magos, vindos do sul, ou de além, e de suas habilidades em sonhar um ser. Encontrou nas cosmogonias gnósticas, tratados de demiurgos relatando tais experimentos mágicos, alguns exemplos bem sucedidos, uns frustrados e meditou por três anos e meio até descobrir em seu espírito, elementos autorizando-o a iniciar-se nas artes quase esquecidas do sonho e auto intitulou-se sacerdote. Para ele, entretanto, a carne já se havia revelado fraca por demais, suscetível aos sabores dos frutos das cerejeiras e de outras inebriações terrenas. Bastava tão somente sonhar um nome. Vagou por prostíbulos e sarjetas; templos e altares; casas de pessoas de bem e desvalidos e após, dois anos de buscas, encontrou a arena ideal, ancestral, para instalar-se e sonhar. Não havia marcas, como se não fosse freqüentada há séculos, por feras ou homens, apenas o tempo passava por aquele sítio e mal deixava suas marcas; era branco, ou se fazia parecer branco, como se um sonho sem cenário, mas há relatos de o mesmo lugar ter sido descrito como de cor sanguínea. Para ele era branco e em seu interior, tamanha alvura, não conseguia divisar as coisas, era tudo uniformemente claro, fazendo-o valer-se do tato. Identificou uma mesa de madeira, uma cadeira de igual material, um cabide uma cama forrada com um colchão de palha, um fogão à lenha. Sobre a mesa um copo com água pela metade, um bloco de papel e um lápis e mais nada. Viu que tudo estava bom e descançou.

Na primeira noite sonhou apenas com carne e matéria, não era o que procurava, queria apenas um nome, um nome cujo corpo ideal viria naturalmente. Nomearia a coisa antes mesmo dela existir e inverteria a lógica filosófica de Foucault. Não queria admitir, mas em seu íntimo, queria mesmo superar o deus, criando o nome antes do ser.

Sonhou todos os sonhos dos homens e sonhou todas as coisas da Terra e em certo ponto já nem sabia mais quando estava com os olhos fechados ou abertos, se desperto ou em vigília e até se ele mesmo não era um sonho, mas ao cabo de dez anos o primeiro signo fez-se, quase à materialidade, tão cheio de significações, era a letra L, do alfabeto ocidental. Ele, cujo idioma paterno quase se perdera após debruçar-se sobre signos de etnias e aldeias remotas, dominador de escritas orientais, grego e mais uma centena de dialetos mortos, não entendeu porque o ocidental L se pronunciara. Temeu não estar no caminho correto, esperava listras de tigre, ideogramas mandarim, letras do alefato, jamais um signo de um alfabeto decadente. Resignou-se e chorou. No chão branco do templo, as lágrimas quebraram o monocromatismo e revelou-se a segunda letra, um rubro I. Deu-se conta que seu pranto era um sonho e aceitou a imposição dos deuses em apresentar-lhe um nome naquele alfabeto impuro.

Na noite de sonho, coincidente com a noite de festejos da Walpurgisnacht, ele sonhou com uma mulher, estremeceu até o pâncreas. Estaria ele sonhando com um nome de mulher, invocando uma mulher inexistente? Sabia que isto o distrairia de seu objetivo, mas não deveria opor-se à inescrutável mão do destino e deixou fluir o sonho. Foi uma noite carregada de sensualidade, gozou dos prazeres da carne até quase saturar seus poros e ao amanhecer, adormeceu. Nenhum homem na face da Terra havia experimentado tanta paixão em tão pouco tempo e sobrevivido. Quando acordou a mulher havia ido embora e deixou sobre mesa um bilhete inusual, com apenas duas letras L e como ainda era sonho, tinha agora, se a seqüência das letras seguisse a de suas revelações, Lill. Conheceu uma mergulhadora norueguesa chamada Lill Hauggen, mas não era ela quem vira no sonho. Neste instante percebeu não ter lembranças das feições da mulher sonhada, sentia os cheiros dos odores, os gostos das secreções, a consistência do toque da sua Lill, mas não saberia como descrevê-la. O nome estava se impondo sobre o ser. Buscou lembranças de outras Lills, nada adiantou.

