Tuesday, January 03, 2012

A outra viagem, ou a chegada

Jurou ser ter recebido o testamento das mãos de Kafka. Jurava por qualquer coisa, jurar pela alma de Kafka não seria nada de mais, desta vez jurava pela própria alma, prestes a abandonar os escombros de uma vida cheia de incertezas, inconclusões, inconformismos e mais algumas dezenas de ins. Era pouco menos de meia página, manuscrita com letrinhas trêmulas, em alemão. Ignorante, não pude ler o conteúdo do documento, precisaria de alguma ajuda germânica para decifrá-lo. Se fosse realmente de Kafka poderia valer um bom dinheiro, afinal, mesmo perjuro, o velho andou pela Áustria na década de 20, chegou até a ser preso com um manuscrito roubado da biblioteca do Monastério da Ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho. Para escapar da condenação, jurou ter se convertido ao cristianismo e ingressou na ordem, até conseguir fugir de Klosterneuburg alguns meses depois. Não seria improvável imaginá-lo disfarçado de zelador em algum sanatório encontrando Kafka em seu leito de morte. Assim, resolvi aceitar aquele pedaço de papel como pagamento da dívida. Era perder tudo ou ganhar muito.

Voltei para Joinville sem ter traduzido o manuscrito, não seria difícil encontrar algum alemão disposto a fazer o serviço a troco de duas cervejas. De fato, jantando no Jerk, conheci Geraldo, nome abrasileirado de Gerhard Kremer, professor de alemão e francês. Perfeito. Ele nem precisou de muito tempo para fazer a tradução, ali mesmo, na mesa do bar leu para mim. Não tive certeza se seria mesmo de Kafka, mas definitivamente não era um testamento, era um pequeno conto e se fosse mesmo um original inédito do escritor checo, poderia valer mais do que um testamento.

Viagem


 

Talvez devesse partir, sem demora nem medo de olhar para o abismo, apenas partir. Fiz. Não sem estremecer-me, demoro a entrar nas ruas sem ter certeza de estar perdido, por isso precisava saber se realmente estava perdido, ou apenas ensaiava os paços trôpegos. Lembrei-me ter esquecido as bagagens, Não as tinha. Lembrei-me de quê? Esqueci-me na casa? Agora sabia-me perdido. Apressei o passo, corri, perdi pedaços de mim tentando chegar, não sei aonde. Via uma cidade, uma vila, rua? Quanto mais corria mais seus muros riam do meu suor encharcando o colete. Quando finalmente encontrei um homem, perguntei como fazia para chegar à cidade.

— Deves tomar o caminho da esquerda. Entretanto, será mais fácil ir pela direita.

— E se ficar aqui?

— Estarás perdido e darás informações a viajantes perdidos.


 

FK

Era isto, sempre estive a procura de algo e nunca soube o que, sempre fugi de algo, mas fugia de mim. Guardei o pedaço de papel pedi dois steinhaegers e mais duas cervejas e continuei a beber com Geraldo. Não tinha mais pressa alguma, sabia que para qualquer lugar que fosse estaria perdido, ficaria ali, dando informações a viajantes perdidos.


 

LM


 

3 comments:

  1. Anonymous11:02 AM

    Cara tu é muito bom mesmo, não tem um dia que ao sentar-me na minha cadeira preferida e diante do meu computador preferido, leio este meu blog preferido.
    Parabens.

    Candice

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  2. Anonymous11:06 AM

    EI esta carta este escrito é verdade ou ficção, ser for ficção tu é foda, desculpa o linguajar. Adorei

    Kalamed Ali

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  3. Anonymous2:06 PM

    Kalamed, desculpe, mas terei de deixá-lo descobrir sozinho a origem de "Viagem".

    LM

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