Thursday, February 09, 2012

Quadrilátero, ou o terceiro caso

Antes de deixá-los, é preciso pôr a termo um e outro detalhe de minha vida pregressa, para adentrar na posteridade de alma lavada. Quis dar a este documento o título de testamento, posto estar deixando um legado, todavia não há bens em quantidade suficiente para regalar todos meus afetos e uns tantos de desafetos, aos quais gostaria de deixar algo para não esquecerem-se tão rapidamente de mim. Na falta de bens deixarei umas tantas revelações, se calharem a alguma coisa, dar-me-ei por satisfeito, em negativa, será o desvencilhamento das coisas corpóreas, espero.

Estando já me aguardando mamãe e papai, a quem finalmente conhecerei, quero destinar minhas primeiras últimas palavras à minha fiel e dedicada esposa, tão solicita durante 35 anos. Em reconhecimento aos seus méritos, serei direto: não resisti a certos encantos de outra mulher e sucumbi ao desejo da carne, desta forma, tomei para mim uma amante, desde os primeiros anos de nosso casamento até quase os tempos de hoje. Não te inquietes, cara esposa, pois tomei todas as precauções para que tu ou qualquer de nossos amigos e parentes não viesse a saber deste meu pequeno pecado. Revelo isto agora, não sem certo peso na consciência, mas preciso fazê-lo para provar-te que não era tão estúpido quanto me julgavas, nem tão insensível, também não sou tão palerma quanto me acusaste inúmeras vezes, apenas sempre foi de minha natureza, buscar o embate de idéias ao invés da luta, assim, para evitar o confronto com alguém que tanto prezava, arranjei outra, que, sem maiores responsabilidades, me ouvia, nos pequenos espaços de tempo, sem acusar-me ou censurar-me. Estando ela, desde o primeiro instante, ciente que jamais te deixaria, nunca exigiu nada mais do que algumas horas por semana. E o restante do tempo poderia dedicar-me a ti e as crianças que o bom Deus não permitiu nascerem. Entendo se não me perdoares, entretanto saiba que meu coração somente a ti pertenceu e, se me for dado tal privilégio no além, continuará pertencendo. Mais do que a tentação da carne, cultivei este caso para ter alguém a quem falar minhas idéias, minhas ideologias, pois tu foste sempre tão pragmática com as coisas da nossa casa e da nossa vida, mas tão alheia às coisas da política, da filosofia e das ciências e não queria importuná-la com tais assuntos, pertencentes ao mundo além do lar. Como já disse um sábio: "Haverá sempre um homem que, embora sua casa desmorone, estará preocupado com o universo. Haverá sempre uma mulher que, embora o universo desmorone, estará preocupada com sua casa."

Para aquela que foi a segunda em minha vida também gostaria de deixar umas palavras, desta vez a despedida definitiva, tantas vezes antes ensaiada. Você sempre se mostrou atenta à minhas palavras e até se esforçava por parecer interessada e agradeço por isto, mas jamais você contestava, complementava, argüia. Repito, sou muito grato por ter me ouvido, especialmente não estando assim tão interessada, mas foi por este pequeno detalhe que acabei arranjando uma terceira mulher em minha vida. Você sempre deixou bem claro que jamais sentiria ciúmes de minha esposa, mas viraria uma onça se soubesse que eu havia arranjado a outra da outra. Sabia de suas reais intenções animalescas e sua disposição para deixar suas emoções aflorarem e transformar-se, efetivamente, em uma fera, por tal motivo, preservei com maior diligência a discrição quanto este terceiro caso. Ela me ouvia, assim como você, mas tinha suas idéias, às vezes até conflitantes com as minhas e entabulávamos extensas discussões acerca dos mais variados assuntos, discussões que poderiam durar meses. Como não dispunha de tanto tempo assim para ficarmos juntos, ela assentiu em nos vermos uma ou duas vezes por mês, entretanto mantínhamos uma profícua troca de correspondências. Ela me ouvia e me respondia.

À terceira não precisarei deixar muitas palavras, apenas um adeus, pois já havíamos discutido até a forma de minha despedida e a morte, muitas vezes, foi tema de nossas discussões. Aliás, ela foi contra este modelo adotado, preferiria que as coisas tivessem ficado como estavam, ocultas, cada qual em sua alcova, preservando-se as aparências para evitar celeumas, nossa correspondência só seria revelada (talvez publicada) quando os envolvidos diretamente no quadrilátero estivéssemos mortos. Achei muito trágico e, diante do fim próximo, achei melhor fazer agora tais revelações, nunca tive coragem de fazê-las antes.


 

LM

1 comment:

  1. Anonymous6:58 AM

    É bem assim mesmo.....

    Pedro Paulo

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