Sunday, February 26, 2012

Ao rei

Fui chamado em presença do rei Hamurabi. Devo apresentar-me a Vossa Majestade ao terceiro pôr do sol do recebimento deste comunicado. Estremeço-me, meu espírito aflige-se, três dias ainda, não conseguirei alimentar-me nem dormir, preciso controlar-me, não posso aparecer diante de tão elevada persona como se um zumbi fosse. Glória apavorante. Dos meus vizinhos, pelo menos metade deles arrancaria dois dedos dos pés para poderem ser recebidos pelo rei do mundo. O que poderá querer Vossa Majestade deste humilde servo? Terror! Teriam descoberto ser eu o autor daquelas malditas tábuas apócrifas, frutos dos desvarios juvenis? De nada adiantará prostrar-me ao chão e, em lágrimas, revelar o quanto renego aqueles dias e tudo que fiz nos momentos de intempestividade, o quanto amaldiçôo minha mão por ter escrito tamanhas insanidades. Não pode ser, já se passaram tantos anos, nem os mais proeminentes sábios e magos conseguiriam descobrir o autor dos escritos. Talvez o rei queira apenas recompensar-me por todos os anos de dedicação e trabalhos bem feitos em nome de Vossa Majestade Real e me conceda alguma graça, uma satrapia, afinal tenho me dedicado em enaltecer o nome do rei todo poderoso todos os dias de minha vida. Não devo preocupar-me, mas os olhos e ouvidos do rei estão por toda parte, estou perdido. Esqueça, tolo, nada deverá de mal acontecer-me, quem não deve não teme, a não ser que alguns dos tantos parasitas invejosos que orbitam o palácio tenham orquestrado calúnias para minha perdição perante nosso soberano. Serei açoitado mil vezes antes de ter minha cabeça separada do corpo. Urge fugir, irei para o Egito. Isto não é atitude de um homem corajoso, ficarei e enfrentarei meus detratores, até a morte, se preciso for. Não tombarei sem antes lutar o bom combate, sem mostrar todo o brio e valor dos da minha linhagem e, perecendo, acorrerão poetas cantando loas em minha lápide e as donzelas chorarão por um marido tão valoroso quanto eu. Quanto de suprimento e ouro consigo arranjar antes do amanhecer? Pegarei um camelo dos mais robustos, talhado para longas jornadas, subornarei os guardas para que não delatem minha partida e empregarei fuga através do deserto em direção ao Egito. Clamarei hospitalidade nas casas nobres pelo caminho para os pernoites e antes de a lua completar um ciclo já estarei nas terras banhadas pelo grande Nilo. Apresentar-me-ei com outro nome e oferecerei meus préstimos para a glória do meu novo rei. Creditarei meu exílio à morte prematura de minha amada esposa e, ficar em minha casa remeteria à sua amarga ausência. Como ficarão, de fato, minha esposa e meus filhos? Se Hamurabi descobrir minha fuga os porá a ferros e, se não os enforcar, os fará de escravos para serem vendidos na feira. Não poderei viver com esta culpa, eles não podem perderem-se por minha causa. O que o rei quer comigo? Não poderei suportar o lento caminhar do tempo, tenho que fazer algo. E se for apenas para apresentar o balanço anual das colheitas de damasco? Esta cicuta deve resolver.

LM

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