Sunday, December 18, 2011

Reflexo

Hoje encontrei um velho em meu espelho, me olhava com uma dose calculada de compaixão — não tão baixa para não parecer desinteressado, nem tão alta para não aniquilar completamente minha, já combalida, auto-estima — quase pude perceber algo de ironia nas rugas do cenho, como que forçando severidade e benevolência. Não gostei daquele velho e imaginei-o como um satírico bufão querendo pregar a última peça antes da morte, como o singnore Ciappelletto. Ignoro há quanto tempo está ali e agora, Relembrando e fazendo uma leitura de sua incivel personalidade, penso que talvez já estivesse há muito tempo escondido por detrás do meu reflexo, fazendo caretas enquanto barbeava-me ou escovava os dentes, empurrando minha imagem para que eu me cortasse com a lâmina ou deixasse uma inoportuna sujeira no dente da frente. Creio ainda, se minha memória não resvala, já tê-lo visto, mas tão de relance, tão furtivamente, apenas se insinuando, mas após ter visto aquela zombeteira face falseando ser benevolente, encho-me da certeza de que ele já me espreitava, zombava e esperava o momento de se deixar ser identificado. Hoje, no dia de festejar o dia dos meus anos ele, o velho, um estranho até então, se faz pleno.

Posso até estar passando por algum tipo de crise da meia idade e sei dos meus cada vez mais escassos cabelos e do seu inexorável branqueamento. Sei das dores diárias, cada dia um tipo, e da decadência do conjunto. E se alguém insinuar que era tão somente meu reflexo sendo observado em um mau dia, atalho-o com a explicação inconteste de não ter visto apenas o velho, senão ele e meu reflexo. Ora ele se punha na frente de minha imagem, ora ao lado, ou mais ao fundo, quase saindo do campo de visão, com metade do corpo oculta atrás da borda do espelho e meu reflexo ali, reproduzindo minhas caretas, gestos e minhas falências. Não eram a mesma coisa, apenas dividiam o mesmo lugar.

Por um breve momento pensei na hipótese de ser meu pai tentando voltar, ele que durante minha infância jamais aparecia nos dias de meu aniversário, consumido pelas chamas do arrependimento, poderia estar procurando um meio de regressar dos mortos para se redimir e alcançar a paz. Idéia logo descartada, meu pai ainda vive e também não seria do feitio dele querer expiar alguma dívida comigo. E quando receber a notícia da minha morte, como está muito longe, apenas dirá: "Agora não há mais nada a fazer, não vai dar tempo de chegar para despedir-me, não irei ao funeral, mas meu filho amado sabe, onde quer que esteja, que eu não preciso estar presente para estar perto dele. Farei uma prece, a mais bela e comovente, que só eu ele e Deus ouviremos."

Ele ainda está lá, posso vê-lo se escondendo atrás do meu reflexo, não é sempre que aparece, agora finge estar reproduzindo meus movimentos e até tenta se passar por mim, não quebro o espelho para não correr o risco de vê-lo multiplicado em centenas de fragmentos, assim ainda é apenas um. Mas como ele está tentando se passar mor mim, descobri como matá-lo: peguei minha navalha, ele fez o mesmo.

LM


 


 


 

2 comments:

  1. Anonymous5:59 AM

    Meuuuuuuuuuuuu caramba...
    isto deve ter doido muito...

    Dico.

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  2. Anonymous11:11 AM

    Leio sempre est seu blog e só tenho que dar meus parabens.

    Carlos Alberto

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