Não sonhou mais com Lill e nem outra letra se descortinou, entretanto sabia não estar completa sua missão. Atormentou-se, um tanto por sua falha em concluir tão grandioso projeto e outro tanto por não ver mais Lill. Dormia pensando no que deveria ser ela, acordava clamando seu nome, ofegava ao pronunciar seu amor, sem sucesso. Quase desviou-se de seu objetivo primevo e penitenciou-se por ter se entregue aos prazeres mundanos da carne e ao amor de uma mulher que só ele sabia existir, na intimidade de seus devaneios, ainda que sem feições. Resignou-se e voltou a sonhar os sonhos dos santos e profetas, viu guerras, chuvas, sementes de jabuticaba brotando e em meio a sonhos e profecias, intui serem uma única coisa, o nome Lill e a mulher do sonho, mas estava incompleta e ela só se revelaria por inteiro quando o nome estivesse completo. Quantas letras ainda faltariam? Seria um nome nórdico, como a de Lill, ou uma variante latina de Lilliane? Lille, simplesmente, ou uma fantástica Lillet? Quem sabe o colorido Lilla, por que não? Nestas elucubrações o auto intitulado sacerdote, percorreu mais oito anos, embora ele já não entendesse do transcorrer do tempo, sentia, em noites mais frias, umas dores nas articulações, uma ou outra indisposição, mas não associava isto à idade já avançada em anos.

Quando já havia invocado todos os nomes de mulheres, em todas as línguas, que pudessem principiar por Lill, teve outra revelação. Se este tempo todo estivera sonhando um nome a ser preenchido por um corpo posteriormente e como já havia atingido parte deste intento, sonhando com um quase nome de mulher e uma quase mulher, não haveria de ser uma mulher, sim um ser mágico, volátil, carnal na volúpia, mas independente da matéria na sua existência, alguma entidade que ocupasse o nome invocado trazendo não só a carne, mas a fé no transcendente. Mais uma vez estremeceu quando descobriu quem ele estava invocando o tempo todo e por quem se apaixonara perdidamente. E também prostrou-se e chorou novamente, jamais a possuiria, jamais a subjugaria, jamais a teria submissa e se quisesse entregar-se ainda uma vez aos prazeres celestiais de comungar com ela mais uma noite apaixonada, seria inevitavelmente consumido. Depois disto foi dormir já sabendo quais letras veria em seu sonho e sabia quem veria, estava preparado para entregar-se e ser consumido. Deitou-se e o sono não vinha, temeu não conseguir dormir, mas isto teria que acontecer em algum momento. Correu, escalou montanhas, nadou os oceanos e nada disto o extenuava, nada fazia o sono dominá-lo. Sentiu uma fraqueza e um frustração como se estivesse no último dos círculos infernais, quase antevendo o paraíso, mas preso a grilhões indestrutíveis. E a última das revelações fez o sacerdote estremecer pela terceira e derradeira vez. Ele sabia qual nome sonharia, sabia da sua amada, da sua entrega e da sua renúncia, morreria entregando-se ao amor e à paixão, heroicamente, mas precisava dormir para sonhar e não conseguia fazê-lo porque já estava dormindo e já estava sonhando, mas estava preso em uma zona miasmática do reino de Morfeu, entre o fígado e a alma e não escaparia daquele sonho sem propósito, eternamente.

LM

3 comments:

  1. Anonymous8:15 AM

    Cara tu é muito bom... que delicia de ler, de encontrar um final , da curiosidade da leitura, da trama envolvente....

    Clemair

    "Em meus textos, quero chocar o leitor, não deixar que ele repouse na bengala dos lugares-comuns, das expressões acostumadas e domesticadas. Quero obrigá-lo a sentir uma novidade nas palavras!"
    João Guimarães Rosa

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  2. Anonymous5:33 AM

    Showwwwww , cara eu gosto de ler tuas historias.

    carlos Buggy

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  3. Anonymous2:16 PM

    Muito bom. Estou até pensando de entrar no canal desse sonho e descobrir o nome completo desta tal de Lill. fiquei curioso. deve ser uma deusa.

    Dico.

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