Sunday, January 22, 2012

Limbo

Estou morto ou algo muito grave aconteceu comigo. Apostaria na primeira opção, fiquei em dúvida ao sentir o toque de uma das pessoas. Era uma mulher e ao contrário das outras veio só, também lembro da escuridão através da janela. Ela deixou cair uma lágrima em meu rosto, mais do que seu toque, devo ter sentido aquela lágrima escorrendo por minha face até se perder no travesseiro. Assim como os outros, ela mexia sua boca, provável estar falando algo para mim, inútil, ouço o som e não consigo distinguir o que é fala, canto de passarinhos, latidos de cachorro, ranger de dentes, som de passos, apenas percebo o ruído. Ela deveria estar emocionada, compreendi pela lágrima e tentei transmitir a ela que sabia disto, mesmo ignorando qual tipo de emoção a fazia chorar. Era bonita, espero que seja uma emoção boa, não gostaria de ver aquele rosto chorando de raiva contra mim, ou coisa parecida, gostei da visita (só podem ser visitas estas pessoas), mesmo estando morto, podem estar vindo visitar meu túmulo, ou, quem sabe, eu ainda esteja sendo velado, vá saber, não tenho uma noção muito boa de tempo.

    Creio já ser outro dia (quantos terão passado?), e aquela mulher não veio, vieram as pessoas de antes: duas velhas, um homem, outra mulher, uma jovem e os sem rosto, de branco. Mais bocas movendo-se, não parecem estar falando para mim, suas bocas mexem e eles se olham, deve ser assim que uma folhagem na sala percebe as pessoas. Não os imagino emocionados, parecem estar bem, lembro-me deles mais exaltados. Estariam preocupados comigo, ou estariam só brigando entre eles naquele dia de exaltação? Nem sempre se dirigem a mim, aliás, não lembro de terem feito isto, devia estar dormindo, se é que durmo.

    Hoje elaborei outra teoria: não estou morto, tampouco aconteceu algo de tão grave, talvez eu seja apenas um recém nascido prematuro em uma incubadora. Não, todo mundo olha para bebezinhos e sorri, se bebê, devo ser muito feio e também não vejo nenhuma mamãe por perto. Esta teoria não foi boa, mas foi divertido, vou elaborar mais teorias. Sou realmente uma folhagem na sala, estas pessoas não me percebem, a mulher da lágrima chorou porque ela me plantou com alguém que ela amava muito e não está mais aqui. Melhor do que a do bebê, entretanto quando aquela lágrima escorreu pensei nela escorrendo por minha face, não por minhas folhas. Quase consegui. Um animal não devo ser, senão estaria latindo, miando ou coisa parecida, mas explicaria porque escuto o som das bocas que se mexem, sem distinguir tais sons. Também dificilmente um animal teria senso estético e cronológico, pois mesmo não estando certo do passar do tempo, eu o intuo e percebi as diferenças de idade nas pessoas, além de ter distinguido os sexos e eleito a mais bela. Sinto falta dela.

    É ela, parece que se passaram anos, talvez tenham se passado mesmo, ainda mais se estou morto de fato. Está abatida, mais do que as outras pessoas. A cortina está abaixada, mas dá para perceber a escuridão além, então ela só vem à noite, estou ficando bom nisso. Está pegando algo, é um retrato, dela ao lado de um homem, eles parecem ser bem afeiçoados um do outro e estão felizes no retrato. Quem será? Bem que poderia ser eu, neste caso não só não seria, bebê, planta, ou animal, como já teria até um rosto, isto não invalida a possibilidade de não estar mais vivo.

    Não tenho certeza do passar dos dias, vejo quando está claro ou escuro, mas não consigo contar dias, tampouco saber se os rostos e fatos de minhas lembranças pertencem a um mesmo dia, ou a vários, talvez meses e até anos, também não sei se estou sempre acordado, se durmo, se sonho, preciso estabelecer alguns parâmetros, talvez assim consiga identificar mais sinais externos. De qualquer forma parece ter passado muito tempo, ao menos em minha percepção, que ninguém além dos sem rosto de branco aparece por aqui. Pensei muito neste local como sendo um hospital, mas não há tubos saindo de meu corpo, nem equipamentos onde esteja conectado, há apenas o teto, a janela e uma parede, cuja cor ainda não consegui lembrar o nome, também não recebo medicamentos, não há dor, fome, vontade de defecar, de urinar, nada. Cemitério ou hospital, não deveria ser muito popular, nem ter família grande, são sempre os mesmos a me visitarem: as duas velhas, o homem, a outra mulher, a jovem e aquela da lágrima e do retrato, esta vem quando os outros não estão e eles vem sempre juntos, talvez morem longe e só possam vir juntos e a mulher da lágrima deva trabalhar durante o dia e só pode vir à noite, neste caso é provável que more mais perto do que os outros. Estou ficando bom mesmo nisso.

     Imagino terem sido muitas as vindas das pessoas, só não saberia dizer quantas e cada vez mais eles parecem não perceber minha presença, talvez eu nem esteja mais aqui mesmo, eles conversam, conversam, falam baixo, falam mais alto, até alguns gritos, riem e se não estou enganado, riem bastante quando o homem fala e gesticula, ele deve ser um comediante. A mulher da noite é a única a se dirigir para mim e fala como se estivesse conversando comigo, se sou velho pode ser minha filha. Mas por que não vem com os outros? Deve mesmo trabalhar durante o dia e eles talvez não trabalhem, as duas velhas já se aposentaram, a mulher e a jovem são sustentadas pelo comediante que faz shows à noite, perfeito. Então, se são minha família, devo ser velho e ser casado com uma das duas velhas (até que não é tão ruim por aqui) e o comediante é meu filho, se fosse a mulher ela seria mais atenciosa, filha sempre é mais atenciosa com o pai, e uma das velhas, minha esposa, já estamos juntos a tanto tempo que nem lembra mais como ser atenciosa (quem sabe devo ter sido um mau esposo) e a jovem minha neta, jovens não gostam muito de velhos. E a mulher da noite? Se for minha filha brigou com a mãe ou não é filha dela, seu safadinho, andou dando umas escapadas, sempre soube que eu era pegador.

    Não, definitivamente a mulher da noite não é minha filha e isto me obriga a rever toda minha teoria familiar. Ela mostrou-me outros retratos, dela com aquele mesmo homem (eu?), em poses impróprias para pai e filha. Claro, poderia ser o marido dela, mas que interesse eu, no jazigo ou leito de morte, teria em ver minha filha aos agarrões com um marmanjo. Se for minha filha é bem sem noção e ela não parece ser uma pessoa sem noção. E além disso, hoje ela chegou tão perto que quase pensei nela beijando meus lábios, se estou em um caixão, ela teria se debruçado sobre o túmulo e beijado uma possível foto minha, imaginando estar beijando meus lábios, filha não fecha os olhos daquele jeito para beijar pai. Então quem são as outras pessoas? Alguém apagou a luz.


 

LM

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